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Excerto

[…] Um dos jogadores, quebrando o gelo, puxou outra cadeira para a mesa e convidou-me a sentar, com bonomia.

– Casa não aperta para família.

– Nós não somos família, Paizinho, estás esquecendo,
emendou o segundo jogador, com um sorriso luminoso e ácido,

– Não somos compadres. Somos camaradas.

– Agora somos clientes...

retorquiu o «Paizinho» por cima dos grandes óculos de massa preta – os óculos pesados do nacionalismo africano, espaçosos e baços, marca de uma geração (quase iguais às armações de Agostinho Neto e Amílcar Cabral).

– Somos povo! O povo é o partido, o partido é o Estado e o Estado é o Povo – continuou o outro, comendo três damas ao ritmo das palavras, vincando as pausas. – Não era assim no teu tempo? Uma Santíssima Trindade para o proletariado que não tínhamos. E tu, Deus Pai feito homem. É como dar volta à Ilha: não interessa por onde sai a procissão porque acaba sempre na Matriz.

– Não sou eu que encomendo missas, Cacau...

– Não precisas. Saneaste-O do Bureau Político!

Os dois adversários estalaram a rir, arrancando um esgar nervoso aos parceiros que assistiam. Eu conhecia os jogadores, vi-os em fotografias oficiais e em cartazes, já transparentes da chuva, de campanhas antigas em partidas mais sérias. Papá Café e Papá Cacau, como são tratados, arqui-rivais nesta ilha tão pequena. Café e Cacau: não se chamam assim mas foi esse o «nominho» que lhes puseram quando entraram juntos no colégio. O nome de um é a simetria do outro. Café, de pele mais escura, cara larga, fechada, maçãs fortes, boca grossa, olhos mansos, quase doces, quase tristes, testa direita e sólida, pescoço largo e, percebe-se ainda na sua idade avançada, peito bovino. Cacau, pele de âmbar consoante a luz, lábios desenhados, empurrando covinhas que sorriem por ele, olhos agudos, quase cruéis, sempre alerta, fronte recuada, orelhas finas, ombros de bailarino.

Papá é um prefixo honorífico que veio depois: ocuparam ambos o poder. Café desde a independência, há precisamente trinta anos e durante metade desse tempo. Cacau após a abertura democrática, inaugurando a alternância de poder.

– Fui eu Presidente – Café comeu uma dama –, depois ele – outra – e devia ser eu de novo. Mas ele não cumpriu. Arranjou as coisas de maneira a que fosse um candidato diferente a ganhar – aquele que agora nos obriga a estar aqui,

explicou Café, acabando a jogada com o assalto a uma terceira peça. Um néon azul começou a piscar dentro da camisa do militar e uma melodia quente, dengosa, foi aumentando de volume. O militar, sem pedir licença, levantou-se para atender o telemóvel. Lénine foi atrás dele. Na cozinha, sentada em meio a um céu voando em penas, uma mulher depenava uma galinha cozida, cantando algo,

Flontado sóo...

e ouvindo tudo,

Uê xá cubiçoso sóo...

Companheiros desde a juventude, Café e Cacau divergiram na política.

Axén sóo...

Café, de origem mais humilde, fez os estudos superiores em Berlim-Leste, o que influenciou muito a escolha dos «aliados naturais» do jovem país – a Ilha nasceu como República Democrática, nem sequer como República Popular. Cacau, de boas famílias e vida boa, estudou em França e sempre foi mais pró-ocidental e favorável à economia de mercado.

– Somos os dois verdadeiros capitalistas. Quero dizer, temos uma aversão sanguínea ao trabalho, sabe disso, como todos os que foram forçados a trabalhar. Como todos os verdadeiros filhos da Ilha,

carregou de novo Cacau, com malícia,

– mas eu sou judeu, um perseguido, ao passo que o Café é um cristão-novo, um convertido.

Os dois riram de novo.

Levé-levé sóo...

Não imaginava ver os dois papás da nação rindo um com o outro. Não pensava sequer encontrá-los à mesma mesa. Cacau sofreu a prisão e o exílio durante o regime do camarada Café, por ter amigos em Libreville e Paris, sacrilégio numa época em que a Ilha alinhava com Bucareste, Havana e Pyongyang.

Un cêbê cuma colê flontado ná çá tefá!

A reconciliação era agradável de presenciar.

– Não foi reconciliação – novamente Cacau. – Foi reforma. Fomos inimigos na política. Agora que nos reformámos, voltámos à infância.

Magi, tlabá só cada têê!

Depois de velhos, foi a infância que nos juntou,

acrescentou Café. Sabe, não sei se sabe, como são os avós, prosseguiu o velho. Não sei. É simples, são assim: permitimos aos netos tudo o que proibimos aos filhos. Cacau, concentrado no tabuleiro, concordou com a cabeça. Um dia, uma das netas de Café descobriu uma velha pasta com selos na estante do avô. Eram colecções desordenadas, oferecidas a Café em muitas visitas de Estado. Cacau atacou de novo:

– Selos da Roménia, está a ver?, da União Soviética, da Coreia do Norte, da China, da Líbia, da Argélia, dos árabes «progressistas». E de Cuba, claro, colecções inteiras: os cosmonautas, os jogos olímpicos, o Dia da Mulher, Lénine, os charutos, o açúcar, os 50 anos do Ho Chi Minh...

– Não atires pedras. Tu também foste a Havana com tapete vermelho. Como foi? – Café finge um esforço de memória e endireita o tronco na cadeira – «A caminhar dessa maneira, não há dúvida nenhuma que o triunfo da sociedade comunista que Cuba pretende realizar não fará para nós qualquer espécie de dúvida». – Cacau pareceu amuar, olhando o jogo. – Sic!

– Andei, sim, e vi logo quem era o Castro. Azar meu! – Cacau foi preso por discordar das orientações socialistas na Ilha, isto é, nesta Ilha. – Pelo menos, a neta do Café aproveitou, virando-se para mim: – O Café trouxe de lá uma série linda, a dos caracóis cubanos, «Navidad 1961-62». Um cêntimo facial. Só que faltava um selo na série. O bom do Café notou, mas seria indelicado apontar o defeito à prenda, já imaginou – Cacau tomou fôlego para a imitação –, «El Comandante, pués su discurso, los instructores militares, las becas a nuestros estudiantes, el Internacionalismo, eso está todo de puta madre, pero es que, para nuestra revolución, pués, me falta un caracol»...

Desta vez, os dois anciãos estalaram a rir, uivando, repetindo «un caracol» aos soluços, segurando o estômago e limpando as lágrimas. Demorou algum tempo até se acalmarem e recuperarem compostura.

Um cubaneo típico... Afinal, eu tinha esse selo...

– O Polymita picta nigrofasciata?

– Não, esse tu trouxeste, e o sulfurosa flammatus também. Faltava à tua neta o Polymita picta fuscolimbacta.

Graças à curiosidade da neta, Café interessou-se, pela primeira vez, por filatelia. Não demorou muito a constatar que a sua colecção era muito alinhada. Política e geograficamente alinhada. Faltava-lhe metade do mundo. Percebeu de imediato que, na Ilha, apenas havia uma pessoa que tinha muitos selos de ambos os blocos: Cacau. Em breve, ambos redescobriram colecções onde nunca tinham tocado. Começaram a trocar febrilmente entre si e a apostar – às damas – selos de alto valor pessoal. Café, por exemplo, ganhou a Cacau uma série cubana baseada em imagens feitas pelo artista Felix René Mederos numa das suas visitas aos dois Vietnames, acompanhando «as tropas libertadoras» ao longo da «pista Ho Chi Minh». Cacau, por seu lado, conseguiu a devolução, três décadas depois, de um selo romeno com a reprodução de um retrato de Jan Van Eyck que um aristocrata alemão comprou e levou para Bucareste no século XIX. […]

Pedro Rosa Mendes
In Lenin Oil, Lisboa, Dom Quixote, 2006
pp. 122-127

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© Instituto Camões, 2006