Na casa do meu pai aos móveis juntam-se. As plantas do jardim. Eram de várias cores agora são todas de uma. Definham entre o amarelo e o castanho, dobradas sobre os caules. Hei-de ir lá abrir fechar a porta verificar os seguros falar com o advogado tratar de coisas. Abrir fechar a porta sair. A casa do meu pai como a nossa casa tem vidro tijolos tinta madeira mas não é. A casa que te prometi. Anda por aí espalhada. Desenhei-a aos poucos e nunca ta dei. Eu pensei que ainda ta ia dar.
Tenho repara sítios à disposição, coisas para tratar. Não há justificação para não me mexer. Deveria talvez desta vez concordarás. Sentar-me ver papéis levantar-me outra vez. Caminhar pela rua, perguntar no café se viram o cão, abanarem a cabeça mas talvez ali mais à frente. Num canil, a dormir com outros cães debaixo de caixas de cartão, a escolher com minúcia restos do lixo, encontro-o trago-o de volta. Terá feridas na cabeça o pêlo ratado nas patas. Nunca sei onde deixas aquela coisa para as pulgas e carraças. Ele olha para mim reconhece abana a cauda. Explico-lhe que não estás, explico-me. Não um atraso não uma reunião de última hora não um compromisso inadiável, no mundo lá fora antes de voltares. Não estás. Não voltas.
Ele olha para mim vai pelo corredor. E cheira a tua roupa que recusou partir com o sofá e o relógio. Pergunta-me olha para mim. Eu não sei que lhe diga mais, é o nosso cão. Se tiveres deixado tudo como de costume. A trela há-de estar pendurada junto à máquina de lavar, eu podia dar-me ao luxo de ser desorganizado porque tu não eras. Irritavas-te, mandavas vir. Mas depois sorrias um riso fugidio.
Se eu encontrar a trela no sítio do costume pego nela. Não tirei o sobretudo não tirei os sapatos, posso sempre voltar a abrir a porta ainda que hesite. Em abrir fechar outra vez. Não irei pelo corredor não olharei para os quartos três quatro cinco quartos vazios como o nosso, só com papéis e caixotes e coisas que nunca arrumaste apesar de seres organizada, à espera. De uma razão. As tuas roupas querem ficar deixa-as ficar.
Pego na trela no sítio do costume e Ievo o cão. Não temos já casa e temos tantas à disposição, levo o cão. Passamos sem olhar pela casa do meu pai onde o advogado manda uma empresa cortar as árvores todas e as plantas todas e os móveis se encontram a monte, cá fora no passeio, junto à goela aberta da traseira de uma camioneta.
Passamos na casa do meu irmão e a Eunice já lá não está e os filhos deles há muito que não estão, não se chamam filhos mas sim João e Isabel um homem e uma mulher, com empregos que lhes roubam tempo e filhos deles, já preparados para crescerem por sua vez, e os empregos. Roubam-lhes tempo mas não sabem bem a quê.
Passamos por lá o cão faz-me parar. Habituou-se entretanto aos caixotes do lixo. Acho que era naquelas janelas ou seria. Nas outras mais ao lado. Janelas fechadas persianas corridas. Ninguém. Outro nada.
Tu que me achas desorganizado nem sonharias. Que dei ordens num determinado sentido. E há-de chegar uma camioneta, aqui junto do hospital. E há-de trazer. Os nossos móveis, inclusivamente o relógio. E alguns outros da casa do meu pai que o meu irmão reconhece. Eram na altura devida os nossos móveis. E hão-de vir. A cama onde o meu pai partiu mas já sem balões de soro pendurados e sem enfermeiras e sem ele a pedir-me o jornal que já não conseguia ler mas insistia, numa teimosia de notícias de cabeça para baixo.
E também não vêm as enfermeiras. Penso que já te referi, a minha desorganização. Como é que consegui tratar destas coisas todas. Com sorte uma ou outra planta conseguiu saltar a tempo para a camioneta e vêm também. Essas havemos de colocá-las junto às árvores cá de fora do hospital, aquelas que dão sombra aos carros parados nos semáforos. Mandei vir para aqui todas as casas, porque as casas já não estão lá nos sítios. Onde tu não estás já nem o meu pai e a Eunice abalou sem dizer água vai. E os meus sobrinhos um homem e uma mulher com filhos deles. Mais que fazer.
Assim que descarregarem as coisas e se juntar gente a perguntar-se o que é esta confusão. O cão olha para mim a abanar a cauda. E vêem-me do lado de lá da rua, impossível passar despercebido. Um homem de sobretudo e sapatos que magoam já sem chaves que ficaram na mesinha de vidro. Devem estar por aí. O meu irmão e o outro que sorri em permanência, a bater nos vidros dos carros e a estender a mão, sem dente nenhum. E o meu irmão reparo também já não tem dentes. E sorri também do lado de lá da rua. Poderemos agora organizar convenientemente a nossa casa que não é nenhuma das outras casas.
E depois de passarmos o dia a segurar à vez na trela do cão vamos os três bater nos vidros dos carros estender a mão a implorar moedas que agradecemos com um sorriso de boca aberta escancarada. E se o dia correr bem ao fim da tarde, ao anoitecer, quando ainda não é bem uma coisa nem outra, entramos contentes no café do lado de lá, a enfiar um bagaço nas gengivas.
E antes de adormecermos os três encolhidos mais o cão. Debaixo das árvores que de dia dão sombra aos carros em frente ao hospital. Maravilhados de aguardente elogiamos a imponência do nosso relógio
parado para sempre
parado desde sempre parado
no minuto em que o comprámos.
Eu vinha povoado de supostos fantasmas
Trazia uma ou outra vingança por consumar
Nesses dias em que desocupado
De grandes desgraças traições anseios
Eu vinha apenas vindo quando te atravessaste
Intransponível
Nesse caminho que fazia só fazendo
Pouco alerta mudo impávido
Quando olhava sem bem olhar via só o que queria
Mesmo no que ver me custava acreditar
E foi quando o teu sorriso
Esse meio sorriso gioconda
Se tornou primeiro aos olhos depois ao tacto
Intransponível
E o caminho que fazia só indo desocupado
Esbarrou no que queríamos e vejo hoje
Mais que só olhar
Que o teu sorriso
Gioconda
Meio sorriso
É uma desgraça impávida
Límpido como não soubera haver uma boca
Como dizer líquida
Quase líquida
No pouco que lhe podemos saber
Meio sorriso permanente imutável
Que penso que é por nos amares
E por veres para além do que eu
Despovoado
Já sem grandes vinganças por consumar
Desvanecido
Quase líquido também
Que nos amares que nos amarmos
Poderá quem sabe matar anseios receios
De traições fantasmas
Serena certeza que líquida
Quase meia boca
Me faz o caminho só na tua direcção
Onde pareces saber que esperas
Serena
Gioconda
Que vamos durar sem mesmo sabermos
Dadas as mãos as mãos dadas
Intransponíveis
Serão duas aos olhos ao tacto parecem menos
E são tudo o que temos
E são tudo
Rodrigo Guedes de Carvalho
In a Casa Quieta, Lisboa, Dom Quixote, 2005