E saio. A noite pesa, esmaga. Nos
Passeios de lajedo arrastam-se as impuras.
Ó moles hospitais! Sai das embocaduras
Um sopro que arripia os ombros quase nus.

Cercam-me as lojas, tépidas. Eu penso
Ver círios laterais, ver filas de capelas,
Com santos e fiéis, andores, ramos, velas,
Em uma catedral de um comprimento imenso.

As burguesinhas do Catolicismo
Resvalam pelo chão minado pelos canos;
E lembram-me, ao chorar doente dos pianos,
As freiras que os jejuns matavam de histerismo.

Num cutileiro, de avental, ao torno,
Um forjador maneja um malho, rubramente;
E de uma padaria exala-se, inda quente,
Um cheiro salutar e honesto a pão no forno.

E eu que medito um livro que exacerbe,
Quisera que o real e a análise mo dessem;
Casas de confecções e modas resplandecem;
Pelas vitrines olha um ratoneiro imberbe.

Longas descidas! Não poder pintar
Com versos magistrais, salubres e sinceros,
A esguia difusão dos vossos reverberos,
E a vossa palidez romântica e lunar!

Que grande cobra, a lúbrica pessoa,
Que espartilhada escolhe uns xales com
debuxo!
Sua excelência atrai, magnética, entre luxo,
Que ao longo dos balcões de mogno se amontoa.

E aquela velha, de bandós! Por vezes,
A sua traîne imita um leque antigo, aberto,
Nas barras verticais, a duas tintas. Perto,
Escarvam, à vitória, os seus mecklemburgueses.

Desdobram-se tecidos estrangeiros;
Plantas ornamentais secam nos mostradores;
Flocos de pós-de-arroz pairam sufocadores,
E em nuvens de cetins requebram-se os caixeiros.

Mas tudo cansa! Apagam-se nas frentes
Os candelabros, como estrelas, pouco a pouco;
Da solidão regouga um cauteleiro rouco;
Tornam-se mausoléus as armações fulgentes.

«Dó da miséria!... Compaixão de mim!...»
E, nas esquinas, calvo, eterno, sem repouso,
Pede-me sempre esmola um homenzinho idoso,
Meu velho professor nas aulas de Latim!

 

Obra Completa de Cesário Verde, 4ª edição, organizada, prefaciada e anotada por Joel Serrão, Lisboa, Livros Horizonte, 1983.

 

 

 

 

O terceiro momento do itinerário intitula-se «Ao gás». O caminhante solitário sente-se esmagado pelos cenários  nocturnos da miséria humana que lhe provocam  uma espécie de estado alucinado. Assim, as imagens da cidade são associadas a outras imagens igualmente tristes e degradantes. A partir de um jogo de contrastes, o narrador evidencia  a hipocrisia de certos comportamentos sociais e religiosos  para mostrar que a burguesia citadina é tão doente e miserável como as impuras que se arrastam pelas ruas da cidade. A comparação ainda é mais evidente quando o  narrador realça o trabalho honesto daqueles que vivem a vida a trabalhar mas que a cidade aprisiona. A última estrofe sintetiza a dor do poeta perante uma realidade tão perversa.



À DESCOBERTA

O Progresso Social em Portugal no final do século XIX

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http://ribatejo.com/hp/cronologia/crono_1851_1875.html


Cesário Verde

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