A ESCOLHA DE JOSÉ

PARTE 1
Universidade de Perugia
Docente: Dr.ª Paula Limão

Nota: Dois * indicam interferência da L1 ou menor adequação/desadequação à norma.

Eram nove horas de um dia claro, em Dezembro, quando José saltou para um comboio quase em andamento. Saltou para o vagão  com um salto desajeitado mas enérgico, olhou à sua volta à procura de uma carruagem tranquila onde pudesse dormir e **fez estrada entre a gente.
A última carruagem junto ao vidro estava completamente vazia, naquele lugar onde o sol batia quente na sua fronte, José sentindo-se aconchegado dormitou com as pernas esticadas, apoiadas  no banco da frente.
Depois de passadas algumas estações o comboio parou; um grupo de homens grandes apinhou-se junto à saída. José com os olhos ainda entreabertos aproximou-se da multidão que de repente se dispersou na direcção de uma estradinha  escorregadia.
Após alguns minutos os homens chegaram à frente de um grande edifício de cimento escuro e malcheiroso. Num primeiro momento,  José experimentou uma sensação de peso e de náusea e teve um enorme desejo de ir-se embora, mas não podia. Desta vez  tinha de ir até ao fim e, além disso, que importava? Já não tinha mais nada a perder. José estava imóvel, no centro do edifício, quando um homem com um chapéu estranho de papel aproximou-se e disse-lhe:
- Tu és aquele novo?
-  Sim, respondeu com pouca convicção.
- Bem, vai com os outros e faz-te explicar qual é a tua tarefa ao fulano com o fato-macaco amarelo e obedece a tudo o que ele te diz.
Um pouco confuso, José apressou-se a juntar-se aos seus colegas de trabalho e desapareceu por detrás de uma grande porta de aço. Tinham passado quatro meses que todas as manhãs, à mesma hora, homem e comboio  se encontravam para aquela breve viagem, que o conduzia, como pensava, àquela realidade absurda. José
**era atormentado por aquela paisagem com a relva queimada pelo sol, as árvores murchas e encurvadas na direcção da terra ardente, aquela que vislumbrava todas as manhãs pelo vidro da última carruagem. Mas, tinha a convicção que outrora aquelas árvores tinham sido luxuriantes e as colinas sorridentes e resplandecentes. No entanto, tudo mudara depois de ter sido construído aquele horrível edifício, tudo **se tinha fealdado e perdido a sua original beleza.
Também José, já de algum tempo àquela parte, se sentia envelhecido e com falta de energia; tinha uma saudade estranha, já que se tinha apercebido de estar só há demasiado tempo.
Tinha necessidade de uma companhia, de uma intima companhia  e este pensamento deixava-o em crise.  Para evitar de pensar tinha concentrado todos os seus esforços  no novo trabalho, apesar de o repugnar, mas tinha de o fazer, e com zelo, e aos seus colegas dizia sempre:
- No fundo é um trabalho, não é?  e além disso estou-me absolutamente nas tintas.
Numa manhã incerta e chuvosa na qual, meio a dormir tentava convencer-se que a sua era uma missão, sentou-se  ao pé de si uma pretinha, muito pequena, com um ar desajeitado.  Assim que a viu José arregalou os olhos e ficou quase
**fulgurado. Sem demora congeminou um pretexto para atrair a atenção da rapariga e de repente desapertou o casaco remendado, inclinando-se para a frente, para mostrar claramente a pistola que tinha atada com um fio à cintura.
De início a rapariga não a notou, depois esbugalhou os olhos repetidamente, procurando compreender que tipo de pessoa ele
**fosse.  Quando meia apavorada levantou o olhar e viu a cara satisfeita e risonha de José que a observava e que ao mesmo tempo acariciava a sua jóia. Depois, no silêncio da carruagem vazia aproximou-se da sua orelha e sussurrou-lhe:
- Esta é uma arma perigosa, menina, não é permitido a todos trazê-la. Nunca tinha visto ninguém com uma pistola desta espécie, pois não? A pretinha continuava a observá-lo, atónita e ao mesmo tempo interessada, corroída pela curiosidade.
- Você com certeza perguntará a si própria para que serve, e eu lho direi: este é o instrumento do meu trabalho!”.
A pobrezinha cada vez mais assustada sobressaltou-se de medo e disse-lhe:
- Meu Deus! Então você é um daqueles que acabam no jornal ao lado dos nomes das suas vitimas!
José retraiu-se, quase horrorizado:  - Não, não, menina! Eu sou uma pessoa que defende a Humanidade.  É que, onde há um trabalho infame, mas infelizmente indispensável, aí estou eu…
Desta vez chamaram-me ali do matadouro para matar mil vacas para a salvação do mundo, mas como poderá entender estas coisas, é tão jovem!”
A rapariga interveio com prontidão: - Você fala das vacas que enlouquecem?
**Brava menina! Eu mato o mal e este trabalho às vezes  é mesmo muito perigoso, porque algumas vacas são tão loucas que para as matar é necessário um dia inteiro. Se as visse!…, debatem-se, escoiceiam, atiram-se ao chão como porcos na lama. Mas eu não tenho medo, estou-me borrifando para o que possa acontecer.
Mas, então você é um herói, e há muito tempo que faz este trabalho?
José era orgulhosíssimo:  - Pois, bem, são mais ou menos quatro meses . Primeiro era um vagabundo, mas agora tornei-me um homem sério. E, desde que decidir tomar este comboio, a minha vida mudou, e agora….. .José foi interrompido pela menina que de um saltou se ergueu e se aproximou apressada da saída.
O comboio parou. José olhou para fora da janela e apercebeu-se que aquela era a paragem anterior à sua. Logo o olhar se depositou numa placa onde se lia “Centro de reabilitação mental”, e notou pela primeira vez ser um grande edifício cinzento, semelhante a um hospital, mas com as janelas cerradas com grades e envolto de espessas e sombrias redes metálicas.
A pretinha já tinha aberto a porta quando voltando-se para José com um sorriso aberto lhe bradou: 
-  Eu desço aqui, até amanhã. E o comboio voltou a partir.
Desde aquele dia, todas as manhãs, José encontrava-se com a nova companheira e todas as manhãs inventava os novos feitos que tinha levado a cabo para a salvação da humanidade. Ela ouvia-o sempre com grande emoção e olhava-o com paixão, com aqueles olhos pequenos, que se escondiam tímidos por detrás de um grande par de óculos. Habituou-se também a encontrá-lo à hora do almoço durante a pausa, quando ela tinha liberdade de sair. Mas, encontravam-se sempre a meio do caminho, porque José julgava o seu local de trabalho impróprio a uma mulher. Não obstante tivesse vivido pela estrada,  durante os seus cinquenta e dois anos de vida, tinha desenvolvido um sentido profundo de respeito pelos outros e da liberdade humana, ainda que se a sua vida fosse repleta de atitudes rudes e extravagantes. No entanto, naquele momento sentia-se satisfeito, e comportava-se como um rapazinho.
Numa folha de papel, que trazia sempre consigo, tomara nota de todos os horários nocturnos do comboio, de modo que frequentemente se encontrava com a sua pretinha.
Acocorava-se por debaixo da janela da sua formosa que vivia no primeiro andar entoando mugidos repetidos. Após algum tempo saia Fernandinho, o velho guarda-noturno do hospital, ex-militar da guerra em África,  um homenzinho gordo e olheirento que usava óculos,  que saltitando se dirigia às traseiras do edifício e gritava sempre:    - Quem vem lá? Diga a senha!
Logo a seguir José rapidamente escapulia-se no átrio e desaparecia na escuridão do longo corredor.  De manhã, no trabalho, os colegas que sempre o viam meio adormecido, faziam troça:
- Ficas  definhado, diziam-lhe,  - Se continuas deste modo não serás tu aquele que matará as vacas, mas pelo contrário serão elas que acabarão por te matar. E começavam a rir ruidosamente, enchendo-o de palmadas amigáveis nas costas.
José fingia zangar-se, mas na realidade era muito orgulhoso pela fama que tinha conquistado como mulherengo. Tinham passado muitos meses desde que José começara a trabalhar no matadouro, e o Verão tinha acabado. A temperatura começou a diminuir sensivelmente, o sol já não era tão quente pela manhã e o frio à tarde penetrante. A sua tarefa estava quase terminada e José não se sentia já capaz de continuar a desempenhar aquele papel de palatino da justiça. O mercado alimentício tinha novamente mudado de estratégia comercial, era o momento da grande ruína da carne suína. De facto corria a voz que alguns porcos tinham sido avistados nos arredores da auto-estrada, tentando fugirem à morte. José sentia-se enganado, desiludido. Também a sua pretinha, o remédio para a sua solidão, tinha desaparecido do seu coração juntamente com todos os seus sonhos e portanto já não havia motivo de ficar ainda naquele lugar triste e repugnante.
Assim numa manhã de meados de Setembro, homem e comboio encontraram-se novamente à mesma hora, mas desta vez, para um destino novo, ainda desconhecido.

continuação

© Instituto Camões, 2001