A ESCOLHA DE JOSÉ

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PARTE 2
Leitorado Português da Universidade de
Vigo
Leitor: Dr. Manuel Barroso

Nota: Dois * indicam interferência da L1 ou menor adequação/desadequação à norma.

De facto, tudo **parece ter sido produto do acaso; tanta era a incerteza e algum desencanto na cabeça do José.
Afinal de contas, que importava o novo destino?
A decisão sobre o destino nem sequer era a matéria mais importante na cabeça do José. Agora, apenas lhe importava passar algum tempo entre um copo de vinho branco e uma fumaça de tabaco barato na taberna da estação. Nem sequer os seus óculos meio engordurados pelo vapor do seu anterior trabalho o levavam a mudar de atitude. Entre uma e outra fumaça, fazia um prolongado estender de olhar para um espaço no infinito virtual que lhe era completamente ausente. Claro, que de vez em quando olhava para o copo que tinha por companheiro.
Chegava um e outro viajante... apitava mais um comboio; parecia que nem sequer estava num apeadeiro. Ao lado, dormitava um mendigo, no banco de madeira grossa, antes certamente alvo de alguma pintura, agora pegajoso pelo lustro de gordura humana entre umas quantas cabeças de pregos enferrujados. Este outro companheiro de infortúnio só se fazia notar pelo cheiro que libertava e pelo ressonar de escape livre. No seu sonho... sabe-se lá por onde andaria a viajar!
Entretanto, sem querer, com um pequeno movimento involuntário do cotovelo, o José deixou entornar sobre o rosto encoberto entre as barbas grisalhas e sujas do mendigo, que quase tinha o seu colo como travesseiro, o que lhe restava do seu copo de tinto.
- “Bendito seja Deus, hoje a chuva sabe a vinho branco!”, exclamou o mendigo, após ter dado uns quantos arrepios naquele mato de pelos sujos que lhe cobriam a cara. E, nisto, levanta a sobrancelha que estava por baixo da pala de uma boina azeitada com gordura lixiviante e, ao ver o José, diz-lhe: - “Olha lá pá ! Se tu és Cristo, manda mais uma chuvada como esta! Há três dias quem nem cheiro uma gotinha!”
E... esboçou um sorriso. Nesse momento parecia ter acabado a solidão do José. Ao menos já
**houve uma distracção... um factor de interrupção à sua ausência do real.
Com uma cara de algum espanto, olhou para o lado e disse: - “Caramba, era só o que me faltava! Uuuufff... este cheira de forma diferente... será de algum outro matadouro?”
É verdade que parecia haver alguma ironia na expressão de José; no entanto, o cheiro que exalava do mendigo era muito forte e desagradável.
José continuou: - “E tu... onde vives?” Responde-lhe, com voz rouca, o mendigo: “No mundo. Talvez mais divertido que o teu! “ E continuava o mendigo: “Aqui temos de tudo: Mulheres bonitas, putos a correr, gente apressada, velhos, novos, alguns ricaços, muitos bem vestidos, alguns maricas ... há de tudo e ... (nisto um pombo, acaba de pousar na outra ponta do banco onde ambos estavam)... até as pombas nos cumprimentam... são umas atrevidas! Muitas vezes abusam, comem-nos o farnel enquanto passamos pelas brasas! Mas são porreiras... vão, voltam... são boa companhia!”
“E tu, companheiro! Também és destes que costumam vir aqui perguntar-me por papéis?”, perguntou o mendigo ao José.  “É que de papéis sei eu muito... ou melhor, sei de papéis, de cartões de... olha! A minha cama é ali, vês?” (dirigindo o olhar para o espaço entre outro banco da estação e a parede). Continuava, sem que José tivesse oportunidade de lhe responder; parecia que tinha uma imensidão de coisas que contar: - “Pois, a minha cama é de cartão... quando se estraga, é fácil... vou ao supermercado e trago mais caixotes... é só abrir e... já está... boa noite e uma garrafa!”.
Nisto o José interpelou o mendigo: - “Então porque é que hoje vieste dormir para aqui, se afinal a tua cama é além?”.
“Estes gajos são mesmo parvos!” , exclamou o mendigo... “... são doutores, não conhecem a vida. Estudam, estudam, são importantes... mas, ... não sabem o que é fazer favor a um amigo!”. “Continuou: “ Ontem, o Zé Preto... o gajo estava mesmo em baixo... Tossia... uufff, é triste ver um companheiro chegar a isso! Já levava dois dias sem trincar fosse o que fosse... Tive de o deixar passar ali a noite... não conseguia andar! É que ele dorme debaixo da ponte; é lá que tem a sua tarimba! ... Como é que ele lá chegava? Nem pensar!”.
José estava a entrar num outro mundo. Começava agora a interessar-se pelo discurso do seu companheiro. Perguntou-lhe: “E o que é que aconteceu ao teu amigo?” Responde-lhe o mendigo: “ Durante a madrugada, ainda um pouco p’ró escuro, passaram por aqui um filhos de p... de cabeça rapada, viram ali um vulto entre os cartões e... começaram aos pontapés com ele; pobre companheiro! Vinham completamente bêbedos ou drogados, sei lá!
Tive que o esconder, senão davam cabo dele... racistas de m...! Um deles é filho de um parasita que me roubou a vida, conheci-o muito bem!”
“E o que é te roubou?, perguntou-lhe o José.
“A alma, a vida, a dignidade... Tudo! Trabalhava para o pai dele durante muitos anos, até que um dia...  O filho,
esse malandrim, foi sempre um borra-botas, como não atinava na escola o pai acabou por o pôr a tomar conta dos materiais no armazém...”. Entretanto, o José interpela o mendigo e pergunta-lhe: “Mas, afinal o que é que tu fazias? Olha!... Já agora, como é que te chamas?”
“Meu caro (respondeu de forma lente, pausada e com alguma amargura na expressão desgastada pela vida), a vida é uma caixinha de surpresas! O nosso fado é assim! ... Ah... o meu nome? ... há quanto tempo ninguém me perguntava o nome!  ... mas, oh amigo, o que é que interessa o meu nome se eu só sou um corpo sujo que apenas incomoda?”
João caiu num verdadeiro alçapão emocional. Estava aterrado com o discurso deste seu interlocutor.
Voltou a insistir: - “Mas afinal, continuas a não me dizer o teu nome, e nem me disseste o que é que o pai do cabeça rapada teve a ver contigo?”
Ambos ficaram calados por alguns instantes. Começava a estabelecer-se um envolvimento
“Poeta é como me chamam os amigos, sim... os meus companheiros! Eles também são poetas... são uns camaradas! Mas o nome que eu tive... em tempos... era Luís Almeida”, respondeu o mendigo.
“Os tempos acabaram quase por me fazer esquecer o meu verdadeiro nome”, continuava o mendigo.
A empatia entre estas duas pessoas começava a ser evidente, singulares nas respectivas formas de vida mas semelhantes no destino.
Nisto, o José tomou consciência de que já sabia imenso sobre o seu parceiro, no entanto, nem sequer lhe tinha dito o seu próprio nome e... com algum impulso, exclamou: “Desculpe lá amigo! Também ainda não te disse o meu nome e já te estava aqui a fazer mil perguntas. Chamo-me José e estou aqui para fazer... nem sei o quê!”
“Oh amigo Poeta, chamo-te assim, porque me parece ser bonito... afinal parece que já começo a ser teu amigo, também, não é verdade? Então como é que vieste parar a esta vida... a este lugar?”, perguntava o José.
A resposta a esta pergunta foi demorada. O Poeta olhava, olhava... parecia andar à procura de alguma ajuda no infinito.
De repente, fixou os olhos num casal que levava um menino pela mão e começou a descrever:
“- Há uns anos, quando ainda vivia o outro, o Almeida, também havia passeios com um menino... o que ele mais gostava era de guloseimas do quiosque do velho André. Tudo foi por água abaixo!
Trabalhava nesse tempo no porto, na estiva... era duro! A minha pele era acastanhada pelo sol e temperada com o sal dos bacalhaus que descarregava diariamente. Tinha pouco dinheiro, mas ia chegando para fazer uma vida honrada, para mim e para minha família.
Um dia, ao abrir um fardo de bacalhau reparei que havia um vulto de plástico muito bem apertado. É claro, que a curiosidade foi grande e... acabei por abrir o saco. Era uma massa branca suja! Era droga!
Nisto, um companheiro, olhou para mim e disse-me: - É pá! Não toques nisso! ... o patrão não quer que se rompam esses sacos... é perigoso!
Já não foi a horas! Chegaram dois capangas, comandados pelo filho do patrão, deram-me uma surra... O meu companheiro acabou por se esconder e... afinal foi ele que me acabou por levar à enfermaria do porto para me tratarem. Nunca me esquecerei, grande amigo!
A partir desse momento tudo me saiu mal. Fiquei sem emprego. Tinha ameaças constantes...
A minha mulher acabou por ir para a terra, na Beira Alta. Levou o miúdo. Eu não podia ir... aqui era o único lugar onde podia trabalhar... da aldeia já eu tinha vindo, porque lá não havia nada.
Enfim... o desemprego era muito grande. Comecei por recolher cartões, ferro velho... com algum dinheiro que ia apurando mandava para a terra. Mas isso acabou! Um dia sem comer... outro dia expulso da pensão por não ter como pagar a renda... acabei por vir para aqui. Para isto!
Há doze anos que não vejo a minha gente. Eles não sabem de mim. Se calhar já não me conhecem!”
Continua o Poeta – “Disse o Pulgas, outro companheiro deste fado, que há uns tempos andou por aqui uma assistente social à procura de um tal Luís que era beirão... mas por esse nome ninguém me identificou. Olhe amigo... tem sido assim, há muitos anos!
Tenho saudades da minha família... não sei se alguma vez mais conseguirei estar com eles.
Agora tudo é muito complicado... sem dinheiro, com a saúde neste estado!”
Pela forma como o José contemplava o Poeta parecia ter esquecido a sua passagem pelo matadouro... ou mesmo, ter esquecido a sua pretinha.
Porém, cada um no seu destino tinham muito que falar, que contar... A simplicidade com que o mendigo, o Poeta, contou a sua história pessoal, fez reviver a saudade do José pela sua amiga
Afinal de contas, a vida tinha sido hostil para os dois. Se um andava numa vida errante, outro, estacionara na errante vida.
José, como era um viajante nato, encontrando-se agora numa situação que o envolveu de forma muito especial, ficou sem saber o que fazer. A procura de soluções para cada um passava por tantas e enormes dificuldades. O sistema era complicado... porém, a coragem de qualquer deles era grande.
Quem sabe se o José ao ajudar o seu novo amigo, o Poeta – Luís Almeida, poderia encontrar um caminho para recuperar a sua apaixonada
Tantas e tantas e tantas ideias passaram pela cabeça do José.
Deixar abandonado um amigo era coisa que não lhe passava pela cabeça. Será que tinha capacidade para fazer com que o Luís Almeida saísse daquele mundo? Tudo era um oceano de dúvidas.
Como estavam na estação... porque não viajar? Mas... para onde?
Se era importante sair daquele cenário degradante, não menos importante era que se fizesse uma viagem de combate a este e a todos os outros mundos de isolamento e degradação humana.
Essa era o projecto mais difícil de implementar.
Porém, esse projecto acabara de dar o seu primeiro passo: - O José convidara o Luís Almeida – O Poeta, a almoçar uma sopa quente e um bitoque, acompanhado de uma garrafa de vinho bem fresquinho.
O amanhã desse novo projecto ia ser organizado, passo a passo, de acordo com a possibilidade e concordância de cada um deles.

© Instituto Camões, 2001