Turismo Literário |
Apenas
entrei neste lugar tão cheio de solidão e choro, tudo mudou.
Repentinamente nuvens vindas dum passado que eu mal conhecia cobriram o céu:
começou a chover. Era uma chuva lenta e antiga, daquelas que se sentem
mais na alma que sobre o corpo. Quase cheguei a pensar que o Cemitério
dos Prazeres estivesse à minha espera. Quem foi que me trouxe até aqui?
De quem é que eu estava à procura? Naquele momento de dispersão vi
quatro sombras correrem entre os túmulos, no fundo do cemitério. Sombras
que não tinham sobre elas um corpo que as justificasse. Distingui
bastante claramente só duas das quatro: a do Ricardo Reis, com um livro
debaixo do braço, e a do Fernando Pessoa, com o seu perfil tão
conhecido. Foi fácil imaginar de quem eram as duas restantes. Como raios
de sol, as sombras eram projectadas todas dum mesmo corpo que, como já
disse, era invisível. Num momento tive a certeza de que estava a ver o
mundo a preto e branco. Em que ano era aquele momento? O calendário dizia
2000, o mundo à minha volta dizia 1936. Passeei pelo cemitério com a
esperança de ver outra vez as sombras, mas nada aconteceu. Decidi, então,
voltar a falar com a minha guia aqui em Lisboa. Apanhei um eléctrico e
fui até ao Cais do Sodré. Subi a Rua do Alecrim, sem esquecer de
cumprimentar a estátua do Eça de Queirós, à minha esquerda. Passando
pela Praça Luís de Camões, parei para descansar debaixo do
cavalheiro-poeta, com sentimentos de respeito e admiração por ele.
Continuei a minha subida até ao Largo do Calhariz, onde voltei à
esquerda para a Rua de Santa Catarina. No fim desta ruazinha, o meu
“caminho de estátuas” acabou[1].
A
chuva continuava devagar e quase imperceptível e eu, sentado à sombra do
Adamastor, tive a impressão
de que ele estava chorando. -
Olha, eu fui até onde tu me disseste, mas do que eu estava à procura, só
encontrei a sombra! Ainda
não tinha acabado de dizer estas palavras, já estava arrependido de ter
utilizado aquele tom demasiado áspero. O Adamastor, com aquela sua
expressão entre a dor sem-fim e a raiva absoluta, respondeu-me: -
Tiveste muita sorte em encontrar uma sombra. Ai de mim, eu... nem aquela.
Já quando me fizeste aquela primeira pergunta to disse: vi pela última
vez aquele homem que tu chamas Ricardo Reis e “aquele-outro” Fernando
Pessoa a irem-se embora juntos na direcção dos passos deles, que era o
Cemitério dos Prazeres. Mas tudo isso aconteceu há já 64 anos. Não há
dúvida sobre o facto de que eles foram por ali e isso foi o que antes eu
te disse. O que não te disse, e que tu subentendeste, foi que os terias
encontrado ainda naquele lugar. Lembra-te, meu jovem amigo, que só eu,
pedra e condenação, raiva e paixão, desespero e inquietude, permaneço
sempre imóvel. É esta a minha maldição: a minha imóvel eternidade.
Tudo o que não é Adamastor, até que sejam sombras de homens esquecidos
e mortos, tem o movimento como única lei do seu próprio ser ou não-ser.-
“. . . .Assi contava; e, cum medonho choro, / Súbito de ante os olhos
se apartou./ Desfez-se a nuvem negra, e cum sonoro / Bramido muito longe o
mar soou.. . . ” [2] Estátua
do Adamastor no Alto de Santa Catarina. Naquele
momento, percebi completamente o que Ricardo Reis tinha encontrado no Alto
de Santa Catarina. Um lugar imóvel com que contentar-se, pois o espectáculo
do mundo já não oferecia mais nenhuma
sabedoria. Já não chovia, mas a
minha primeira impressão de choro no seu rosto estava ainda mais forte:
era, agora, uma certeza. Como eram verdadeiras as lágrimas no meu rosto.
O tom com que ele me falou, o seu olhar para o mar que antes dominava e
que não o salvou do engano, mas o traiu, tudo o que ele era naquele
momento e que sempre foi e que sempre será, mudou, ainda não sei onde,
alguma coisa dentro de mim. Nos
dias seguintes, voltei com frequência à sua sombra e conversei
longamente com ele. Descobri nele, além da infinda tristeza e raiva,
qualquer coisa de irónico. Foi mesmo ele que me aconselhou a ir ao
Mosteiro dos Jerónimos. Tinha ouvido alguns turistas falarem sobre aquele
Fernando Pessoa de que eu estava à procura e eles diziam terem visitado o
seu túmulo naquele lugar. Antes de me encontrar diante do que desejara
durante dias, no Mosteiro vi a epopeia inteira dos homens que fizeram o
povo português. Numa “adamastórea” imobilidade ali estava estendido
Luís Vaz de Camões com o capitão Vasco da Gama, ao seu lado, ambos com a
expressão do rosto de quem agora vive na “Ilha dos Amores” que o
primeiro cantou e o segundo já viveu. Não deixei de homenagear a memória
histórica de Alexandre Herculano. O
túmulo de Fernando Pessoa não provocou em mim nada do que esperava, de
Ricardo Reis só ficaram alguns versos impressos sobre um dos quatro lados
do túmulo. Tudo o que tinha para mudar e
acontecer já tinha acontecido e mudado ali no Alto de Santa Catarina e no
Cemitério dos Prazeres. À
saída do Mosteiro encontrei, pousado no chão, um livro : “The God of
The Labirinth”, de Herbert Quain. Alguém
o deixara ali fora para não ofender o seu hóspede? Ou o deixara para
alguém o encontrar e o ler? Não
sei. Naquele momento tive a certeza de que também o livro, como o cemitério,
estava à minha espera. Peguei nele e fui embora, correndo atrás da minha
própria sombra que, num instante de embriaguez visível, percebi como
sendo a de Ricardo Reis. Fui correndo sem
destino,
por
infinitos minutos, até que reparei estar imóvel às portas do Cemitério
dos Prazeres. Aqui, a minha sombra destacou-se de mim e evaporou-se no
interior. Eu, sem palavras, fiquei ainda uns segundos naquele lugar;
depois, quase com medo, fugi. Fui falar com o Adamastor, contando-lhe tudo o que tinha acontecido. -
Às vezes, caminhando pelas páginas da cidade de Lisboa e lendo as ruas
dos teus livros tu podes encontrar muito mais do que um túmulo junto ao
qual rezar ou uma estátua a quem agradecer. Assim
ele falou, assim eu o ouvi falar. |
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