O Instrumento de Sombras

Nas suas obras, Pedro Nunes sugeriu vários instrumentos que imaginava serem úteis para a navegação astronómica. Em causa estava a medida rigorosa da altura do Sol ou de outros astros, nomeadamente a Estrela Polar. Através dessa medida os pilotos calculavam a latitude do lugar. É muito provável que Pedro Nunes nunca tivesse mandado construir nem tivesse utilizado nenhum desses instrumentos pois, para ele, matemático interessado nos problemas teóricos, as suas criações, mesmo que imaginativas e úteis, eram sobretudo aplicações engenhosas da matemática e geometria. Deixava para outros as tarefas de aplicar e testar as suas ideias. De entre as suas concepções, há sobretudo três que perduraram e vieram a contribuir para o progresso da instrumentação científica: o Nónio, o Anel Náutico e o Instrumento de Sombras, de que se conhecem vários exemplares que vieram a ser utilizados.

Entre os instrumentos sugeridos por Pedro Nunes para a medida da altura do Sol, houve um que se tornou célebre pela aplicação que dele fez D. João de Castro (1500–1548), o grande intelectual viajante do século XVI. Trata-se de um instrumento simples, semelhante a um relógio solar, mas com uma inovação muito engenhosa que permitia fazer directamente as medidas das alturas através das sombras projectadas pelo Sol.

Com a tecnologia moderna, é fácil construir um instrumento que leia de forma imediata as alturas. Basta, por exemplo, construir uma base com uma estaca na vertical e estabelecer marcas na base que transformem o comprimento da sombra em alturas angulares. Mas isso implica que as marcas não estejam espaçadas uniformemente, pois o comprimento da sombra não é proporcional à altura angular [1] — enquanto o Sol está perto da vertical, o comprimento da sombra pouco varia; à medida que se aproxima do horizonte, a sombra aumenta rapidamente. Graduar devidamente uma escala que traduza em alturas angulares o comprimento da sombra não era pois tarefa fácil, que se pudesse confiar aos artífices da época. Se estes tinham já alguma dificuldade em dividir um ângulo recto em 90 graus, maiores problemas teriam para construir uma escala graduada de forma não uniforme. Pedro Nunes procurou pois uma maneira de transferir a sombra do Sol para um círculo graduado em graus que se encontrasse numa base plana. Se pensarmos um pouco na maneira de resolver o problema, veremos que não é fácil inventar uma solução. O instrumento de Nunes era de uma grande simplicidade, mas de um enorme engenho geométrico.

A base era uma placa, normalmente quadrada, onde se inscrevia um círculo e se traçava uma tangente a esse círculo. Montado sobre o círculo estava uma placa semelhante a um estilo ou gnómon, como nos relógios solares. Essa placa tinha a forma de um triângulo rectângulo isósceles, com os catetos de comprimento igual ao raio do círculo. O triângulo tinha um cateto assente sobre o raio do círculo que tocava na recta tangente, como se vê na figura. Traçava-se no círculo um diâmetro paralelo à tangente e graduava-se a circunferência de 0º para 90º, nas direcções do diâmetro para o ponto da tangente [2].

Para medir a altura do Sol, começava-se por colocar a base do instrumento na horizontal. Rodava-se depois essa base até que o bordo da sombra do triângulo coincidisse com a recta tangente. A altura do astro lia-se directamente no círculo graduado.

Figura 1. O instrumento de sombras de Pedro Nunes é constituído por uma base horizontal onde se fixa verticalmente uma placa em forma de triângulo rectângulo isósceles. Um dos catetos desse triângulo coincide com o raio OG, perpendicular à tangente HH’, outro fica na vertical sobre o ponto G. Marca-se o diâmetro BOC paralelo à tangente HH’ e gradua-se a circunferência de B para G e de C para G. Para medir a altura h do Sol, roda-se o conjunto até que a sombra do cateto GS, perpendicular à base, se alinhe com a tangente HH’. O ângulo h é igual ao ângulo horizontal h’ pois os triângulos OGP e SGP são iguais (são ambos rectângulos, têm um cateto comum, GP, e dois iguais: SG = OG). Por sua vez, o ângulo h’’ é igual a h’ pois são ângulos alternos internos nas paralelas HH’ e BC.

O princípio geométrico deste instrumento é simples, mas só depois de descoberto. Os raios de sol fazem um ângulo com o plano horizontal que corresponde à altura angular do astro. Ao colocar a placa de forma a fazer coincidir a sombra com a recta tangente, esse ângulo é transferido para a placa horizontal, onde se lê directamente. A demonstração geométrica vem explicada na Figura 1.

Pedro Nunes chamou ao seu aparelho «instrumento jacente no plano» e foi D. João de Castro que o designou por «instrumento de sombras». Este fidalgo dá-nos notícia da sua utilização prática no seu Roteiro de Lisboa a Goa, obra que fez publicar em 1538. Na sua viagem testou repetidamente o aparelho, tal como um outro, também referido como instrumento de sombras, e que se destinava a determinar a declinação da agulha magnética, isto é, o seu desvio em relação ao norte verdadeiro. Esse outro instrumento foi também sugerido por Pedro Nunes, mas Francisco Faleiro, que com o seu irmão Rui esteve associado à viagem de Fernão de Magalhães, tinha apresentado antes a mesma proposta [3].

O objectivo central dos testes de D. João de Castro era pôr à prova uma regra que Pedro Nunes tinha sugerido para medir «a altura do Sol a toda a hora» e que se baseava em duas alturas solares extrameridianas, ou seja, não tomadas no meio dia solar.

Uma semana após ter saído de Lisboa na sua primeira viagem à Índia, o nobre português mediu a altura do Sol em dois momentos diferentes e calculou encontrar-se a 29º 30’ de latitude norte. Pouco depois, o piloto obteve 29º 20’ pelo regime habitual de medição da altura do Sol ao meio dia e ficou «muito espantado», como o relata D. João de Castro, ao abrir o «escrito cerrado» que este lhe enviara e ver nele a indicação correcta da latitude. O procedimento de Pedro Nunes e as medidas do instrumento de sombras voltaram por várias vezes a dar bons resultados durante a viagem, pelo que Castro não cessou de lhe tecer louvores. Apesar disso, o instrumento não se difundiu entre os pilotos e só se volta a ter notícia do seu uso na navegação mais de cem anos depois, quando outro autor, António Carvalho da Costa, o ressuscita com algumas alterações na sua obra Via Astronómica, publicada em Lisboa em 1676.

Figura 2. Instrumento derivado da ideia original de Nunes, fabricado em Londres por Humphrey Cole (1530?–1591). Faz parte da colecção do Kunstgewerbemuseum de Berlin (K.4670)

A ideia, contudo, não se perdeu, como é possível observar por alguns instrumentos que sobreviveram. Conhecem-se, nomeadamente, exemplares existentes no Science Museum em Londres e no Kunstgewerbemuseum em Berlin. Como se pode ver pela Figura 2, o instrumento de Nunes foi simplificado pelos instrumentistas, retendo-se apenas um quarto de círculo, e foram-lhe acrescentadas diversas escalas que lhe permitiram o uso simultâneo como relógio de Sol.

Nuno Crato

[1] E sim à sua co-tangente.

[2] Com essa graduação mediam-se directamente as alturas do Sol. Se se quisesse medir distâncias zenitais, graduar-se-ia o círculo do ponto tangente para o diâmetro.

[3] A proposta de Nunes de instrumento de medida da declinação magnética foi apresentada no Tratado em defensam da carta de marear, incluído no Tratado da Esfera, de 1537. A sua proposta corresponde ao segundo de quatro processos apresentados por Francisco Faleiro em 1535 no seu Tratado del Sphera. O instrumento, tal muitos outros utilizados na navegação, encontram-se pormenorizadamente referidos em Luís de Albuquerque, Instrumentos de Navegação, Lisboa, Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, 1988 e António Estácio dos Reis, Medir Estrelas — Measuring Stars, Lisboa, CTT Correios de Portugal, 1997.


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