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CAPÍTULO I

«Por 1895, não sei bem como, achei-me estudando Direito na Faculdade de Paris, ou melhor, não estudando. Vagabundo da minha mocidade, após ter tentado vários fins para a minha vida e de todos igualmente desistido - sedento de Europa, resolvera transportar-me à grande capital. Logo me embrenhei por meios mais ou menos artísticos, e Gervásio Vila-Nova, que eu mal conhecia de Lisboa, volveu-se-me o companheiro de todas as horas. Curiosa personalidade essa de grande artista falido, ou antes, predestinado para a falência.» p. 63.

Ao leitor:
Contudo, Gervásio Vila-Nova  era uma figura misteriosa e sedutora. Gervásio conhecia o mundo artístico e, um dia,  apresentou Lúcio a uma mulher americana  muito fascinante mas estranha.
(...) No dia seguinte - uma esplêndida tarde de inverno, tépida, cheia de sol e céu azul -, tomando um fiacre, lá nos dirigimos ao grande restaurante. Sentamo-nos; mandou-se vir chá… Dez minutos não tinham decorrido, quando Gervásio me tocava no braço. Um grupo de oito pessoas entrava no salão - três mulheres, cinco homens. Das mulheres, duas eram loiras, pequeninas, de pele de rosas e leite; de corpos harmoniosos, sensuais - idênticas a tantas inglesas adoráveis. Mas a outra, em verdade, era qualquer coisa de sonhadoramente, de misteriosamente belo. Uma criatura alta, magra, de um rosto esguio de pele dourada - e uns cabelos fantásticos, de um ruivo incendiado, alucinante. A sua formosura era uma destas belezas que inspiram receio. Com efeito, mal a vi, a minha impressão foi de medo - de um medo semelhante ao que experimentamos em face do rosto de alguém que praticou uma acção enorme e monstruosa.
Ela sentou-se sem ruído; mas logo, vendo-nos, correu estendendo as mãos para o escultor:
- Meu caro, muito prazer em o encontrar… Falaram-me ontem muito bem de si… Um seu compatriota… um poeta… M. de Loureiro, julgo…
Foi difícil adivinhar o apelido português entre a pronúncia mesclada.
- Ah… Não o sabia em Paris - murmurou Gervásio.
E para mim, depois de me haver apresentado à estrangeira:
- Você conhece? Ricardo de Loureiro, o poeta das Brasas…
Que nunca lhe falara, que apenas o conhecia de vista e, sobretudo, que admirava intensamente a sua obra. p.65
Ao leitor:
Depois, sentaram-se e conversaram sobre arte.
(...) a conversa deslizou, não sei como, para a voluptuosidade na arte.
E então a americana bizarra logo protestou:
- Acho que não devem discutir o papel da voluptuosidade na arte porque, meus amigos, a voluptuosidade é uma arte - e, talvez, a mais bela de todas. p.66
Ao leitor:
Qual é o significado desta expressão: a voluptuosidade era uma arte? Vamos continuar a ler...
Porém, até hoje, raros a cultivaram nesse espírito. Venham cá, digam-me: fremir em espasmos de aurora, em êxtases de chama, ruivos de ânsia - não será um prazer bem mais arrepiado, bem mais intenso do que o vago calafrio de beleza que nos pode proporcionar uma tela genial, um poema de bronze? Sem dúvida, acreditem-me. Entretanto o que é necessário é saber vibrar esses espasmos, saber provocá-los. E eis o que ninguém sabe; eis no que ninguém pensa. Assim, para todos, os prazeres dos sentidos são a luxúria, e se resumem em amplexos brutais, em beijos húmidos, em carícias repugnantes, viscosas. Ah! mas aquele que fosse um grande artista e que, para matéria-prima, tomasse a voluptuosidade, que obras irreais de admiráveis não altearia!… Tinha o fogo, a luz, o ar, a água, e os sons, as cores, os aromas, os narcóticos e as sedas - tantos sensualismos novos ainda não explorados… Como eu me orgulharia de ser esse artista!… E sonho uma grande festa no meu palácio encantado, em que os maravilhasse de volúpia… em que fizesse descer sobre vós os arrepios misteriosos das luzes, dos fogos multicolores - e que a vossa carne, então, sentisse enfim o fogo e a luz, os perfumes e os sons, penetrando-a a dimaná-los, a esvaí-los, a matá-los!… Pois nunca atentaram na estranha voluptuosidade do fogo, na perversidade da água, nos requintes viciosos da luz?.. Eu confesso-lhes que sinto uma verdadeira excitação sexual - mas de desejos espiritualizados de beleza - ao mergulhar as minhas pernas todas nuas na água de um regato, ao contemplar um braseiro incandescente, ao deixar o meu corpo iluminar-se de torrentes eléctricas, luminosas… Meus amigos, creiam-me, não passam de uns bárbaros, por mais requintados, por mais complicados e artistas que presumam aparentar!  p. 66 Ao leitor:
Passado um mês Lúcio foi convidado a  ir a uma festa na casa da americana. Encontrou-se com Gervásio que lhe apresentou o conhecido poeta que Lúcio tanto admirava: Ricardo Loureiro. A americana recebeu-os e tudo era sumptuoso e deslumbrante - a sala, as luzes e até as cores da sua túnica  enlouqueciam. E antes da meia-noite - a americana disse:
Depois da ceia, é o espectáculo - o meu Triunfo! Quis condensar nele as minhas ideias sobre a voluptuosidade-arte. Luzes, corpos, aromas, o fogo e a água - tudo se reunirá numa orgia de carne espiritualizada em ouro!  p. 72
Ao leitor:
Mas como é que terá  terminado esta  festa misteriosa?
Porém nada valeu em face da última visão:
Raiaram mais densas as luzes, mais agudas e penetrantes, caindo agora, em jorros, do alto da cúpula - e o pano rasgou-se sobre um vago tempo asiático… Ao som de uma música pesada, rouca, longínqua - ela surgiu, a mulher fulva…
E começou dançando…
Envolvia-a uma túnica branca, listada de amarelo. Cabelos soltos, loucamente. Jóias fantásticas nas mãos; e os pés descalços, constelados…
Ai, como exprimir os seus passos silenciosos, húmidos, frios de cristal; o marulhar da sua carne ondeando; o álcool dos seus lábios que, num requinte, ela dourara - toda a harmonia esvaecida nos seus gestos; todo o horizonte difuso que o seu rodopiar suscitava, nevoadamente…Entretanto, ao fundo, numa ara misteriosa, o fogo ateara-se…
Vício a vício a túnica lhe ia resvalando, até que, num êxtase abafado, soçobrou a seus pés… Ah! nesse momento, em face à maravilha que nos varou, ninguém pôde conter um grito de assombro…
Quimérico e nu, o seu corpo subtilizado, erguia-se litúrgico entre mil cintilações irreais. Como os lábios, os bicos dos seios e o sexo estavam dourados - num ouro pálido, doentio. E toda ela serpenteava em misticismo escarlate a querer-se dar ao fogo…Mas o fogo repelia-a…Então, numa última perversidade, de novo tomou os véus e se ocultou, deixando apenas nu o sexo áureo - terrível flor de carne a estrebuchar agonias magentas…
Vencedora, tudo foi lume sobre ela…
E, outra vez desvendada - esbraseada e feroz, saltava agora por entre labaredas, rasgando-as: emaranhando, possuindo, todo o fogo bêbado que a cingia.
Mas finalmente, saciada após estranhas epilepsias, num salto prodigioso, como um meteoro - ruivo meteoro - ela veio tombar no lago que mil lâmpadas ocultas esbatiam de azul cendrado.
Então foi apoteose:
Toda a água azul, ao recebê-la, se volveu vermelha de brasas, encapelada, ardida pela sua carne que o fogo penetrara… E numa ânsia de se extinguir, possessa, a fera nua mergulhou… Mas quanto mais se abismava, mais era lume ao seu redor…
… Até que por fim, num mistério, o fogo se apagou em ouro e, morto, o seu corpo flutuou heráldico sobre as águas douradas - tranquilas, mortas também… p.75
Ao leitor:
Este episódio fantástico acabou.... Contudo, adivinha-se um novo  mistério na história. Quem será este poeta das Brasas que Lúcio conheceu momentos antes de viver uma experiência alucinante em casa da americana? ..Sabemos, na introdução, que esta personagem desempenhou um papel importante na vida de Lúcio ...e que houve um crime...mas que crime?

Convidamos o leitor a ler a versão integral deste testemunho «factual» para tentar desvendar o mistério.

Versão Completa do Conto:

A Confissão de Lúcio