Época Medieval

Renascimento em Portugal

Sob o Signo das Luzes

A Filosofia Portuguesa do Séc. XIX
até à Proclamação da República
A Filosofia Portuguesa depois de 1910

Luís António Vernei

Frontispício da 1.ª edição da célebre obra de Verney, Verdadeiro Método de Estudar

Figura cimeira do iluminismo português (n. Lisboa, 1718-m. Roma, 1792), efectuou os primeiros estudos no Colégio jesuíta de Santo Antão. Aluno de Filosofia no curso dos Oratorianos (1727-1730), viria a alcançar o bacharelato já na Univ. de Évora (1731) e o grau de licenciado e Mestre em Artes pela mesma Univ. em 1733. Porventura incompatibilizado com o ensino então ministrado nas escolas da Companhia de Jesus, fixou-se em Roma, aos 23 anos, desenvolvendo, fora da Pátria e até ao fim da sua vida, uma intensa actividade intelectual, com a generosa intenção de reformar o ensino e a mentalidade cultural em Portugal, podendo considerar-se a publicação do seu Verdadeiro Método de Estudar (1746), tanto pelo conteúdo como pela polémica gerada, como um dos mais dinâmicos factores de sistematização do ideário iluminista entre nós.

O seu projecto reformista abrange tanto o conteúdo dos curricula escolares como as práticas pedagógicas.

Sobre o pano de fundo do eclectismo vigente, entendido na época como condição de independência crítica, concebeu a Filos. como um meio geral de compreensão, de que a física experimental, na sua vertente newtoniana, seria a parte mais importante. Manifestação ainda desse anseio de independência da razão será a sua permanente crítica ao espírito de sistema evidenciado na obra de Descartes, razão por que proclamará, em expressão célebre, que «o verdadeiro sistema moderno é não ter sistema algum».

No que concerne às três artes do trivium, começando pela Lógica, Vernei proclamará, com insistência, a sua confiança na «lógica natural», a que não era estranho o ideal de uma simplificação do seu ensino. Pondo de parte o conteúdo curricular da «lógica escolástica», com as já habituais críticas ao abuso da teoria do silogismo, aos predicamentos, aos universais e às «segundas intenções», V. entendeu aquela disciplina à maneira de Locke, numa perspectiva sensista e psicologista e, por consequência, igualmente crítica perante a tese cartesiana das ideias inatas.

Crítico de Descartes no âmbito da origem das ideias, V. revelou-se um cartesiano no plano da Gramática. As suas diatribes contra o ensino do Latim pelo compêndio já bissecular do P. Manuel Álvares S. J., levaram-no a expressar, na Gramática Latina tratada por um método novo claro e fácil (1758), a concepção de uma ordem natural das palavras na sintaxe, comum a todas as línguas, tese nuclear das gramáticas cartesianas do séc. XVII, como também da gramática generativa contemporânea. Aquilo a que chamará «a parte filosófica da gramática» consiste, pois, no estudo dos «princípios gerais e inalteráveis» comuns a todas as línguas, nos quais deveria assentar uma boa estratégia de ensino do Latim. Tais princípios emanavam da «conexão essencial das palavras com os pensamentos lógicos». Ora, «sendo pois a ordem natural e lógica dos pensamentos a mesma em todos os homens», segue-se que «todas as línguas têm a mesma ordem natural de sintaxe», sendo meramente «acidental» a diversidade que nesse plano se verifica, nomeadamente no latim.

No plano da retórica, veiculou as teses fundamentais do neoclassicismo, sempre com visão crítica e algo acintosa perante o panorama da eloquência no século anterior. Partidário das excelências do «estilo natural», aquele em que as ideias se revelam adequadas à «realidade das coisas», valendo-se de vocábulos «próprios e puros», V. expressa a secular desconfiança platónica e augustiniana perante a arte da eloquência, sem contudo deixar de reconhecer a sua utilidade. Ora, se o conceito de estilo natural ou «estilo simples» que defendeu cabia plenamente no seio da lógica, à retórica restaria apenas a teoria da elocução e a consequente regulamentação do figurativo e do ornamental, empregues de acordo com o princípio clássico da negligentia diligens.

No âmbito da metafísica é sintomático o facto de, na parte do seu Verdadeiro Método de Estudar dedicada à Física, após exposição minuciosa dos novos preceitos metodológicos e epistemológicos desta disciplina e consequente rejeição da «física peripatética», defender que a indagação da existência do Espírito Eterno e Incriado, «causa e princípio de todas as coisas», deverá constituir «o principal empenho do filósofo, pois é esse o fundamento de toda a filosofia e religião». Se tal deverá constituir o principal objectivo da física experimental, é porque há uma relação entre o Absoluto e o Mundo, cuja base se encontrará nas consequências da ideia de Criação. Como diz no De re metaphysica, nada está no efeito que não esteja na causa, ou do mesmo modo ou de modo mais perfeito. Assim, defendeu o princípio da escolástica medieval segundo o qual Deus, como Causa Incriada, contém o efeito da sua acção criadora, só que de modo muito mais perfeito, como o menor no maior, excluindo todas aquelas coisas que contêm limitação: «A isto chamam os escolásticos 'contar eminentemente' (continere eminenter): estas duas palavras, se forem bem definidas, explicam o assunto de forma cómoda e fácil.»

Este tema acabará por postular a candente questão da religião natural, parte do problema mais vasto das relações entre a natureza e a graça, a razão e a revelação, eixo fulcral dos debates entre católicos e deístas, nos quais V. não poderia deixar de participar. Neste âmbito reconhece-se, com facilidade, que a posição do nosso crítico em nada difere da que fora anteriormente formulada pela escolástica: a natureza não contradiz a graça, mas aperfeiçoa-a! No séc. XVIII, o tema da religião natural e da moral natural fora intensamente mobilizado, do lado do catolicismo, contra a incredulidade, revestindo-se de forte valor apologético na luta contra o ateísmo. Todavia, desde que se coloque o problema da sua suficiência, V. não deixa lugar a dúvidas: «A razão e a revelação têm vínculo necessário e de ambas se compõe este todo da religião que nós devemos seguir e defender. Aquela justifica os motivos da nossa religião [...]. Esta explica aos mesmos filósofos aquilo que eles confusamente entendiam e lhes mostra que para conseguir o homem o seu fim, não basta somente a religião natural, mas se requerem outras muitas coisas.» A exclusividade de uma moral ou de uma religião natural não realizaria nunca a plenitude do humano, por ser a nossa razão limitada e falível. Nestes termos, do mesmo modo que a revelação alerta a razão contra os seus erros e falhas, assim esta erige em princípios de humana certeza o conteúdo da revelação, segura, no entanto, de que o que contradiz a revelação é falso.

Situando-nos do lado da questão da reforma dos métodos de ensino, outro eixo do seu pensamento, ela concentra-se em torno do conceito de «método», designação que incluiu no título da sua obra mais conhecida. As discussões em torno do «método» avolumavam-se desde os reformadores renascentistas da dialéctica e integraram-se, desde a Lógica de Port-Royal [La Logique ou l'Art de Penser (1662)], na quarta e última parte dos tratados de Lógica, logo após as três partes tradicionais dedicados às ideias, juízo e raciocínio. Por «método» V. entende, como era comum na época, uma ordem de disposição das ideias no discurso. Neste âmbito, tenderá a cristalizar como ordem de transmissão dos conteúdos de ensino, adaptada aos mecanismos naturais de recepção das ideias, no quadro mais vasto de uma lógica natural. Na ideia de natureza, V. fixara os atributos da simplicidade e da ordem, clamando pela necessidade da lógica artificial observar e determinar em leis «os modos com que a alma conhece e os meios de que se serve para se explicar», erigindo, com esta base, um protótipo de organização coerente do pensamento, com vista à fácil assimilação das doutrinas, por parte de quem aprende. Essa ordem encontrou-a na geometria e no método sintético dos geómetras, caminhando do simples ao complexo, do geral ao particular, das causas para os efeitos, como procedimento privilegiado de simplificação da exposição doutrinal e, porque definido a partir do conhecimento dos mecanismos de que a razão naturalmente se serve na recepção das ideias, entendido como «método natural».

Obras
Verdadeiro Método de Estudar, 1746 (edição org. por António Salgado Júnior, para os «Clássicos Sá da Costa», 5 vols.), Lisboa, 1949-1952; De Re Logica ad usum Lusitanorum Adolescentium Libri Sex, 1751; De Re Metaphysica ad usum Lusitanorum Adolescentium libri quatuor, 1753; De Re Physica ad usum Lusitanorum Adolescentium, 1758; Grammatica Latina tratada por num Methodo novo claro e fácil, 1758. Sobre os textos de Vernei em torno da polémica do Verdadeiro Método de Estudar, A. A. Banha de Andrade, Bibliografia da polémica verneiana, separata de Brotéria, vol. XLIX, fasc. 2-3, Lisboa, 1949.

Bibliografia
Maria Amélia Machado Santos, «Verney contra Genovesi, apontamentos para o estudo de 'De Re Logica'», separata de Biblos, XIV, Coimbra, 1939; id., «Vernei e o Bom Gosto», in Seara Nova, 1016-1017, Lisboa, 1947, pp. 42-46; Luís Cabral de Moncada, Um Iluminista Português do Século XVIII: Luiz António Verney, Coimbra, 1941; id., «Conceito e função da jurisprudência segundo Vernei », in Boletim do Ministério da Justiça, n.º 14, Lisboa, 1949; id., «Iluminismo Católico- Vernei, Muratori», in Estudos de História do Direito, vol. III, Coimbra, 1950; A. A. Banha de Andrade, Vernei e a Filosofia Portuguesa, Braga, 1946; id., Vernei e a Cultura do Seu Tempo, Coimbra, 1966; id., Vernei e a Projecção da Sua Obra, Lisboa, 1980; id., Contribuição para a História da Pedagogia em Portugal, Coimbra, 1981; id., Contribuição para a História da Mentalidade Pedagógica Portuguesa, Lisboa, 1982; id., A Reforma Pombalina dos Estudos Secundários (1759-1771); José V. de Pina Martins, «Temas verneianos», in Revista da Faculdade de Letras, Lisboa, 1960, III série, n.º 4; id., Epístola de Luís António Vernei ao Marquês de Valença, Figueira da Foz, 1961; id., «Um discurso de Luís António Vernei sobre a Aliança da Filosofia Moderna com a Teologia», in Revista da Universidade de Coimbra, Coimbra, 1962, vol. XX; Francisco da Gama Caeiro, «Para a história do Iluminismo brasileiro. Notas sobre a presença de Vernei no Brasil», separata da Revista da Faculdade de Educação, São Paulo, 1979; id., «Nótula sobre Vernei», separata da Revista da Universidade de Coimbra, vol. 31, Coimbra, 1984; José Esteves Pereira, «Natureza e Expressões do Saber», in Prelo, n.º 4, Lisboa, 1984, pp. 71-84; id., «Pensamento filosófico em Portugal. Conhecimento, razão e valores nos séculos XVIII e XIX», in Cultura, História e Filosofia, vol. V, Lisboa, 1986, pp. 751-781.

Pedro Calafate


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