Época Medieval

Renascimento em Portugal

Sob o Signo das Luzes

A Filosofia Portuguesa do Séc. XIX
até à Proclamação da República
A Filosofia Portuguesa depois de 1910

Frei Manuel do Cenáculo Vilas Boas

Frei Manuel do Cenáculo (pintura de autor desconhecido. Biblioteca Municipal de Évora)

Superior provincial da Ordem Terceira de São Francisco, presidente da Real Mesa Censória, bispo de Beja, arcebispo de Évora (n. Lisboa, 1724-m. Évora, 1814) no conjunto da sua actividade, figura de relevo do iluminismo em Portugal. Frequentou desde muito jovem as lições do P. João Baptista, da Congregação do Oratório. Aos 15 anos veste o hábito de franciscano da Ordem Terceira da Penitência e um ano depois frequenta as aulas de Frei Joaquim de São José, cuja orientação será marcadamente modernizante, coincidindo, aliás, com uma movimentação intelectual de crítica da Escolástica, a qual Cenáculo banzaria como tendo o seu início precisamente em 1740. Estudante da Universidade de Coimbra, frequenta o curso de Teologia e obtém o grau de doutor por aquela instituição, sendo igualmente nomeado lente de Artes do Colégio de São Pedro de Coimbra.


A orientação filosófica do franciscano não permanecerá sempre idêntica. Nos primeiros tempos de actividade docente, nomeadamente no curso proferido no Colégio das Artes em Coimbra (1749), notamos uma orientação «nitidamente escolástica, guiada pelos tratados do Estagirita e adaptada, quanto possível, ao pensamento de Duns Escoto» (F. da Gama Caeiro, Frei Manuel do Cenáculo, p. 14). Todavia, cedo as suas perspectivas se alterariam, pois as Conclusiones relativas ao mesmo curso denotam já algumas diferenças, com destaque para o reduzido interesse conferido à lógica escolástica e para a importância atribuída à História da Filosofia como propedêutica ao estudo das diversas faculdades ou disciplinas, no que virá a ser uma das notas principais das reformas pedagógicas pombalinas. Com efeito, entre as lições e as respectivas Conclusiones situa-se a viagem que em 1750 empreendeu a Roma, a qual se viria a revelar da maior importância na orientação marcadamente iluminista dos seus escritos posteriores, mas de um iluminismo cuja vertente principal é acentuadamente católica e onde as questões relativas à harmonia entre a Razão e a Fé, a Natureza e a Graça se revelarão fundamentais.

Entre as formas por que participa na atitude intelectual subjacente às «Luzes», notamos uma profunda aspiração de reforma da vida do homem em sociedade a que corresponde a eleição da pedagogia e da actividade política como meios privilegiados de intervenção reformadora. É, de facto, como pedagogo e reformador que devemos destacar a sua acção como Superior Provincial da Ordem Terceira, tendo a essa tarefa dedicado dois grossos vols. onde se compilam as suas diversas Disposições e ainda um 3.º vol. de Memórias Históricas do Ministério do Púlpito, dedicado à reforma da eloquência sacra sob o signo do De Doctrina Christiana, de Santo Agostinho. É ainda o pedagogo que encontraremos à frente da Real Mesa Censória e na junta de Instrução Literária, que lhe darão acesso a uma participação, em co-autoria, na redacção dos principais textos pombalinos relativos à reforma da Universidade de Coimbra. Já enquanto bispo de Beja, as suas múltiplas Instruções Pastorais sublinharão, com insistência, a missão social do clero na difusão e ensino dos conhecimentos técnico-científicos do seu tempo em articulação com uma actividade agrícola a cujas práticas ancestrais se pretendia obviar como meio de dignificação do homem alentejano. De realçar ainda a sua iniciativa na fundação de bibliotecas, museus e academias, revelando um espírito activo para quem a cultura representava uma forma elementar de existir.

Sobre um pano de fundo ecléctico, comum aos teóricos portugueses da 2.ª metade do séc. XVIII e, em boa medida, às várias correntes europeias das «Luzes», Cenáculo manifestará um gosto enciclopédico que transformava a Filosofia num «meio omnicompreensivo», abarcando todas as áreas do saber. Esta atitude ecléctica traduzia-se numa apertada crítica ao chamado «espírito de sistema» deixando transparecer uma concepção da Razão enquanto actividade dinâmica, no quadro de um saber em permanente evolução e inter-relação; numa constante abertura à «inovação» em perspectiva conciliadora que permitia salvaguardar os direitos fundamentais da Revelação; numa forte consciência de «período», aberta pelo desenvolvimento da História da Filosofia, sob o impulso de J. Brücker, desenvolvendo métodos comparativos que, ao elegerem o que antecipadamente se considera como o melhor do ponto de vista da Razão e da Verdade, lançavam ao mesmo tempo o estigma da condenação sobre épocas inteiras, consideradas como períodos de crise e decadência, fazendo, assim, da história da Filosofia um tribunal da Razão.

A caracterização do pensamento filosófico de Cenáculo pode postular-se num tríplice aspecto, já sublinhado pelos estudiosos da sua obra (Hernâni Cidade, Gama Caeiro), ou seja: o «matematismo»; o «gosto do real»; a crítica moderada da escolástica.

O primeiro aspecto reenvia-nos para a reforma da lógica no Renascimento, efectuada sob um cômputo eminentemente pedagogista e argumentativo, cabendo a Pedro Ramo o mérito histórico de ter sublinhado o papel da Matemática como modelo da organicidade e coerência que se tratava de generalizar a todos os domínios da argumentação dialéctica. A esse perfil organizativo e de disposição dos argumentos se virá a dar o nome de método, entendido enquanto quarta e última parte da Lógica, e cuja importância denota a persistência de uma razão argumentativa, consubstanciada num método pedagógico de exposição e transmissão do conhecimento. Transparece aqui o ideal de uma pedagogia que sublinha, cartesianamente, a simplicidade, a clareza e a distinção das ideias e cuja finalidade não é mais do que a eficácia na transmissão da verdade.

Assim, o «matematismo», ou melhor dito, o «método geométrico» consiste na generalização a todas as faculdades da clareza e ordem dos geómetras, nomeadamente no que se refere às humanidades e à própria teologia, de modo a conferir-lhes a uniformidade, força e evidência dos raciocínios geométricos. Deste modo, se se negava e criticava o «espírito metafísico de sistema», nem por isso se deixava de dar forte acolhimento ao «espírito geométrico de sistema», atendendo ao ideal pedagogista subjacente. É a partir deste quadro que se define e compreende a dimensão da crítica à Escolástica, enquanto vector do pensamento de Cenáculo, pois se consubstancia na contraposição sistemática entre a simplicidade, clareza e eficácia dos novos procedimentos pedagógicos, com a pedagogia da Companhia de Jesus, considerada como mera «ostentação de agudezas e prontidão de engenho», fomentando um «espírito duvidador que se não tem freio reduz tudo a incertezas». Todavia, a sua crítica não assume a radicalidade que encontramos em Verney, o seu eclectismo permite-lhe considerar a existência de uma «boa escolástica» que importava conservar na simplicidade e eficácia dos seus procedimentos originais.

Enfim, será esta atitude conciliadora e moderada que explica o esforço despendido na reabilitação e reintrodução do lulismo em Portugal, alvo das diatribes de Bacon, Descartes e Verney. Finalmente, o «gosto do real» coaduna-se com o desprezo pela especulação frívola e, por essa via, participava Cenáculo no movimento geral de intensa curiosidade, admiração e cultivo do desenvolvimento da filosofia natural. Neste âmbito, devemos realçar que a consideração da Natureza sob a perspectiva científica moderna se coaduna em Cenáculo - como, aliás, em Inácio Monteiro, em Teodoro de Almeida ou em Soares Barbosa - com uma vivência profundamente religiosa dessa mesma Natureza, a qual conduzirá à sua consideração num plano simbólico, quer dizer, enquanto símbolo dos atributos do seu autor. Note-se, todavia, que a forte presença desta intensa vivência religiosa não significa, como por vezes se pretende fazer crer, a presença de um factor de resistência perante o que se considera ser a modernidade, ou a cedência do «progresso» perante a força da «tradição». Pelo contrário, no chamado «período moderno» basta folhear com atenção a óptica de Newton, ou as obras de Leibniz, Malebranche ou Pascal, a quem a ciência deve boa parte do seu passo de gigante, para encontrar essa consideração da Natureza para lá da pura perspectiva científica num quadro simbólico de clara abertura ao divino. No âmbito desta atitude, a fé não se reveste de qualquer tipo de obstáculo epistemológico sendo, pelo contrário, um factor encorajador da pesquisa científico-racional, embora destinada a revelar a glória de Deus, mediante o conhecimento dos seus atributos: glória, sabedoria, bondade, poder, providência e beleza. Por isso, recomenda Cenáculo: «Não ponhamos longe de nós as maravilhas de Deus para nelas mais o reconhecermos e adorarmos.»

Sublinhe-se, por fim, a atenção que prestou às regras da eloquência, i. é, à retórica, visando fundamentalmente, como aliás a maioria dos tratadistas portugueses do séc. XVIII, a eloquência oral e religiosa. Em tom de crítica aos padrões do gosto imperantes no séc. anterior, que, em seu entender, convertiam os oradores em «maneiristas de frases de teatro» pelo «tom efeminado, delicioso e de galanteria», Cenáculo aponta a necessidade de adopção, na oratória do púlpito, das regras elementares da Poética do classicismo: o útil e o deleitável, a verdade e o verosímil, a arte e a natureza, a imitação dos modelos, a adaptação dos estilos ao auditório particular, mas traduzindo sempre um claro compromisso entre o padrão clássico e os princípios da retórica cristã, definidos por Santo Agostinho. Destaque-se, neste contexto, a crítica ao abuso das «regras» e ao tecnicismo excessivo daí decorrente, contrapondo a confiança na «natureza» e o estudo dos bons modelos, a Bíblia e os Padres, como elementos capazes de garantir, em certos casos, a eficácia e a eloquência do pregador. Deste modo, sem hostilizar o papel normativo e universal da retórica, Cenáculo valorizava, simultaneamente, o papel e a acção do «indivíduo» na criação, traduzindo já um ténue compromisso com os paradigmas do gosto romântico.

Obras
Conclusiones Philosophicas... (1747); Conclusiones Logico-Metaphysicas... (1748); Speciosissime Sui Factoris Genetrici Mariae Sanctissime... (1749); Conclusiones Philosophicas Critico-Rationalis de Historia Logicae... (1751); Advertências Criticas e Apologéticas sobre o juizo que nas matérias do B. Raimundo Lullo formou o Dr. Apollonio Philomuso... (1752); Elogio Fúnebre Do Padre Fr. Joaquim De S. Joseph, Doutor Theologo Conimbricense... (1757); Dissertação Theologica, Historica, Critica Sobre a Definibilidade do Mysterio da Conceição Immaculada de Maria Santissima... (1758); De repetendis fontibus doctriae, Moderatoris Provincialis tertii Ordinis Sancti Francisci... (1770); Continuação das noticias ecclesiasticas de 5 de Junho de 1771, para servir de supplemento a obra de Justino Febroni (1771); Disposições do Superior Provincial para a Observancia Regular e Literaria da Congregação da Ordem Terceira de S. Francisco destes reinos... (1776); Memorias Historicas do Ministerio do Púlpito por Hum Religioso da Ordem Terceira de S. Francisco (1776); Instrucção Pastoral (...) Sobre a Justiça Christã... (1784); Instrução Pastoral (...) Sobre as Virtudes da Ordem Natural... (1785); Instrução Pastoral (...) Sobre os Estudos Fysicos do Seu Clero (1786); Cuidados Literarios... (1791), Memorias Historicas e Appendix Segundo... (1794).

[Para uma referência completa, v. F. da Gama Caeiro, Frei Manuel do Cenáculo ...]

Bibliografia
Hernâni Cidade, Ensaio sobre a crise mental do século XVIII, Coimbra, 1929; id., Lições de cultura e literatura portuguesa, 2 vols., Coimbra, 1959; Francisco da Gama Caeiro, «Revivescências setecentistas do lulismo em Portugal., Rev. Port. Filos., XI, fasc. 3-4; id., Frei Manuel do Cenáculo, aspectos da sua actuação filosófica, Lisboa, 1959; id., Concepções Historiográficas Setecentistas na Obra de Frei Manuel do Cenáculo, Lisboa, 1978; Jacques Marcade, «D. Frei Manuel do Cenáculo, Provincial du Tiers Ordre Franciscain de la Province du Portugal. 1768-1777», in Arquivos do Centro Cultural Português, vol. III, Paris, 1971, pp. 431-458; id., Frei Manuel do Cenáculo Vilas Boas, Évêque de Beja, Archevêque D'Évora, Paris, 1978.

Pedro Calafate


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