Época Medieval

Renascimento em Portugal

Sob o Signo das Luzes

A Filosofia Portuguesa do Séc. XIX
até à Proclamação da República
A Filosofia Portuguesa depois de 1910

Francisco de Holanda


Auto-retrato de Francisco de Holanda em De Aetatibus Mundi Imagines. Madrid, Biblioteca Nacional.


Francisco de Holanda, O Quarto Dia: Criação dos Luzeiros, em De Aetatibus Mundi Imagines. Madrid, Biblioteca Nacional


Francisco de Holanda, O Sétimo Dia, em De Aetatibus Mundi Imagines. Madrid, Biblioteca Nacional.




Francisco de Holanda, Retrato de Miguel Ângelo (Antigualhas, f. 2). Biblioteca de San Lorenzo de El Escorial.

Francisco de Holanda foi um dos mais relevantes expoente da reflexão estética no renascimento português. Pintor e humanista, nascido em Lisboa em 1517, filho de António de Holanda, cuja projecção no âmbito da pintura e da iluminura se havia já firmado entre nós, é na escola de seu pai que adquire os primeiros conhecimentos da arte da pintura. Em 1537 parte para Roma no âmbito da política cultural de D. João III que tanto estimulou a presença de bolseiros portugueses nos maiores centros da cultura europeia da época.

Aportando a Itállia já com uma importante bagagem cultural adquirida em Évora, viria a considerar-se discípulo de Miguel Ângelo, relatando nos Diálogos em Roma os aspectos mais marcantes e fecundos do seu convívio com o mestre italiano.

Na obra deste pintor português, o maneirismo está presente através do aspecto que melhor o define: a premissa teórica da Ideia, concebida platonicamente como fonte da beleza e recondizida, em última análise, ao intelecto divino. Encarada pelos tratadistas italianos como "scintilla della divinitá", a ideia é um reflexo, no entendimento humano, do modelo eternamente imanente ao intelecto divino, do qual procedem todas as criaturas. Ao artista, ser privilegiado, é dado imitá-la, nela reconhecendo os aspectos universais da natureza, identificados com a verdade.

Como escreveu no Tratado da Pintura, a sua obra de maior consistência teórica, a ideia é responsável pela invenção de uma «segunda natureza», concebida interiormente, plasmada no intelecto e fruto do engenho. Assim, a beleza é encarada num contexto que permite equacionar uma profunda aliança entre a estética e a metafísica. Por isso, para Francisco de Holanda, Deus é a fonte de toda a pintura, sendo também ele o primeiro pintor. A criação é por si encarada como um dar forma pela luz, recuperando a metafísica da luz do platonismo, concebendo por isso a criação como uma função plástica animante, correspondendo a um modelo ou ideia previamente formulado no intelecto divino, tema já sublimemente afirmado por Sto. Agostinho ao estabelecer que Deus não connhece as coisas porque elas existem, mas que as coisas existem porque ele as conhece.

Nestes termos, a pintura humana consiste num criar de novo, numa função plástica inanimante, pois que o pintor «encerra em si aquela ideia criada no entendimento criado, com que imita ou quer imitar as divinas ciências incriadas com que o muito poderoso Senhor Deus criou todas as obras».

Quer isto dizer que o conceito de imitação, a que tantas vezes se refere, não atende tanto à multiplicidade do real concreto, na sua condição aparencial, mas sim à «verdadeira natureza», representada na ideia. Logo, o acto de criar é uma função de «olhos interiores» em que o pintor, num estado de «grande silêncio e segredo» se deixa conduzir pelo «divino furor da criação». Esta mesma referência ao furor supõe o triunfo da idealização como fruto das capacidades inatas do engenho e não da imposição de factores exteriores, expressos em preceitos rígidos, tecnicamente transmissíveis. Daí a associação do maneirismo à noção de fantasia artística, razão por que não deverá o pintor, com a sua obra, preocupar-se em «agradar ao vulgo», mas sobretudo a si próprio, reforçando essa dimensão interior que assiste ao processo criativo,

Mas sendo fonte da pintura e primeiro pintor, Deus é também a causa primeira da pintura humana, pois F.H. considera a ideia directamente infundida por Deus no génio do artista, ou por palavras suas «naturalmente dada pelo Sumo mestre Deus, gratuita no entendimento», sendo também aqui que reside a possibilidade por si enunciada de uma vivência mística, na tradição do neoplatonismo medieval, estabelecendo-se a contemplação divina pelo elo da ideia.

Por sua vez, esta dimensão mística presupõe uma ascética, quando refere a necessidade que assiste ao artista de «fortificar e defender a cidade da alma e o reino de seu espírito, guarnecendo e cingindo suas três potências com o inexpugnável muro da fé viva, esperança segura e caridade perfeita». A busca do divino é pois uma finalidade natural da pintura maneirista de F.H, reforçada aliás pela identificação entre o belo e o bem.

Todavia, a sua teoria do pintor comporta outra dimensão complementar à do engenho, referida desta feita aos aspectos técnicos e de aprendizagem, expressos no seu esforço infrutífero para a fundação em Portugal de uma academia de pintura. Trata-se agora da «arte, costume ou exercício» que se traduzem num conjunto de regras e preceitos técnicos, pois «nem por isso nascer com engenho somente basta, mas há-de logo ajudar a arte, e a ciência, e o costume, sem o qual o mor engenho dos homens não teria algum valor».

Abre-se-nos então o vasto domínio da aprendizagem a propósito do qual se revela possuído do ideal de um saber enciclopédico, transformando a pintura na mais completa e difícil de todas as artes humanas, reclamando, em consequência, um ambiente de liberdade incompatível com a organização corporativa vigente nesta época.

Obras
Francisco de Holanda, Retrato de Miguel Ângelo (Antigualhas, f. 2). Biblioteca de San Lorenzo de El Escorial.
Os Desenhos de Antigualhas que viu Francisco de Holanda, Pintor Português (1539-40); De quanto serve a ciência do desenho e entendimento da arte da pintura na república cristã assim na paz como na guerra (1571); De Aetatibus Mundi Imagines (1543-1573); Da Pintura Antiga (1548), introdução, notas e comentário de José da Felicidade Alves, Lisboa, 1984; Diálogos em Roma (1548), introdução e notas de José da Felicidade Alves, Lisboa, 1984; Da Fábrica que Falece à Cidade de Lisboa (1571), introdução e notas de José da Felicidade Alves, Lisboa, 1984; Do Tirar Polo Natural (1549), introdução e notas de José da Felicidade Alves, Lisboa, 1984.

Bibliografia
Jorge H. Pais da Silva, Estudos sobre o maneirismo, Lisboa, 1983; Jorge Segurado, Francisco d'Ollanda, Lisboa, 1970; José da Felicidade Alves, Introdução ao estudo da obra de Francisco de Holanda, Lisboa, 1986; José Freches, les Dialogues de Rome de Francisco de Holanda, Paris, 1973; José Stichini Vilela, Francisco de Holanda, Vida, Pensamento e Obra, Lisboa, 1982; Mariana Amélia Machado Santos, A Estética de Francisco de Holanda (I Congresso do Mundo Português), Lisboa, 1940; Ricardo Averini, «Francisco de Holanda e o juízo de Miguel Ângelo sobre a pintura flamanega» em A Introdução da Arte da renascença na península Ibérica, Coimbra, 1981; Robbert Klein, «Francisco de Holanda et les secrets de l'art», em Colóquio, nº XI; Sylvie Deswarte, Contribuition à la connaissance de Francisco de Holanda» em Arquivos do Centro Cultural Português, vol. VII, Paris, 1970; Id., As Imagens das Idades do Mundo de Francisco de Holanda, Lisboa, 1987; Id., Ideias e Imagens em Portugal na Época dos Descobrimentos, Lisboa, 1992.

Pedro Calafate


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