Celso Ferreira da Cunha
(Teófilo Otoni, Minas Gerais, 10-05-1917 - Rio de Janeiro, 14-04-1989)

Retrato de Celso Cunha [Miscelânea de estudos lingüísticos, filológicos e literários in memoriam Celso Cunha, p. II]

Licenciou-se em Letras em 1940, na Universidade do Distrito Federal (UDF). Foram aí seus professores Jean Bourciez, Jacques Perret, Georges Millardet, filólogos europeus levados ao Brasil para ajudar à criação de um Curso Superior de Letras, Antenor Nascentes, futuro padrinho de casamento, e Sousa da Silveira, o seu orientador de doutoramento (Pereira, pp. XV-XVI). Com o ensino e a política na tradição familiar, ele próprio desempenharia alguns cargos públicos, entre outros os de director da Biblioteca Nacional (1956-9), secretário de Educação e Cultura da Guanabara (1960), membro dos Conselhos Federais de Educação (1962-6) e de Cultura (1986-9). Foi incumbido da revisão do texto da constituição do Brasil (1988) (Pereira, p. XVII). É ocioso enumerar sociedades científicas a que pertenceu, prémios que recebeu, congressos que organizou.

Como professor, começou logo aos 17 anos, no {mesmo} famoso Colégio Pedro II {de que fora aluno}. Em 1952, ganharia a cátedra no Colégio, após disputadas provas, sucedendo a Antenor Nascentes; e, cinco anos depois, a cátedra de Língua Portuguesa na Faculdade Nacional de Filosofia, substituindo Sousa da Silveira. Nesta Faculdade, futura Faculdade de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro, leccionaria até quase ao fim da vida (Pereira, p. XVII-XVIII). «Se a sua carreira docente se desenrolou em várias escolas nacionais e estrangeiras [...; incluindo as Universidades de Paris-Sorbonne, Colónia, Lisboa], o reconhecimento do seu imenso saber e a extraordinária disponibilidade para comunicar os resultados das suas investigações in progress levaram-no a diversas partes do mundo para falar da România antiga e da «Romania Nova», de crítica textual ou de linguística histórica do Brasil, do proto-crioulo português ou de poética camoniana, de versificação trovadoresca ou de diassistema e língua literária, de scripta medieval galega e portuguesa ou da caracterização sociolinguística do Nordeste brasileiro» (Elsa Gonçalves, p. 197).

Trabalhava sobretudo de noite, só descansando depois da alvorada, e entre a sua biblioteca de mais de 30000 volumes, encadernados em couro-de-cabra e papel marmoreado francês. «Os livros eram o seu meio ambiente, a sua ecologia preferida. [...] Por entre os livros, no seu apartamento de Humaitá, circulavam desinibidamente colegas e alunos. Sempre tive dificuldade em concluir se a casa era a extensão da academia ou se, pelo contrário, era a academia que prolongava a sua residência-biblioteca» (Portella, p. LXIII). Descartando já a bibliofilia - como se viu com Serafim da Silva Neto, pecado banal entre filólogos -, tinha Celso Cunha outras idiossincrasias: o convívio boémio - em Paris, «recitava António Nobre junto à estátua de Montaigne [...] e, na madrugada, o seu esguio figurino de toureiro impulsionava-o a sapatear flamenco nas sombrias boîtes da Rue Monsieur le Prince» (Araújo, p. XLV); no Rio, uma vez, «para comemorar seu aniversário, organizou-se o Pagode do Celso, show musical com programa impresso, e seu apartamento [...] abria as portas para a Velha Guarda da Portela, e os sambistas Nei Lopes e Wilson Moreira» (Pereira, pp. XXI-XXII) - e a superstição - com ele «aprendi como se pode ser um grande sábio, um filólogo de rigor positivista, um católico observante e respeitoso do ritual e ao mesmo tempo acreditar em macumba, freqüentar os pais e as mães de santo, trazer em volta do pulso as fitas do Senhor do Bonfim» (Stegagno Picchio, p. XIII); «dedicava à sexta-feira as decisões difíceis e melindrosas, pois, segundo o dito por uma cigana em Paris, este era o seu dia de sorte» (Pereira, p. XXII).

Capa de um dos manuais escolares de Celso Cunha, Estilística e Gramática Histórica, 1978, em colaboração com Wilton Cardoso

Para referir parte da bibliografia de Celso Cunha, adoptaremos a arrumação proposta por Antônio Houaiss, aliás seu amigo desde adolescentes. Omitem-se algumas das séries, poupando-se sobretudo na menção dos artigos em periódicos e miscelâneas.

Medievística - O cancioneiro de Paay Gômez Charinho, trovador do século XIII, mimeografado, 1945; O cancioneiro de Joan Zorro. Aspectos lingüísticos. Texto crítico. Glossário, 1949; À margem da poética trovadoresca: o regime dos encontros vocálicos interverbais, 1950; O cancioneiro de Martin Codax, 1956; Estudos de versificação portuguesa: século XIII a XVI, 1982; Significância e movência na poesia trovadoresca. Questões de crítica textual, 1985. (O volume Cancioneiros dos trovadores do mar, 1999, coligiu as três edições críticas supramencionadas, a primeira, facsimilada do único exemplar que resta, o do próprio autor; a segunda, segundo um exemplar que Celso Cunha anotou; a terceira, facsimilar e acompanhada do estudo «Sobre o texto e a interpretação das cantigas de Martin Codax».) Nas edições por Celso Cunha destacam-se o comedimento das intervenções - «respeitador das fontes manuscritas» - e o valor dos estudos linguísticos que as acompanham (Castro, 1999, p. 10).

Didáctica - Português elementar, 1948; série de Manual de Português, 1958-...; Gramática moderna, 1970; Gramática do português contemporâneo, 1970 (que é o ascendente da Nova gramática...); [com Wilton Cardoso], Português através de textos, 1970 (depois: Estilística e Gramática Histórica, 1978); Gramática da língua portuguesa, 1972; Gramática de base, 1987; [com Luís Filipe Lindley Cintra]. Nova gramática do português contemporâneo, 1984, e Breve gramática do português contemporâneo, 1985. (Sobre a Nova gramática: «é normativa, isto é, procura não deixar qualquer dúvida ao leitor sobre o grau de obrigatoriedade, facultatividade ou inadmissibilidade de determinada forma ou construção. Mas não toma para critério desses juízos nem a norma padrão brasileira, como acontecia nas gramáticas anteriores, nem a norma padrão portuguesa: em vez disso, toma por campo todas as variantes da língua portuguesa [...] Contra certos receios, verificou-se na prática que pouca ou nenhuma dificuldade resulta de uma gramática normativa que promove, ao mesmo tempo e em igualdade, normas relativamente diversas e que se acham em processo normal de diversificação. Se considerarmos, em termos tradicionais, que uma gramática normativa emite directivas unidireccionais, então esta será uma não-gramática» (Castro, 1993, p. 28).)

Camonística - Camões e a unidade da língua, 1957.

Ensaística - Língua e verso, 1963; Língua, nação e alienação, 1981.

Edição crítico-interpretativa - [com Carlos Durval], A «Prosopopéia», de Bento Teixeira, 1972.

Brasileirismo - Uma política do idioma, 1964; Lingua portuguesa e realidade brasileira, 1968; A questão da norma culta brasileira, 1985; Que é brasileirismo?, 1987.

(Nesta notícia usámos: Cilene da Cunha Pereira, «Esboço biográfico», «Cronologia da vida», «Bibliografia», Cilene da Cunha Pereira & Paulo Roberto Dias Pereira (orgs.), Miscelânea de estudos lingüísticos, filológicos e literários in memoriam Celso Cunha, Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1995, pp. XV-XXXIX, XXV-XXVIII, XXIX-XXXIX; Luciana Stegagno Picchio, «Saudades de Celso Cunha», Pereira & Pereira (orgs.), Miscelânea de estudos lingüísticos, filológicos e literários in memoriam Celso Cunha, pp. IX-XIII; Roberto Assumpção de Araújo, «O amigo Celso», Miscelânea ..., pp. XLIII-XLV; Antônio Houaiss, «Uma obra: a propósito de Celso Cunha», Miscelânea ..., pp. XLVII-LIX; Eduardo Portella, «O saber sensível», Miscelânea ..., pp. LXI-LXIII; Elsa Gonçalves, «Cunha, Celso Ferreira da», Giulia Lanciani & Giuseppe Tavani (orgs.), Dicionário da Literatura Medieval Galega e Portuguesa, Lisboa, Caminho, 1993, pp. 196-199; Ivo Castro, «Celso Cunha, o não-gramático», Confluência, 5, 1993, pp. 23-28; Ivo Castro, «Apresentação», Celso Cunha, Cancioneiros dos trovadores do mar, edição preparada por Elsa Gonçalves, Lisboa, IN-CM, 1999, pp. 7-13.)