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Luís Filipe Lindley Cintra é uma das figuras principais da Linguística portuguesa. Toda a sua actividade científica foi desenvolvida na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, onde se licenciou e doutorou em Filologia Românica (respectivamente em 1946 e 1952) e onde exerceu toda a sua actividade docente, de assistente (1950-1960) a professor extraordinário (1960-1962) e catedrático (de 1962 até à morte).
Foi director das revistas Boletim de Filologia e Revista Lusitana (nova série), pertenceu a diversas sociedades científicas (Academia Espanhola de História, Academia de Buenas Letras de Barcelona, Academia Portuguesa de História e Academia das Ciências de Lisboa) e organizou em Lisboa reuniões científicas de grandes dimensões: III Colóquio Internacional de Estudos Luso-Brasileiros (1957), IX Congresso Internacional de Filologia e Linguística Românicas (1959) e Congresso sobre a Situação Actual da Língua Portuguesa no Mundo (1983).
Criador do Departamento de Linguística Geral e Românica da FLUL e reformador do Centro de Estudos Filológicos (a partir de 1975 designado Centro de Linguística da Universidade de Lisboa), teve um papel determinante na orientação das carreiras de numerosos investigadores e docentes, que se afirmaram num vasto espaço de disciplinas humanísticas. Ele próprio, como investigador, distinguiu-se principalmente nas áreas da literatura medieval, da linguística românica, da dialectologia e da geografia actual da língua portuguesa - vasta gama de interesses que ajudam a perceber o percurso de um linguista de formação tradicional que não deixou de estar atento à evolução da ciência e da sociedade.
Começou pelo estudo da literatura, numa altura em que ela abarcava ainda, em Portugal, o estudo da língua, merecedora de atenção científica apenas enquanto língua de escritores ou repositório de arcaísmos e regionalismos. Dedicou, assim, a tese de licenciatura à versificação de António Nobre e a tese de doutoramento ao que se supunha ser a versão portuguesa da Crónica Geral de Espanha de Afonso X, o Sábio, e que, como demonstrou, era uma crónica originariamente portuguesa, atribuída ao Conde D. Pedro de Barcelos e ocupando um lugar importante no quadro da historiografia peninsular. Em ambas as dissertações, Cintra partiu de temas puramente literários para, desviando-se de abordagens eruditas, estilísticas ou interpretativas, como talvez fosse de esperar, se deixar atrair pelos fenómenos de natureza mais claramente linguística, daí resultando um ensaio sobre ritmo, métrica e sonoridades, no caso de Nobre, e um manual prático de crítica textual e de linguística medieval, no caso da Crónica Geral.
Adivinhavam-se assim as direcções que viria a tomar o seu trabalho futuro, confirmadas pela terceira tese, A linguagem dos Foros de Castelo Rodrigo (1959), dedicada a um grupo de textos de direito local do séc. XIII, produzidos na região leoneso-portuguesa de Ribacoa e cheios de interesse para a reconstituição dos movimentos linguísticos desencadeados pela Reconquista numa região do país que ainda hoje reserva seus segredos.
E perfilava-se uma das principais características da sua actividade intelectual e científica: dava pouca importância à teoria e preferia-lhe a análise dos dados, que manejava com absoluto domínio da técnica e uma perspicácia inultrapassável, nisso seguindo o seu grande modelo, Ramón Menéndez Pidal, com quem trabalhara para o doutoramento. Foi assim que a sua obra, construída a partir da natureza e das necessidades dos problemas e passando ao largo das metodologias de moda, desprezando-as mesmo um pouco, adquiriu uma solidez e uma perenidade granítica que se casam bem com documentos medievais e com dialectos de montanha.
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Capa, desenhada por Sebastião Rodrigues, da Nova Gramática do Português Contemporâneo
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Se Cintra descobriu a linguística histórica ao estudar a Crónica Geral com Menéndez Pidal, é também ao grande filólogo madrileno que deve o segundo choque formador da sua carreira, ao ser integrado nas equipas de linguistas que recolheram os materiais para o Atlas Linguístico da Península Ibérica. Para tal, o urbano Cintra teve de percorrer extensamente as províncias de Portugal em 1953 e 1954 e assim "conheceu o povo". De imediato, abriram-se-lhe novas janelas de interesse: a dialectologia e a etnografia, disciplinas que desde Leite de Vasconcellos andavam pouco praticadas em Lisboa. Mas não só: como ele próprio confessava, a forte experiência humana de abandonar o gabinete e de descobrir como vivia o povo despertou nele a consciência dos problemas sociais e políticos. Dez anos mais tarde, o protagonismo que teve nas lutas estudantis e a coragem física que demonstrou em episódios que hoje são históricos tornaram-no conhecido fora da Universidade e atribuiram-lhe um papel modelar que influenciou, entre outras, a geração que hoje ocupa o poder.
Enquanto linguista, não produziu as sínteses do seu vasto saber. Mas talvez seja possível depreender, dos seus escritos, dois grandes campos de investigação pessoal:
as origens da língua portuguesa, campo em que se concentram os seus trabalhos sobre a Reconquista e o repovoamento do território peninsular, a história dos dialectos galegos e portugueses, a produção documental latina e portuguesa dos primeiros séculos nacionais, o aparecimento da literatura escrita em português e a literatura oral, manifestada mais tarde no romanceiro;
o espaço da língua portuguesa, definido historicamente como sendo constituído por toda a faixa ocidental da Península Ibérica (incluindo, portanto, o galego, cujos dialectos não hesitava em considerar como pertencendo ao mesmo sistema que o português, ainda que apoiasse, para o presente, a autonomia da norma linguística galega) e pelas ilhas atlânticas, pelo Brasil e os países africanos e asiáticos onde se fala o português e os crioulos de base portuguesa. Ou seja, um espaço geográfico definido como produto da expansão extra-europeia da língua nascida do latim vulgar do Noroeste peninsular. Esta definição conduzia, naturalmente, à valorização dos aspectos unitários: sobre a variedade inevitável de uma língua transcontinental, Cintra fazia pairar uma unidade fundamental que não excluía o galego, nem os crioulos. E muito menos o português do Brasil, como o demonstraram, na fase final da vida, a sua defesa de uma ortografia comum e a colaboração com Celso Cunha para escreverem a Nova Gramática do Português Contemporâneo (1984), uma gramática escrita para servir de normativa, simultaneamente, à língua usada por portugueses, brasileiros e africanos.
Cintra não foi um homem paradoxal, nem muito apreciador de ironias ou surpresas conceptuais. É por isso que têm sabor, e fazem falta ao seu retrato, algumas das suas afectividades mais arraigadas: não gostava de Camões e, se pudesse ser língua, preferia ser o castelhano.