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Fotografia de José Leite de Vasconcelos [Revista Lusitana, nova série, 12, p. 7]
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Cresceu na zona, "de prestigiosas velharias e usanças arcaicas", do mosteiro cisterciense de S. João de Tarouca, isto é entre a vila de Ucanha, Mondim da Beira, Salzedas, onde um padre o iniciou em latim e um tio em francês; "já nesse tempo se manifesta o traço que havia de fazer dele o maior registador de coisas populares: sem saber ao certo para quê, ia apontando em caderninhos o que ouvia ou perguntava". Falida a família, aos dezoito anos foi para o Porto como amanuense em liceu e, ao mesmo tempo, continuar os estudos. Aí, em 1886, se licenciaria na Escola Médico-Cirúrgica, mas só exerceu a nova profissão um ano, o de 1887, no Cadaval. Na verdade, a própria tese de licenciatura, Evolução da linguagem (1886), se focava já nos interesses de letras que ocuparam a sua longa vida. Também é verdade que as ciências exactas contaminam o estilo investigativo de Leite de Vasconcelos, seja na filologia, seja na arqueologia ou na etnografia, todas disciplinas em que ficaria como referência. Os seus trabalhos privilegiam o severo escrutínio de fontes e o arquivo de dados, obtidos ora em digressões pelo país, ora até por simples contacto informal com quem se ia cruzando mesmo em Lisboa; e a fornecida biblioteca pessoal, depois legada à Faculdade de Letras de Lisboa, lhe economizava o tempo, para a obra a fazer sempre precioso.
Doutorou-se na Universidade de Paris, com Esquisse d'une dialectologie portugaise (1901; reeditado em 1970 e 1987), a primeira grande síntese da diatopia do português (a que só quase meio século depois sucederiam as investigações de Manuel de Paiva Boléo; e, em fase posterior ainda, as de Luís Lindley Cintra). Chegou a professor do ensino superior apenas em 1911, quando o Curso Superior de Letras se transformava em Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Mas já antes leccionara na Biblioteca Nacional, onde era conservador desde 1887, Numismática e Filologia Portuguesa. Desses tempos são as Lições de Philologia Portuguesa (1911; 2.ª edição, 1926) e a antologia de Textos Archaicos (1903; 3.ª edição, 1922-23). Exerceu também no Liceu de Lisboa, mas a actividade docente não foi nunca o seu terreno preferido, e, diz-nos Orlando Ribeiro, lamentaria "o tempo perdido na tarefa inglória de ensinar meninos". Os biógrafos de Leite aludem a algumas idiossincrasias: a quase sovinice ("Olhe que a tinta é cara"), a férrea disciplina de vida que a investigação unicamente polarizava ("Que tempo que se perde: é um lenço, lavar as mãos, vestir-me, despir-me"), o afecto aos gatos ("Tenho-lhes tanta amizade como se fosse a pessoas. Não lhes devia ter, mas...").
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Casa onde nasceu Leite de Vasconcelos, na vila de Ucanha
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Maria Ana Ramos, em artigo em que compara Leite e Carolina Michaëlis de Vasconcelos ("Palavras entre filólogos: uma carta de Leite de Vasconcellos a Carolina Michaëlis", Estudos Portugueses. Homenagem a Luciana Stegagno Picchio, 1991, pp. 143-158), contrasta o zelo de perfeição que Dona Carolina punha no que intentava dar à estampa com certa sofreguidão de publicar, até por vontade de marcar primazias de autoria, que teria algum tanto condicionado a dispersão da obra do Doutor Leite. A bibliografia coligida por Isabel Vilares Cepeda (José Leite de Vasconcellos, Livro do Centenário, Imprensa Nacional, 1960, pp. 139-269) é portanto instrumento indispensável a quem pretenda ter uma ideia da mole de trabalhos de José Leite, entre os quais, diga-se, difícil será escolher obras matrizes. Talvez que o prototipo da sua produção escrita afinal seja a Revista Lusitana (1ª série: 1887-1943, 39 volumes), que fundou, dirigiu e semeou de artículos, notas, recensões, necrológios, ainda hoje de obrigatória consulta. Outra das revistas por si fundadas se deve lembrar: O archeologo português, 1895-1931 (1ª série), órgão do Museu Etnológico (mais uma criação sua, de que são hoje continuadores o Museu de Arqueologia, nos Jerónimos, e o Museu de Etnologia, no Restelo). No campo que aqui mais interessa, o dos estudos linguísticos, para além do que se foi citando, destaquem-se: a separata com a edição do Livro de Esopo (1906); a fundadora obra sobre o onomástico português que é a Antroponímia Portuguesa (1928); os volumes 1, 2, 3, 4, 6 de Opúsculos (1928, 1928, 1929, 1931, 1988); os trabalhos sobre o mirandês (O Dialecto Mirandez, 1882, com que se estreou em filologia, dedicado ao "senhor F. Adolpho Coelho" e logo premiado; os dois volumes dos Estudos de Filologia Mirandesa, 1900-1901, reeditado o primeiro volume em 1992).
E, entre muitos outros ensaios de índole biobibliográfica, citaremos O Doutor Storck e a litteratura portuguesa, 1910, o opúsculo A philologia portuguesa (A proposito da reforma do Curso Superior de Lettras de Lisboa), 1888, que bem podia servir de introdução a estas biografias de linguistas (para não mencionar os artigos em que se deteve nas figuras de filólogos seus contemporâneos, como Epifânio, Carolina Michaëlis, Júlio Moreira, Gonçalves Viana, Óscar Nobiling, Adolfo Mussafia, etc.). Na referida miscelânea à memória de Leite de Vasconcelos aquando do centenário, leiam-se as memórias por Manuel Viegas Guerreiro, Orlando Ribeiro, discípulos do mestre.