Mário de Sá-Carneiro

(Lisboa, 19-05-1890 – Paris, 26-04-1916)

Poeta de primeiro plano da literatura portuguesa do século XX, Mário de Sá Carneiro experimentou também a escrita dramática no momento de quebra com os cânones vigentes que foi o modernismo português.

Na sua curta vida escreveu, frequentemente em coautoria, textos para o palco e em prosa que ilustram o rompimento com o naturalismo e a tentativa de explorar novos modelos e estéticas. Mais do que objetos literários vistos individualmente, é no seu conjunto (e a par dos ensaios críticos) que podemos ler as inquietações e aspirações estéticas de uma geração atribulada. A sua escrita aumentou de intensidade nos últimos anos da sua vida, que decorreram no ambiente boémio parisiense e que culminaram na sua morte com apenas 25 anos.

  Mário de Sá-Carneiro
  Mário de Sá-Carneiro, 1912 [A confissão de Lúcio, Lisboa: Assírio e Alvim, 1998, p.4]

Mário de Sá-Carneiro partilhou com os artistas seus contemporâneos a inquietação que, em 1915, deu origem à revista Orpheu. Órgão oficial do modernismo, nas suas páginas defendia uma arte moderna e cosmopolita capaz de fundir e transcender os numerosos movimentos e géneros literários que contavam com adeptos no resto da Europa. A revolta contra a estagnação das ideias foi recebida com escândalo e indignação, mas teve os seus efeitos e encontrou repercussão a partir de 1927 na revista Presença (mesmo que para alguns críticos – entre eles Eduardo Lourenço e David Mourão Ferreira – esta teria sido antes uma “contra-revolução do modernismo”).

O teatro produzido pela geração do Orpheu, contudo, foi mais convencional do que ambicionaria e não soube ultrapassar completamente os modelos naturalistas e simbolistas. Como Fernando Pessoa, Almada Negreiros, Armando Cortes-Rodrigues e Raul Leal, colaboradores da revista que tentaram incursões mais ou menos conseguidas na escrita dramática, Sá-Carneiro não ficou indiferente ao fascínio do palco. A sua aprendizagem poética começou com cerca de seis ou sete anos de idade e igualmente precoce foi o seu interesse pelo teatro. Desde muito novo frequentou as salas de espetáculos de Lisboa, acompanhou a produção editorial da época, foi assinante da revista francesa Comoedia e, nas suas estadas em Paris, assistiu assiduamente a peças de teatro e de music-hall. Nos tempos do liceu participou em representações anuais e com outros colegas aderiu à Sociedade de Amadores Dramáticos. Segundo as declarações de um deles, Rogério Perez, Sá-Carneiro imitou o Teatro Livre de Antoine criando a Sociedade de Teatro Novo e assinou o texto de um espetáculo de revista representado no Teatro do Ginásio, mas também outras peças que não chegaram ao palco.

As fontes mais credíveis apontam para O vencido, ato único considerado perdido, composto e, parece, levado à cena no Clube Simões Carneiro em 1905, como sendo o resultado das primeiras notícias concretas dum texto dramático do poeta (o manuscrito que chegou até nós, porém, tem a data de 13 de fevereiro de 1908). Em 1907 procedeu à redação de Feliz pela infelicidade, adaptação dramática em quatro cenas de L’aveugle, conto dialogado de Michel Provins, e em fevereiro de 1908 redigiu um breve ato único sem título reencontrado, como os dois anteriores, por Manuela Nogueira, e com eles reunido no livrinho Juvenília dramática (1995), organizado pela própria descobridora dos originais. Entre dezembro de 1909 e março de 1912 escreveu, em colaboração com Tomás Cabreira Júnior, Amizade, cujos três atos tiveram estreia absoluta no dia 23 de março de 1912 no Clube Estefânia pela Sociedade de Amadores Dramáticos, desencadeando, porém, alguma contestação por parte do público durante os poucos dias que ficou em cena. Com António Ponce de Leão traduziu uma peça de François de Curel, Les fossiles, que nunca subiu ao palco e cujo manuscrito parece não ter chegado até nós, e redigiu Alma (1913). Existem referências ao projeto de redação de outros dramas, como Irmãos e A força (este último de novo com Ponce de Leão), mas possivelmente não conseguiram ir além da fase projetual.

Apesar da vontade do autor de renovar o teatro português da altura, vontade explicitada num artigo teórico polémico – O teatro-arte. Apontamentos para uma crónica (1913, publicado no jornal O rebate) –, onde são exaltados certos pressupostos da estética teatral simbolista, a dramaturgia de Sá-Carneiro não conseguiu ultrapassar os modelos naturalistas. O seu teatro é um teatro de tese que censura a moral burguesa da altura e propõe a adoção duma nova moral: Amizade defende a teoria de Zola da impossibilidade de se estabelecer uma amizade entre um homem e uma mulher devido à inevitável transformação desse sentimento no sentimento amoroso; Alma absolve a infidelidade do corpo, condena a da alma e a traição não consumada para salvar aparências hipócritas. O convencionalismo de Amizade é superado em Alma, onde a tensão entre razão e instinto estaria subjacente a um espírito “profundamente novo, subversivo até, em relação aos padrões vigentes no teatro desse tempo, dominado ainda (e durante alguns anos mais) pelo historicismo pós- e neo-romântico, por um pseudo-ibsenismo de pacotilha, por um regionalismo estereotipado, e por comédias e farsas de puro entretenimento” (REBELLO 1987: 19). Mas foi na poesia e na narrativa que o talento de Mário Sá-Carneiro, definido pela crítica como o Rimbaud português pelo seu destino de poeta maldito, se realizou plenamente. Os seus poemas mais maduros passam da matriz simbolista aos vários movimentos que confluíram em Orpheu (paulismo, interseccionismo, sensacionismo) até pré-anunciarem a sedução do inconsciente e da dispersão do “eu” típicas da estética surrealista.

Algumas das palavras-chave para entender o universo simbólico do poeta, espelho do dualismo que atormentou o espírito e a mente, são o amor (no divórcio entre eros e agape) e morte, alma e corpo, ideal e real, glória e falhanço. Dicotomias vividas visceralmente, num fado desesperado que encontrou algum – pouco – alívio nas memórias da infância, incapaz porém de neutralizar a instabilidade psicológica e um masoquismo latente que o levariam ao suicídio. A sua produção poética conta com os seguintes títulos: Poemas juvenis (1903-1908): inéditos (escritos incipientes encontrados por François Castex e publicados em 1986), Dispersão (poesia da maturidade, redigida entre fevereiro e maio de 1913, editada em 1914), Indícios de ouro (editados em 1937). A sua poesia completa foi editada várias vezes, em publicações diversas. Da produção narrativa lembram-se: João Jacinto (“biografia” redigida em 1908, descoberta recentemente e publicada em 1984), Céu em fogo (1915), Princípio (1912), A confissão de Lúcio (redigida em 1913, editada em 1914 em português e traduzida para francês em 1987, em inglês e dinamarquês em 1993 e em espanhol em 1996).

A atenção académica dedicada à literatura portuguesa da geração de Orpheu influenciou de forma determinante também o atual interesse do mercado editorial internacional, que já tem vários títulos disponíveis em várias línguas, de e sobre Sá-Carneiro.

* Este texto é a versão revista e em português da ficha bio-bibliográfica de Mário de Sá Carneiro editada in: Sebastiana Fadda (a cura di), Teatro portoghese del XX secolo, Roma, Bulzoni Editore, 2001. Desta antologia faz parte a peça Anima.

 

Textos de / para teatro

1907: Feliz pela infelicidade.

1908: O vencido.

1908: [Sem título].

1909-1912: Amizade. (col. Tomaz Cabreira Júnior)

1913: Alma. (col. António Ponce de Leão)

 

SÁ-CARNEIRO, Mário de (1995). Juvenilia dramática. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda.

 

Bibliografia

GALHOZ, Maria Aliete (1982). “Mário de Sá-Carneiro e a expressão do teatro”, in Cultura portuguesa, n.º 2,  pp. 50-55.

___ (1995). “Nota à Juvenilia dramática de Mário de Sá-Carneiro”, in Mário de Sá-Carneiro, Juvenilia dramática. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, pp. 15-19.

MARTINS, Fernando Cabral (1996). “Mário de Sá-Carneiro”, in Álvaro Manuel Machado (dir.), Dicionário de literatura portuguesa. Lisboa: Editorial Presença. 

REBELLO, Luiz Francisco (1976). “Um dramaturgo português desconhecido: António Ponce de Leão”, in Colóquio/Letras, n.º 34, pp. 25-33.

___ (1977). “Uma peça inédita de Mário de Sá Carneiro e um dramaturgo ignorado, António Ponce de Leão”, in AA.VV., Memórias da Academia das Ciências de Lisboa. Classe de Letras, tomo XVIII. Lisboa: pp. 169-179.

___ (1987). “Nota introdutória”, in Mário de Sá-Carneiro / António Ponce de Leão, Alma. Lisboa: Edições Rolim, Colecção Palco.

SERÔDIO, Maria Helena (2004). “Dramaturgia”, in AA.VV., Literatura portuguesa do século XX. Lisboa: Instituto Camões - Colecção Cadernos Camões, pp. 95-141.

 

Consultar a ficha de pessoa na CETbase:

http://ww3.fl.ul.pt/CETbase/reports/client/Report.htm?ObjType=Pessoa&ObjId=11304

Consultar imagens no OPSIS:

http://opsis.fl.ul.pt/

 

Sebastiana Fadda/Centro de Estudos de Teatro