Mercedes Blasco
(Pomarão, Alentejo, 04-09-1870 – Lisboa, 12-04-1961)
Mercedes Blasco foi um dos vários pseudónimos da célebre divette de opereta e revista Conceição Vitória Marques, nascida em 1870 (embora haja registos que refiram o ano de 1867).
Mercedes Blasco, s.d. (postal ilustrado) [Arquivo TNDM II] |
Os seus pais mudaram-se, pouco depois, para Huelva, na Andaluzia, onde Mercedes viveu até aos sete anos de idade. Regressou a Portugal com a sua família, que se instalou no Porto, onde foi despertado seu fascínio pelo teatro. Foi nessa cidade que, em 1888, ainda menor e à revelia da família, se iniciou no tablado, após ter fugido de casa. Estreou-se no Teatro Chalet, sob o pseudónimo Judith Mercedes Blasco, na Grande avenida, de Francisco Jacobetty. Passou depois por uma série de teatros da capital – Trindade, Condes, D. Amélia, Príncipe Real, Avenida, entre outros –, bem como por vários teatros em França, Reino Unido, Espanha, Itália e Bélgica. Realizou várias digressões por Portugal e pelo Brasil. Viveu, durante a I Guerra Mundial, em Liège, na Bélgica, onde se afastou do palco para ensinar as várias línguas que dominava. Foi, para além de atriz-cançonetista, jornalista, tradutora e autora de uma obra de cerca de 30 títulos.
Proveniente de um meio burguês e intolerante ao estigma social da profissão de atriz, a problemática paixão da jovem Mercedes pelo palco levou-a a fugir de casa para concretizar os seus sonhos, optando pela utilização de pseudónimos, de maneira a ocultar – da família – a sua atividade profissional. Foi desde cedo preparada para uma carreira na medicina, tendo acesso a uma educação acima da média. Este facto explica não apenas a cultura que revela na sua vasta obra literária, mas também o seu domínio de várias línguas, para além do português, – inglês, francês, espanhol, italiano e alemão – que viria a utilizar frequentemente na sua vida profissional, tanto em Portugal, como no estrangeiro.
A sua estreia ocorreu no Porto, com a companhia do Teatro Chalet, ao representar o papel masculino “Jockey” na Grande avenida de Francisco Jacobetty, uma paródia em um ato e 5 quadros da revista espanhola La Gran Via. O figurino atrevido que vestiu em cena deu origem ao primeiro escândalo da sua carreira, como testemunhou a própria Mercedes: “A minha frescura e sobretudo as formas, que uma malha mal vestida, por mão inexperiente, deixava sobressair nas suas mais recônditas provocações, fizeram-me um sucesso escandaloso” (BLASCO 1908: 45-46).
Terminada a temporada no Chalet, Mercedes seguiu com a companhia, na sua primeira digressão pelas províncias. Chegou, depois, a Lisboa – onde ficou conhecida apenas como Mercedes Blasco – para integrar uma sociedade artística dirigida pelo ator Santos Júnior, no Teatro do Rato, onde se estreou na revista Ás de copas, de Ludgero Vianna, a 15 de setembro de 1888. Todavia, Mercedes abandonou a revista após algumas representações, ficando, desse modo, sem contrato.
Recebeu, depois, uma proposta do empresário Francisco Palha para integrar o elenco do Trindade. Apesar de apreciar o talento de Mercedes, Palha fez-lhe uma oferta pouco atraente, levando a divette a recusá-la, o que adiou o seu sonho de representar no Trindade. Este fracasso levou-a de volta ao Porto, para uma passagem breve pelo Chalet. Foi-lhe oferecido, então, novo (e generoso) contrato no Trindade, pelo novo empresário Mattoso da Câmara. Mercedes estreou-se, assim, no Trindade, a 21 de outubro de 1890, na ópera cómica Mam’zelle Nitouche, espetáculo que assinalou o início de um período de crescimento profissional (Ibidem: 90). Ali representou até ao final de 1894. Durante este período conheceu os seus maiores sucessos em espetáculos como Miss Helyett, O brasileiro Pancrácio, O solar dos barrigas e na célebre revista de Sousa Bastos: Sal e pimenta.
Regressou, depois, ao Porto, para onde foi convidada, pelo maestro Thomas Del-Negro, a integrar a sua companhia que explorava, então, o Teatro D. Afonso. A proposta do maestro era muito superior aos valores até então oferecidos a Mercedes, que conheceu aqui um período de grande prosperidade económica. Realizou, de seguida, uma nova digressão pela província, em março de 1896, regressando depois a Lisboa, onde integrou, por pouco tempo, o elenco do Teatro D. Amélia e depois, na época 1896-1897, o elenco do Teatro da Rua dos Condes. Finda aquela época, Mercedes aceitou uma proposta de Sousa Bastos para realizar, entre agosto e outubro de 1897, a sua primeira digressão ao Brasil.
Integrou, ainda em 1897, a companhia de Pedro Cabral, instalada no Real Colyseu de Lisboa, na qual protagonizou vários êxitos, de entre os quais se destaca As farroncas do Zé (1898). Neste espetáculo, envolto em escândalo – como, de resto, era já habitual para Mercedes –, a atriz representava 14 papéis, entre eles a polémica Princesa de Caraman-Chimay, para o qual mandou vir de Paris um maillot – o primeiro alguma vez visto num palco português – “de corpo inteiro, de seda côr de carne […] e tao fino que veio dobrado dentro de uma pequena caixa de cartão, parecendo impossível que pudesse conter-se ali o invólucro de um corpo de mulher” (ibidem: 168). Relativamente a esta representação, o Jornal de Lisboa, de 22 de janeiro de 1898, relatou o seguinte: “No terceiro acto, Mercedes, que principiara a despir-se no primeiro […] despiu-se completamente para a exhibição de várias poses plásticas. Restou-lhe só o maillot, mais o véu ténue de gase que a enquadrava […]” (Ibidem: 169). Como se não bastasse a simulação de nudez em palco, Mercedes representou, também, um papel de Baiana, que a obrigava a “dançar à moda brasileira, meneando os quadris e fazendo um arremedo da dança do ventre” (Ibidem: 170).
Entre março e novembro de 1898, Mercedes fez a sua primeira viagem a Madrid para representar no Teatro Lara e no Teatro Moderno, voltando depois mais duas vezes: uma em 1901, outra em 1906. Em 1899, organizou uma companhia sua para uma digressão pela província. Integrou depois o elenco do Condes, passando a seguir para o Avenida. Nesta época, Mercedes, ainda solteira, encontrava-se grávida do seu primeiro filho, estado que a obrigava a utilizar figurinos que disfarçassem a sua condição.
Passou de forma fugaz por vários teatros de Lisboa e do Porto, voltando a engravidar, ainda solteira, em 1905, afastando-se entretanto do palco e da vida pública até ao parto do seu segundo filho. Nova digressão pelo Brasil teve início em 1908, após a qual Mercedes se dirigiu diretamente a Paris, dando início a uma longa temporada no estrangeiro representando em França, Itália, Reino Unido e Bélgica, e instalando-se neste último país com os dois filhos e o então marido Remi Ghekiere, um engenheiro belga.
Devido à ocupação da Bélgica pelos alemães, no decorrer da I Guerra Mundial, Mercedes ficou retida naquele país, recusando-se, por uma questão de princípios, a trabalhar em palco para animar o exército alemão, sendo, assim, forçada a encontrar trabalho noutra área, pelo que exerceu, em Liège, funções de professora de línguas. Esta atividade, com fraca remuneração, marcou o início de um período de fortes carências económicas que terão pesado na morte do seu primeiro filho. Ainda durante a guerra, voluntariou-se como enfermeira na Cruz Vermelha para auxiliar os soldados feridos, de entre os quais alguns portugueses que Mercedes ajudou a repatriar. Quando a guerra acabou, a atriz, já viúva, veio para Portugal com o seu filho mais novo – que haveria também de falecer, de tuberculose, em Lisboa, em 1922 – à espera de encontrar reconhecimento pelas suas ações durante a guerra, bem como pelo seu trabalho enquanto atriz. Todavia, para seu grande desgosto, não encontrou, na sua terra natal, o reconhecimento esperado, pelo que, tirando algumas aparições em palcos menores sem grande sucesso, a carreira de Blasco como atriz acabou por ter desfecho inglório.
O tão desejado reconhecimento pareceu, entretanto, chegar sob a forma de um projeto de lei, apresentado no Parlamento por Júlio Ribeiro, para a tornar societária do TNDMII. Aprovado a 10 de agosto de 1920, o processo conheceu um percurso acidentado, pois algumas pessoas não concordavam com a sua entrada no Teatro Nacional devido ao seu passado de estrela de opereta com pouca ou nenhuma experiência em teatro declamado (BLASCO 1924: 50). Quando foi formalizada a sua condição de societária, Mercedes nunca foi, efetivamente, chamada para trabalhar (BLASCO 1937: 67-68), facto que impossibilitou, mais tarde, o seu acesso ao Cofre de Reformas e Pensões para os artistas do Teatro Nacional. Dedicou-se, então, para sobreviver, à escrita, fabricando uma obra de mais de 30 volumes dispersos entre memórias, romances, novelas, peças de teatro, crónicas e traduções, bem como uma intensa atividade jornalística em vários periódicos de destaque, entre os quais O Século, A Capital, A Ilustração, o Diário de Lisboa, para os quais utilizava, para além de Mercedes Blasco, pseudónimos como Mam’zelle Caprice e Dinorah Noémia.
Como nos recorda Mário Elias, Mercedes “[f]oi uma mulher muito avançada para o seu tempo, exibindo sempre elevado sentido de liberdade e desprezo do preconceito” (1992: 11), como, aliás, podemos constatar não apenas pelo seu percurso de vida, repleto de escândalos e de ligações amorosas, mas também pela leitura das suas crónicas onde dissertou sobre a condição da mulher e respetivos direitos. O desprezo pelas convenções sociais é também visível no facto de Mercedes ter sido a primeira mulher a utilizar a bicicleta – não só em palco, mas também nas ruas de Lisboa, aqui como meio de transporte –, apesar das fortes críticas que tamanha ousadia suscitava. Mulher destemida, inteligente e trabalhadora, Mercedes Blasco trilhou sempre o seu próprio caminho que, apesar de ter sido marcado pela aventura e pelo sucesso, foi também um caminho de dissabores, com perdas dolorosas e fraco reconhecimento do seu talento, terminando, em 1961, na miséria e na solidão.
Bibliografia
Anon. (1922) “Mercedes Blasco” in Ilustração Portugueza, Nº 854, 01-17-1922, p.7.
BLASCO, Mercedes (1908). Memórias de uma actriz. Porto: Editora Viúva Tavares Cardoso.
___ (1920). Vagabunda. Seguimento às Memórias de uma actriz, 1908 a 1919. Lisboa: J. Rodrigues.
___ (1923). Caras pintadas de Mercedes Blasco. Lisboa: Portugália Editora.
___ (1924). Desventurada. Lisboa: Portugália Editora.
___ (1926a). Esta vida… Lisboa: Portugália.
___ (1926b). Os meus homens. Lisboa: J. Rodrigues.
___ (1927). Como eles são. Lisboa: J. Rodrigues.
___ (1930). Qualquer coisa… Lisboa: J. Rodrigues.
___ (1932). Hipócritas. Lisboa: J. Rodrigues.
___ (1934). Arco de Cupido. Lisboa: J. Rodrigues.
___ (1936). Nas trincheiras da vida. Lisboa: Imp. Lucas.
___ (1937). Engeitada. Lisboa: J. Rodrigues.
___ (1938). Diário de uma escriba. Lisboa: J. Rodrigues.
ELIAS, Mário (1992). O drama de Mercedes Blasco. Mértola: Edição de autor.
M.S. (1908). “Livros: Memórias de uma actriz e Musa Hysterica por Mercedes Blasco” in O Occidente, nº 1056 (30 de abril de 1908), pp.94-95.
REBELLO, Luiz Francisco (1984). História do Teatro de Revista em Portugal, vol. I. Lisboa: Publicações D. Quixote.
SOUSA BASTOS, António de (1898). Carteira do Artista.Lisboa: Antiga Casa Bertrand.
VASQUES, Eugénia (2012). A escola de teatro do Conservatório (1839-1901): contributo para uma História do Conservatório de Lisboa. Lisboa: Gradiva.
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http://ww3.fl.ul.pt/cetbase/reports/client/Report.htm?ObjType=Pessoa&ObjId=32353
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Eunice Azevedo/Centro de Estudos de Teatro