Turismo Literário com David Mourão-Ferreira: A
Terra Napolitana David Mourão-Ferreira (1927-1996) viveu os anos da ditadura (1926-1974), durante os
quais foi, várias vezes, perseguido
pela censura e constrangido ao afastamento da terra natal, levando a cabo
numerosas viagens, não só físicas mas também interiores. Trata-se de viagens orfeicas de descobrimento de si mesmo e de reconstrução do Eu, através de colóquios íntimos com as cidades que visita. Destas, no texto «Mãe Roma», diz:
Há cidades que nos voltam as costas, sem chegarem sequer a olhar para nós. Há outras que nos sacodem a mão, cordialmente, num sóbrio shake-hand de boas-vindas, e que depois lá seguem para os seus afazeres, os seus divertimentos, os seus labirintos em que nunca haveremos de penetrar. Há também as que discutem connosco, mas que por isso mesmo se nos tornam indispensáveis. E as que nos provocam; as que nos irritam; as que se divertem à nossa custa. Há ainda as que sabem de cor os mais secretos dialectos do desejo - para nos deixarem enrodilhados, insatisfeitos e melancólicos, na madrugada de frios arrabaldes. Há todavia, pelo contrário, as que nos vestem de música e de luz; que nos fazem lembrar, a cada passo, as irmãs mais velhas que não tivemos; que nos escutam com atenção – quando ficamos em silêncio – nas esplanadas do crepúsculo.
Com estas palavras, o autor concede vida às
cidades e é de salientar a associação feita entre cidades e mulheres.
Nas crónicas do livro Discurso Directo (1968), que representa um «auto-retrato indirecto» do autor, encontramos uma Trieste que, vista do alto da cidade, tem o ar de uma menina que, junto ao porto, espairece vestida de azul e verde. Bolonha surge associada a uma mulher com ar próspero e independente, a quem a vida corre bem, feliz em todos os negócios que empreende, mas sem deixar nunca de cuidar de si-própria, no que respeita à conservação do rosto e à elegância do vestuário. Já Ravena aparece como uma grande actriz de teatro, na sua involuntária decadência, conservando com zelo as recordações dos êxitos passados. De Veneza, por seu turno, escreve David Mourão-Ferreira:
De cada vez que te busco sei do que venho ao encontro como se fosses o útero de onde hei-de nascer de novo.
Por último, Roma é vista como uma mãe, a mãe de
todos os homens, que a trazem no sangue como ela os trouxe no ventre.
As cidades italianas são também associadas às estações da vida:
Em Nápoles, em Sorrento, em Capri, apetece ser velho e pachorrentamente aguardar ali o fim de tudo, gozando dos rendimentos, da amenidade do clima, da doçura do mar e da exuberância da vegetação. Em Roma ou em Florença, seria bom ficar permanentemente entre os trinta e os quarenta anos, a procurar dia após dia o equilíbrio entre a maturidade daquelas pedras e a maturidade do próprio espírito. Em Veneza, por sua vez, sente-se a furiosa tentação de voltar aos vinte anos e de encontrar aqui uma mulher bastante mais velha, com quem aprendamos tudo, a quem fiquemos devendo tudo - mas que por fim abandonemos, sem grandes remorsos, com a esplêndida crueldade dos vinte anos, embora com a certeza íntima e dolorosa de que nunca mais teremos, na nossa vida, outra experiência que se lhe compare.
Entre as cidades italianas visitadas pelo escritor, há uma de que o escritor acha difícil falar, porque lhe parece uma terrível imagem do mundo. Trata-se de Nápoles, cidade solar que fica na região da Campânia, no sul da Itália. No texto «Fábula Napolitana», David Mourão-Ferreira conta que, vista do mar, com a mole ondulante dos Apeninos ao fundo, Nápoles lhe surgia como um espectáculo incomparável de graça, de grandeza e de equilíbrio. Ao aproximar-se da terra, o poeta ficou desorientado e nervoso por uma estranha fauna de pessoas que percorriam as ruas freneticamente e que trabalhavam com ar indolente de madraços com aparência muitíssimo activa. Diz o escritor:
Dir-se-ia uma extravagante simbiosi de formigas enormes e de cigarras descomunais que entre si tivessem adoptado – depois de muito fartas das mentiras da fábula - o expediente de se enganarem a si próprias, e de manhosamente desconcertarem o próximo […]. E é todavia tão belo, tão pródigo e tão ameno, o quadro natural em que se movem! Até parece que a natureza, quanto mais clemente, mais caro faz pagar essa mesma clemência. Não foi isto, aliás, o que os gregos descobriam? Não admira, por conseguinte, que tanto se tenham eles fixado nestas paragens.
O contraste, bem patente em Nápoles,
entre o drama da injustiça social e a impenitente beleza que envolve a
cidade e que triunfa em seu redor, o
constante ludíbrio das formigas que desejam ser cigarras e das
cigarras continuamente a fingirem ser formigas, eis alguns aspectos que caracterizam esta cidade.
O imponente
vulcão, o Vesúvio, com a sua constante sombra, acaricia a cidade e
lembra ao poeta que o homem é tudo menos imortal
e que, de um momento para o outro, Nápoles poderá desaparecer, como
Pompeia, debaixo de
lavas e de cinzas. Nápoles foi, desde sempre, fonte de inspiração de canções populares e de romances em que aparece como pano de fundo, assunto de quadros e de inumeráveis poesias. Totó, um notável cómico cinematográfico e teatral do século XX, com imenso afecto pela a sua cidade, chamou-lhe, no dialecto napolitano, «rainha de sereias, que é como o açúcar, terra de amor e raridades, Nápoles adorável que corre pelas veias e a que o coração sempre lhe diz que quem em Nápoles nasceu, não quer morrer!» .
Nápoles
e a Itália inteira conquistaram David Mourão-Ferreira. Ao primeiro olhar, o
poeta sentiu um fascínio intenso e definitivo. É por isso
que esta terra surge tão frequentemente no horizonte das suas
recordações. Aurora
Martino
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