Roma: uma mulher em Discurso Directo

com David Mourão-Ferreira

 

 

«Mamma Roma», Mãe Roma, já disseram dela. Cidade Eterna, mãe das cidades do mundo porque cheia de história, lendária, maternal e valorosa. Os que passaram por aqui amaram-na como mãe numa ternura entre filial e sensual:

 

Acontece o que tem de acontecer; no momento em que tem de acontecer. E tudo são pretextos para conversar com Roma, para que Roma nos adivinhe o que não sabemos exprimir, para que responda às perguntas que nem chegamos a formular. Nada (ou quase nada) de premeditado: exactamente como deve ser, como não é sempre, nas conversas entre mães e filhos. (*)

 

Não há cidade como Roma por mais que se procure no mundo. Nenhuma tem as suas histórias, com o seu lirismo, o seu pitoresco, a sua profunda poesia.

De onde vem o mistério lírico da sua beleza? Ah!, sabias, moça, que as cidades têm  uma geometria íntima ? David Mourão-Ferreira reparou que o coração geográfico e espiritual da cidade eterna cabe num quadrilátero:

 

Logo na noite da chegada, miraculosamente se me tornou familiar aquele quadrilátero - um trapézio! - cujos vértices se encontram na Piazza del Popolo, na Piazza Venezia, na Stazione di Termini e na Porta Pinciana. É aliás um quadrilátero que ainda hoje constitui, na intimidade crescente que Roma me vem consentindo, o que há para mim de mais íntimo em Roma, E o certo é que a Itália, no que tem de alma visível e de carne secreta, me ficou, por essa vez, praticamente circunscrita a esse espaço, praticamente suspensa desse trapézio. Tudo o mais, na altura, foi apenas paisagem. (*)

 

Escorre um mistério sobre a cidade como um óleo, pegajoso. Inevitável, todos o sentem. Deixa os catálogos oficiais, moça, anda à toa pelas ruas e tenta os acasos que a tornam imprevisível e lhe dão mistério:

 

Andar pelas ruas de Roma equivale a retomar consciência desse mistério. Não são propriamente ruas: são veias; são vias que são veias. Arrastam-me no seu fluir, e a maior parte das vezes não sei para onde vou. É aliás assim que me agrada estar em Roma: sem compromissos, sem destino, sem pessoas a procurar, sem ninguém que me espere. Vir a Roma com programa estabelecido parece-me um crime contra natura. As ruas é que sabem; elas é que decidem onde hão-de levar-me. (*)

 

Para ver Roma, moça, não bastaria uma vida. Cada sítio tem uma história ou uma lenda. De resto, ninguém poderá dizer, na Cidade Eterna, onde acaba a história e onde começa a lenda. Em todo o mundo se contam lendas, mas os romanos têm uma singular característica: para acreditar nas histórias mais inverosímeis, querem alguma prova que as faça parecer verosímeis. O Romano é como São Tomás, não acredita sem ver.

 

As estátuas em Roma são os guias essenciais para conhecer a história e a identidade dos romanos.

 

Se fores ao Campidoglio, ao Pantheon, ao Coliseu,  deves saber que naqueles sítios estava a “SALVATIO ROMAE”, um prodigioso mecanismo, constituído por tantas estátuas quantos eram os países submetidos por Roma. Cada uma tinha ao pescoço uma campainha que tocava sempre que havia uma rebelião e se ouvia até uma distância de 100 Km.  Assim as legiões sabiam como e para onde pôr-se em marcha.

 

A Bocca della Verità (Boca da Verdade), aquela que te morde a mão se disseres uma mentira... sabias que os antigos acreditavam que era uma invenção de Virgílio, considerado na Idade Média um mago capaz de qualquer prodígio? Contavam que lhe pertencia até uma estátua de Tito Lívio (que nasceu um século depois), que denunciava ao imperador os nomes dos que trabalhavam nos dias de folga. Virgílio teria construído também quatro colunas que representavam a Primavera, o Verão, o Outono e o Inverno e que, de quatro em quatro meses, passavam entre si uma bola de latão para avisar da mudança de estação.

 

Quando passeares por detrás da Piazza Navona e deparares com Pasquino, fica a saber que aquela estátua, a mais famosa de Roma, monumento à sátira contra o Poder, foi salva por milagre. O Papa Adriano VI não conseguiu fechar-lhe a boca e ordenou que a atirassem ao rio Tevere; mas conta-se que foi salva a custo pela hábil defesa do duque Ludovico di Sessa. E quando Adriano VI morreu, em 1523, Pasquino vingou-se, mandando pendurar na porta principal da casa do médico do papa uma grinalda de flores e um bilhete: «Al liberator della patria, il Senato e il Popolo romano» (Ao libertador da Pátria, o Senado e o Povo romano). A mesma coisa aconteceu quando morreu o Papa Clemente VII. Desta vez, a mensagem dizia:«Ecce qui tollit peccata mundi». Pasquino desafiou ferozmente Paolo IV e a Santa Inquisição com um epigrama-símbolo: «Figli meno giudizio /e più fede comanda il Sant’Uffizio / E ragionate poco / ché contro la ragion esiste il foco /e la lingua a suo posto / che a Paolo VI piace assai l’arrosto.» (Filhos , menos juízo / e mais fé exige o Santo Ofício / E raciocinai pouco / que contra razão existe o fogo / e a língua esteja no seu lugar / que Paolo VI gosta muito do assado.).

 

Mas Pasquino não foi a única estátua falante. Teve homens e discípulos ilustres, como Marforio (fica nos Musei Vaticani), Madama Lucrezia (diante de Palazzo Venezia), Facchino (em Via Lata, perto de Via del Corso), a única pessoa com existência histórica, e, para terminar, o Abate Luigi (em Palazzo Vidoni).

 

Na Via Veneto, perto do Cemitério dos Capuchinhos, havia, há séculos, um frade vidente capaz de prever os números da lotaria. Chamava-se Fra’ Pacifico e acertava tantas vezes nos números que, a certa altura, o Papa, cansado de ver saqueados os seus cofres por um exército de vencedores, ordenou que o frade se transferisse para outro lugar. Fra’ Pacifico obedeceu; mas, antes de passar as muralhas, acompanhado por uma multidão de fiéis, lançou o seu último desafio, que era uma vingança: «Roma, se’ santa sei, porque cruel se’ tanta, se dici che se’ senta, bugiarda sei». 66, 70, 16, 60 e 6: a cinquina estava servida e os cofres do Papa ficaram vazios.

 

Quando saíres de Castel Sant’Angelo e prosseguires pela ponte que leva a Via dei Borghi, encontrarás a casa de Mastro Titta (Mestre Titta), que foi algoz de profissão por sessenta e oito anos. Por cada execução cobrava cinquenta escudos e... a «dor de cabeça» desaparecia!

 

As execuções capitais estavam na lista das festas de Roma, bem como a festa de Carnaval,  com a corrida de cavalos berberes, sem jóquei, que corriam pela Via del Corso, partindo da Piazza del Popolo até chegar à Piazza Venezia. O mesmo se passava com a battaglia dei moccoletti (batalha dos cotos de vela), quando na segunda-feira gorda os romanos brincavam a acender e a apagar as velas que cada um tinha na mão, desencadeando por toda Via del Corso um frenesim irresistível, um tal desejo de diversão que, às vezes, dava mau resultado. Os romanos foram sempre um bocado belicosos, não só o povo como também os nobres. Os Orsini, por exemplo, que eram os donos dos bairros de Ponte e Panìco, impediram a coroação do imperador Arrigo VII de Lussemburgo. Os barões romanos desafiavam constantemente o poder até à chegada do papa Sisto V, que impôs a decapitaçao de quem ousasse desembainhar a espada.

 

Se Roma fosse apenas isto, teria dito apenas meia verdade. Porque nesta cidade, quimérica e inesgotável, ainda há muito por descobrir.

Portanto, moça, não hesites, vem cá, Roma espera por ti.

 

 

(*) Excertos de Discurso Directo, de David Mourão-Ferreira (1969).

                          

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Campidoglio | Roma



Bocca della Verità | Roma



Statua Pasquino - Roma



Mastro Titta | ilustração da época



Sisto V | selo de 1985 | Roma