ENANTIODROMIA DE FLORBELA ESPANCA:
um percurso, ao contrário, através da vida e dos lugares da poetisa

        

 Convido-vos a percorrerem comigo um itinerário turístico-literário às origens da vida da poetisa Florbela Espanca.   Depois, sozinhos, podereis passear pelos lugares aqui brevemente citados para vos suscitar curiosidade e, quem sabe, sentir o desejo de viajar por essas paragens.

 

 Encontramo-nos em Matosinhos, nas proximidades do Porto. Florbela vive aqui  durante os seus últimos anos de vida, após a segunda tentativa de suicídio, quando já lhe tinha sido diagnosticado um edema pulmonar. Põe definitivamente termo à vida a oito de Dezembro de 1930, no dia do seu aniversário e do seu primeiro casamento, por volta das duas da tarde, ingerindo dois frascos de Veronal (o barbitúrico que a ajudava a dormir). É neste ano que Florbela escreve o Diário do Último Ano e passa a colaborar na revista Portugal Feminino. Em Janeiro de 1931, passados quase dois meses após a morte da poetisa, Guido Battelli, leitor de italiano na Universidade de Coimbra, publica Charneca em Flor.

 

 Em Matosinhos, podemos visitar a Igreja do Bom Jesus, fundada no século XVI. Este edifício foi totalmente renovado pelo pintor e arquitecto Nicolau Nasoni, que marcou o Barroco setecentista na cidade do Porto. Nasoni foi também o arquitecto da Igreja e Torre dos Clérigos, onde se encontra sepultado.

 No interior da Igreja do Bom Jesus, encontram-se alguns dos mais representativos painéis de talha dourada de artistas do barroco nortenho. Associada a esta igreja está a lenda do Senhor de Matosinhos. A tradição diz que a imagem do Senhor de Matosinhos é uma das imagens mais antigas da cristandade. Professa a lenda que a imagem foi esculpida por Nicodemos, que assistiu aos últimos momentos da vida de Jesus; é, por isso, considerada uma cópia fiel da face de Cristo. Nicodemos teria lançado a imagem ao mar Mediterrâneo, na Judeia, e esta teria ido dar à praia de Matosinhos, perdendo um braço. Um dia, uma mulher que andava ao pé da praia de Matosinhos a apanhar lenha encontrou um pedaço de madeira que juntou aos outros. Já em casa, atirou-o à lareira por várias vezes, mas este pedaço saltava sempre para fora, até que a filha, muda de nascença, conseguiu proferir que aquele pedaço era o braço de Nosso Senhor das Bouças. E, de facto, aquele pedaço de madeira ajustava-se perfeitamente à imagem venerada pela população durante muitos anos. No século XVI, a imagem foi transportada para a actual igreja, construída em sua honra.

 Ainda em Matosinhos, pode-se observar a estátua em honra da poetisa e visitar a Biblioteca Municipal Florbela Espanca. Os visitantes podem usufruir das iguarias da região, que é uma das maiores zonas pesqueiras do país. Podem comer peixes e mariscos de todos os tipos e, já que estão ali tão perto, não devem deixar de visitar a cidade Invicta (cuja zona ribeirinha faz parte do Património Mundial da UNESCO desde 1996) e as caves do vinho do Porto, em Vila Nova de Gaia.


 
Em 1927, encontramos Florbela a traduzir romances franceses para a Livraria Civilização do Porto e preparando «Dominó Preto». Neste mesmo ano, falece o seu irmão Apeles, o que lhe inspira o livro de contos As Máscaras do Destino. Neste livro, destaca-se o primeiro conto, «O Aviador», dado que Apeles era aviador das Forças Armadas. Em 1925, Florbela muda-se para casa do seu médico e
futuro marido, Mário Lage, que morava em Esmoriz. O facto  distancia-a da sua família, que corta relações com a poetisa, na sequência do seu segundo divórcio.

 

 Esmoriz faz parte do concelho de Ovar, no distrito de Aveiro.  Em frente de Esmoriz, fica a Barrinha, uma laguna. É uma localidade muito procurada pelos veraneantes devido aos bons pratos de peixe. Em Ovar, é famoso o «pão-de-ló», um bolo tradicional. Quem sabe se, caminhando pelas ruas de Ovar, o visitante não encontrará ainda o traje típico da cidade, o da «mulher do chapeirão», com saia de lã preta e blusa branca de fazenda de lã, com uma tira rendada e peitilho às pregas. Nos ombros, um lenço branco de algodão, linho ou seda, em cima do qual veste um capotão de fazenda preta com um adorno largo de veludo preto e um laço nas costas. Na cabeça, usa um chapeirão com grandes abas e com cordão. Calça umas chinelas pretas de verniz e meias brancas rendadas. O homem usa um fato preto com colete e camisa branca de linho com peitilho às pregas de algodão ou linho e abotoadura de ouro. Na cabeça, usa um chapéu alto e calça botas pretas de polimento. 

 O viajante pode dar um salto a Aveiro, uma cidade singular, banhada pela sua ria, e aproveitar para ver os barcos moliceiros.


 Dois anos mais tarde, a neurose de Florbela agrava-se, à medida que a relação com o marido se vai desgastando progressivamente. Em 1920, inicia Claustro de Quimeras e passa a viver com António Guimarães, em Matosinhos, com quem se casa em 1921. Este seu segundo casamento é o mais breve e infeliz, dado o carácter violento do marido.
Em 1923, de volta a Lisboa, publica o Livro de Soror Saudade. Florbela já tinha estado nesta cidade em 1917, quando se tinha inscrito na Faculdade de Direito. Separa-se do primeiro marido, Alberto Moutinho, e é dado à estampa o Livro de Mágoas, após um período de correspondência com Raul Proença. Florbela termina o terceiro ano da Faculdade de Direito, sem fazer sequer um exame.

 

 Lisboa está edificada sobre sete colinas: Castelo, Graça, Monte, Santa Catarina, Penha de França, S. Pedro de Alcântara e Estrela. Situada numa zona de grande actividade sísmica, deu-se, a 1 de Novembro de 1755, o maior terremoto jamais sucedido, o qual destruiu totalmente a zona baixa da cidade. A Lisboa Pombalina, mais conhecida por Baixa, nasceu das ruínas desse cataclismo. Vestígios do modelo de construção árabe podem ainda ser vistos no bairro de Alfama. Digno de ser admirado é também o Castelo de S. Jorge, que tem origem anterior à fundação da nacionalidade portuguesa.

 Em Lisboa, aconselho o viajante a andar pela cidade a pé e observar os maravilhosos azulejos de vários períodos históricos e artísticos que, devido ao tratamento e às utilizações originais, se tornaram tipicamente portugueses. Sugiro também ao viajante que apanhe o eléctrico número 28, que parte lentamente do Cemitério dos Prazeres e vai até ao Martim Moniz, passando por cinco das sete colinas. Os visitantes devem aproveitar também para admirar a vista de sugestivos miradouros (Igreja da Graça, Nossa Senhora do Monte, São Pedro de Alcântara e Castelo).

 Para terem uma ideia da vida boémia lisboeta nos tempos em que aí viveu Florbela, vão à Baixa, ao Bairro Alto e ao Chiado e não deixem de entrar nos seus numerosos cafés antigos, onde outrora aconteciam as famosas tertúlias. Já agora, não deixem de passar pelas não menos numerosas tasquinhas de ambiente familiar e com comida caseira. Para ouvirem o fado, fica aqui a sugestão para irem procurar nas vielas tortuosas de Alfama uma casa de fado, pois foi naquele bairro antigo que o fado nasceu.


 Em 1917, Florbela regressa a Évora, onde completa o 11º ano do curso complementar de letras. Em 1914, ainda casados de fresco, Florbela e o marido mudam-se para o Redondo, onde abrem um colégio privado. No ano seguinte, Florbela inicia Trocando Olhares. Em 1916, publica Crisântemos e torna-se colaboradora do jornal Notícias de Évora.

 

 No Redondo, uma pequena vila no interior do alto Alentejo, no concelho de Évora, convido o viajante a entrar nas várias oficinas de olaria para poder observar esta arte tradicional e experimentar com as próprias mãos a modelação do barro (com o consentimento do artesão). Já agora,  pode também provar os vinhos da região, de renome nacional. Para os interessados, e a fim de desfrutarem ao máximo esta viagem pelos lugares onde viveu a nossa poetisa, a apenas dez quilómetros ao norte do Redondo fica um importante núcleo megalítico: os dólmenes da Serra de Ossa.
            

 Em 1908, morre a mãe de Florbela, indo a família para Évora. Florbela prossegue os estudos no Liceu Masculino André de Gouveia (facto raro na altura para uma rapariga). Em 1911, começa a namorar com um colega do liceu, Alberto Moutinho, com quem casará a oito de Dezembro, com dezanove anos. Em 1912, completa o décimo ano na mesma cidade.

 

 Évora, pela sua grandiosidade, é considerada a cidade-museu de Portugal e tem o estatuto de património mundial da UNESCO. Quase todos os reis de Portugal tiveram a sua corte nesta cidade. Aconselho o visitante, mal chegue a Évora, a dirigir-se ao posto de informações situado na Praça do Giraldo (praça principal), pois os monumentos e percursos são muitos. Destaco aqui apenas o Templo de Diana, que é uma das ruínas romanas mais bem conservadas da Península, e a Capela dos Ossos na Igreja de S. Francisco, usada como sala de meditação pelos frades franciscanos. Esta capela está completamente revestida de ossos nas paredes e colunas, motivo que testemunha o gosto da época barroca pelo macabro. A alusão à efémera existência humana é acentuada pela inscrição no umbral da porta: «Nós, ossos, que cá estamos, pelos vossos esperamos».

 Esta cidade foi conquistada aos mouros em 1166, por Geraldo, o «Sem Pavor». Reza a lenda que este homem nobre, decidindo conquistar a cidade, a tenha rondado disfarçado de trovador e tenha elaborado uma estratégia para atacar a torre principal do castelo, vigiada por dois mouros. Assim, numa noite, sozinho, apoderou-se da dita torre e das chaves da cidade, conquistando-a e entregando-a a D. Afonso Henriques, que o nomeou alcaide perpétuo de Évora.

 Ainda nesta cidade, convido o viajante a provar a gastronomia regional, uma das mais ricas de Portugal, com destaque  para a cabeça de xara, os pezinhos de porco de coentrada, as migas, a açorda e a sopa de tomate. A acompanhar, um vinho das caves Eugénio de Almeida; para rematar, as queijadinhas de Évora.

 
 
Chegamos finalmente a Vila Viçosa, onde Florbela Espanca nasce a oito de Dezembro de 1894. Com sete anos escreve a sua primeira poesia, intitulada «A vida e a morte». Em Junho de 1906, conclui a instrução primária e, já em 1907, dá os primeiros sinais de neurastenia. É também nesta data que escreve o seu primeiro conto: «Mamã!». Florbela viveu na Rua da Corredoura, nesta vila, onde ainda hoje se encontra a sua casa, com varanda e telhado mourisco.

 

 Em Vila Viçosa o viajante pode visitar o Palácio Ducal, residência dos Duques de Bragança desde o início do século XVI. A fachada principal é toda revestida de mármore, pois na região a extracção desta pedra é uma das actividades mais importantes. O edifício inspira-se na arquitectura italiana renascentista e tem três andares. Cada andar inspira-se, respectivamente, na ordem dórica, jónica e coríntia. No interior das cinquenta salas, abertas ao público, podem ver-se peças de preciosas colecções de arte e espécies bibliográficas pertencentes a D. Manuel II, último rei de Portugal. A biblioteca dispõe da maior colecção de livros antigos da tipografia portuguesa dos séculos XV e XVI, entre os quais a edição princeps d’Os Lusíadas. Actualmente, este palácio pertence à Fundação Casa de Bragança e está transformado em museu de artes decorativas.

 Também nesta vila, o viajante não pode deixar de visitar o Convento  das Chagas de Cristo, situado no Terreiro do Paço, fundado pelo quarto duque de Bragança, D. Jaime, com o objectivo de transformar a igreja em panteão familiar da linha feminina da Casa de Bragança. Mais tarde, o convento foi entregue às monjas da ordem feminina de Santa Clara. O portal é renascentista, interpretado com regionalismos particulares; a nave, de abóbadas ogivais, filia-se na arte manuelina, e as paredes são revestidas de azulejos do século XVII.
           

 Apesar de ter tido uma vida muito breve, Florbela deixou na alma dos seus admiradores a semente dos seus versos e dos seus contos, escritos no ímpeto devorador de uma vida autêntica e cheia de paixão.

 Aqui termina a nossa viagem às origens da vida da poetisa, com o convite para fazerem uma visita a estes lugares onde a poetisa deixou o seu rasto.


 Sandra Mendonça Pires

                          

Turismo Literário
  Artigos desta secção

Turismo Literário com David Mourão-Ferreira:  A Terra Napolitana
(Universidade de Bari, Itália)

Enantiodromia de Florbela Espanca
(Universidade de Bari, Itália)

Roma: uma mulher em Discurso Directo com David Mourão-Ferreira
(Universidade de Bari, Itália)




Igreja do Bom Jesus de Braga



Barcos Rabelos no Rio Douro



Aveiro



Paço Ducal de Vila Viçosa



Florbela Espanca