*GENTE DA TERCEIRA CLASSE é o título da crónica que narra a primeira viagem de José Rodrigues Miguéis para os Estados Unidos da América. Ao ler este registo autobiográfico, o leitor poderá captar as primeiras impressões de uma realidade social que será desenvolvida nos contos e novelas. |
Jornal de bordo - 1935
«(...) É preciso ter viajado num destes transatlânticos para se fazer uma ideia das fronteiras que separam os homens e as classes, mesmo dentro duma casca de noz. E somos poucos, aqui, não mais de cinquenta: que faria se fôssemos os duzentos ou quatrocentos da lotação, só Deus sabe, amontoados na imunda gafaria que é a terceira dos emigrantes. (...)
Ao partir, levavam consigo ao menos uma esperança: agora nem isso lhes resta. Muitos deles, com o sonho, seu único luxo, perderam por lá a saúde e a força de trabalho, que era toda a sua riqueza.
Com estes, os de torna-viagem, embarcaram na Madeira e agora comigo, em Lisboa, alguns portugueses que vão, como eu, à Inglaterra tomar o paquete para os Estados Unidos. Assim se juntam aqui, embora com destinos e em estados de alma opostos, duas correntes da mesma miséria: uma delas, ainda quente do sol da ilusão, parte para a zonas mais temperadas e prósperas do Leste americano; a outra regressa lá do equador e do trópico, fria de desapontamento, amolambada e escrofulosa, para se dispersar por todos os cantos deste nosso mundo cristão e ocidental. Correntes humanas, num inquieto e perpétuo corropio em torno destoutro mar de Sargaços, a vida.(...)»
in «Gente da Terceira Classe», 3.ª ed, Editorial Estampa, 1983 pp. 11 e 12
*(Crónica publicada na revista «Seara Nova» nos anos 40 e depois integrada no volume intitulado «Gente da Terceira Classe». A primeira edição data de 1962).
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