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Século XIX

Rafael Bordalo Pinheiro

Rafael Bordalo Pinheiro
Rafael Bordalo Pinheiro, por Matilde Tomaz do Couto Rafael Bordalo Pinheiro Rafael Bordalo Pinheiro (1846-1905) revelou-se um espírito brilhante, ímpar de criatividade, que aplicou a uma contínua intervenção atenta e crítica à vida portuguesa. Permanecem de surpreendente atualidade os seus comentários à política, à economia, à sociedade da época, nas revistas de caricatura e humor que editou, atitude que não raro refletiu na cerâmica que, a partir de 1884, logra revitalizar nas Caldas da Rainha. Rafael Augusto Prostes Bordalo Pinheiro nasce na Rua da Fé, em Lisboa, aos 21 de março de 1846, terceiro filho duma extensa prole de doze irmãos, a quem se seguiria o célebre retratista Columbano (1857-1929). Foram seus pais o pintor romântico Manuel Maria Bordalo Pinheiro (1815-1880) e D. Maria Augusta do Ó Carvalho Prostes. Com nove anos, ingressa no Liceu Central das Mercieiras e, quatro anos após, na Academia Real das Belas Artes de Lisboa, onde virá a frequentar classes de Desenho até 1871. Entretanto, em 1865, matricula-se ainda no Curso Superior de Letras, quando já tivera também, com apenas catorze anos, o seu primeiro contacto com o palco, ao integrar o elenco duma peça que sobe à cena no Teatro Garrett. Este interesse que muito cedo despertara e o acompanhará por toda a vida certamente o motiva a inscrever-se, por essa época, no Curso de Arte Dramática do Conservatório de Lisboa. Todavia, não chega a concluir os estudos em qualquer destas áreas, pois o cumprimento disciplinado dos programas escolares escapa ao seu temperamento irrequieto. Em 1863, dá início à vida profissional como amanuense da secretaria da Câmara dos Pares, ocupação que dificilmente conviria ao seu caráter, mas que parece manter até 1875. Data de 15 de setembro de 1866 o casamento de Rafael com D. Elvira Ferreira de Almeida, enlace romanesco apadrinhado por Júlio César Machado (1835-1890), que se realiza contra a vontade da família da noiva. Do tempo então passado na Quinta da Broa, na Golegã, resultam apontamentos a desenho e aguarela tomados do natural, que fixam a paisagem e os costumes da região. Rafael Bordalo Pinheiro ... Genuinamente português por constituição e por temperamento, de olhos pretos, nariz grosso, cabelo crespo, tendendo para a obesidade, ele é um sensual, um voluptuoso, um dispersivo, um desordenado. Uma das mais belas virtudes que ele não tem, é a que consiste em vencer os impulsos da natureza. Desgraçadamente, observa-se com frequência que os homens rígidos, que mais exemplarmente triunfam das próprias paixões, não triunfam de mais nada. Ramalho Ortigão, 1891 Estreia-se nos salões da Sociedade Promotora das Belas Artes em Portugal, em 1868, no qual seu pai também figura, não passando despercebidos os trabalhos a aguarela que apresenta de tipos populares da capital, como a “Vendedeira de Queijos”, o “Vendedor de Fósforos” ou o “Vendedor de Palitos e Rocas”. Na exposição de 1870, denunciam-se já os seus predicados de fino observador e a intuição do caricaturista, em obras intituladas “O Espirra-Canivetes”, “Os Jogadores de Gamão” ou a série de “O Homem que ri”. Até 1874, Rafael mantém uma presença assídua nos certames da Promotora, com cenas de costumes, algumas notadas pelo seu realismo. Contudo, a carreira artística de Bordalo encontraria outras vias de desenvolvimento, passando ainda pelo jornalismo, a ilustração e a decoração. Como exemplo, cite-se o livro de Júlio César Machado, “Os Teatros de Lisboa” (1875), que é documentado com perto de 250 belos desenhos de Rafael Bordalo. De notar que, entre 1873 e 1875, colabora como ilustrador nos periódicos estrangeiros “Illustración de Madrid”, “Illustración Española y Americana”, “El Mundo Cómico”, “El Bazar” e em várias revistas francesas e inglesas, além do prestigiado “Illustrated London News”, que lhe dirige convites de trabalho em Londres, que Bordalo não aceita. Mas será com a caricatura artística que o génio de Rafael Bordalo Pinheiro deixará uma marca indelével e inconfundível no século XIX português. O seu lápis traduz no quotidiano a perspicaz e oportuna observação do humor bordaliano, caracteriza a política do País escalpelizando os seus ícones, cria símbolos das realidades nacionais, dos quais o Zé Povinho se ergue como a imagem dum povo explorado e sofredor, mas conformado com a sorte que lhe cabe. Bordalo perfila-se como o crítico, mas também como o lutador em defesa dos valores e da dignidade de Portugal. O momento mais alto e mais sentido será, sem dúvida, o da crise do “Ultimatum” britânico de 1890, que motiva inúmeras páginas patrióticas e a personificação da Inglaterra na figura anafada e arrogante de John Bull. Em 1870, o sucesso obtido por uma caricatura alusiva à peça em cena intitulada “O Dente da Baronesa” revelara um talento e iria despoletar uma paixão. Esse ano vê surgir sucessivamente o espirituoso álbum de caricaturas “O Calcanhar d’Aquiles”, a folha humorística “A Berlinda”, da qual saem sete números, e “O Binóculo”, periódico semanal à venda apenas nos teatros, com quatro números publicados. Deu ainda à estampa o “Mapa de Portugal”, cujo êxito foi assinalado por vendas superiores a 4000 exemplares, no espaço de um mês. Data de 1875 a iniciativa então de maior alcance, com a criação do primeiro jornal dedicado à crítica social: “A Lanterna Mágica”. São companheiros de Bordalo neste empreendimento Guilherme de Azevedo (1840-1882) e Guerra Junqueiro (1850-1923), um projeto que faz a crónica dos factos sociais, enquanto tece a crítica às políticas e às instituições. Neste contexto, nasce a figura do Zé Povinho, tão acertada no seu conteúdo, que permanece no imaginário português com uma reforçada carga simbólica. Definia-se o vasto campo da atuação de Bordalo, não só de expressão artística e de vivacidade de espírito crítico, mas de intervenção cívica e patriótica. Surgindo nessa época uma proposta de colaboração em “O Mosquito”, jornal brasileiro de humor, no verão de 1875, parte para o Rio de Janeiro, onde viverá quatro anos, apesar duma difícil adaptação ao meio. A sua permanência no Brasil fica ainda assinalada pela criação de duas revistas de caricaturas: o “Psit!!!” (1877) e “O Besouro” (1878-79). É a oportunidade para nascerem do seu lápis novas personagens-tipo da sociedade carioca, tais como o Psit!, o Arola ou o Fagundes. Em Lisboa, publicava-se o “Álbum de Caricaturas: Frases e Anexins da Língua Portuguesa” (1876), ilustrado com desenhos de Bordalo. Logo após o seu regresso à Pátria, em meados de 1879, dá início à publicação de “O António Maria”, cujo título alude a António Maria Fontes Pereira de Melo, figura política dominante que presidira ao Ministério. Até janeiro de 1885, nas páginas desta revista onde também colaborou Guilherme de Azevedo, conjuga-se um combate de ideias que visa os partidos no exercício do poder e as debilitadas instituições da monarquia. Em simultâneo, vão saindo as folhas do “Álbum das Glórias”, 42 caricaturas de personalidades e instituições portuguesas, comentadas por literatos contemporâneos. Na sua globalidade, estas obras, a que ainda acrescem edições do “Almanaque do António Maria”, constituem o cerne da obra gráfica de Rafael Bordalo Pinheiro, o apogeu do criador e um momento ímpar na cultura portuguesa. É por esta época que Rafael Bordalo Pinheiro integra o Grupo do Leão (1881-89), importante formação livre apoiada por Alberto de Oliveira (1861-1922), que reúne artistas, escritores, intelectuais em torno de Silva Porto (1850-1893) e inclui os pintores José Malhoa (1855-1933), António Ramalho (1859-1916), João Vaz (1859-1931), Moura Girão (1840-1916), Henrique Pinto (1853-1912), Ribeiro Cristino (1858-1948), Rodrigues Vieira (1856-1898), Cipriano Martins e ainda Columbano, que pinta o célebre retrato de grupo (1885) onde figuram estes protagonistas à mesa do Leão d’Ouro, acompanhados por Manuel Fidalgo e outro dos criados daquela cervejaria lisboeta. Também Rafael caricatura os mesmos na “Alegoria ao Grupo do Leão”, óleo a simular azulejo em que cada artista surge com os atributos do seu género de pintura. De 1885 a 1891, publica os “Pontos nos ii”, revista com idêntica intenção e semelhante na postura de defesa das causas portuguesas e de denúncia clara das manobras políticas, em que assumem particular relevo a “Questão com a Inglaterra”, o “Monopólio dos Tabacos”, o “Ultimatum” e a “Revolta do Porto de 31 de janeiro”. É na sequência das empenhadas páginas dedicadas a este último acontecimento que o jornal é encerrado pelo Governo Civil de Lisboa, logo após o número de 5 de fevereiro de 1891. Será a oportunidade para o rápido reaparecimento de “O António Maria”, numa 2ª série que perdurará até 1899. Em 1900, dá lugar a “A Paródia”, revista que atesta o desencanto de Rafael Bordalo face à vida política do País, substituindo-a cada vez mais pelo comentário do seu desenho aos eventos e às personalidades do meio artístico lisboeta, e dando espaço à colaboração do filho Manuel Gustavo (1867-1920). No entanto – ou por isso mesmo –, é nas capas dos primeiros números desta revista que caricatura os variados aspetos da realidade socioeconómica, de forma tão certeira que a sua aplicação continua a ser lembrada com acuidade, seja “A Política: a Grande Porca”, “A Finança: o Grande Cão”, “A Economia: a Galinha Choca” ou “A Retórica Parlamentar: o Grande Papagaio”. Refere a estudiosa do artista, Irisalva Moita: “concorria em Rafael Bordalo Pinheiro um tão importante conjunto de predicados necessários ao caricaturista – espírito crítico, poder de síntese, penetração psicológica, amor ao próximo, desenho incisivo e rápido, intuição, poder de fixação do essencial – que era neste campo que o Artista havia, forçosamente, de se encontrar.”. Lembre-se que é ele ainda o pioneiro, nas suas revistas, da banda desenhada portuguesa. A criação da Fábrica de Faianças das Caldas da Rainha sob a direção artística de Bordalo e a sua instalação na vila, em 1884, contribui decisivamente para a revitalização da ancestral cerâmica local, quer pela revolução das formas, quer pela gramática decorativa de raiz francamente naturalista e tantas vezes duma exuberância a desafiar a realidade. É a oportunidade de passar à argila a caricatura e o humor, entre muitos outros motivos criando os bonecos de movimento, como o Zé Povinho, a Velha Maria, a Ama das Caldas, o Cura, o Sacristão, o Polícia. Por outro lado, executa cerca de 60 figuras da Paixão de Cristo (1887-99) para as Capelas do Buçaco, esculturas em terracota de grande animismo, individualidade e movimento, uma encomenda do Governo português para 86 figuras, que não foi concluída, e se pode apreciar no Museu de José Malhoa, nas Caldas da Rainha. Mas não só a faiança das Caldas deve a Bordalo Pinheiro o desbravar de caminhos. Também a arte do barro portuguesa em geral colhe benéfico fruto da ação e da inspiração desse notável vulto da nossa cultura. Dirige ainda a construção do Pavilhão de Portugal na Exposição Universal de Paris de 1889, empreendimento grandioso que reúne e valoriza os produtos nacionais, alcançando aí a cerâmica das Caldas notável sucesso e sendo o artista galardoado com medalha de ouro. Em 1892, em colaboração com Ramalho Ortigão (1836-1915), realiza outro importante projeto internacional: a decoração da secção portuguesa da Exposição Colombiana de Madrid, segundo programa de motivos náuticos de grande visibilidade. Aos 58 anos, quando a sua produção artística ainda teria muito a revelar, Rafael Bordalo Pinheiro morre em Lisboa, no dia 23 de janeiro de 1905. Bordalo, espírito criador, grande talento de artista, renovador da cerâmica das Caldas, o caricaturista “pai” do Zé Povinho, deixa uma obra que se identifica com o próprio País e o seu povo, não só pelo génio do Artista, mas também pela intervenção do Homem. Bibliografia sumária Couto, Matilde Tomaz do – A Arte do Barro nas Caldas, in “Museu de José Malhoa: Roteiro”, Caldas da Rainha, Museu de José Malhoa, 2005. Couto, Matilde Tomaz do – Os Passos da Paixão de Cristo segundo Rafael Bordalo Pinheiro, in “Monumentos”, n.º 20, Lisboa, DGEMN, Março 2004. França, José-Augusto – Rafael Bordalo Pinheiro: o Português tal e qual, Lisboa, Livraria Bertrand, 1981. Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira, vol. 4, Lisboa – Rio de Janeiro, Editorial Enciclopédia, Limitada, s. d.. Guia do Museu Rafael Bordalo Pinheiro, Lisboa, Câmara Municipal de Lisboa, s. d.. Moita, Irisalva – A Caricatura na Obra Cerâmica de Rafael Bordalo Pinheiro, Caldas da Rainha, Museu de José Malhoa, 1987. Ortigão, Ramalho – A Fábrica das Caldas da Rainha, Porto, 1891. Pinto, Manoel de Sousa – Raphael Bordallo Pinheiro: O Caricaturista, Lisboa, Livraria Ferreira, 1915. Raphael Bordallo Pinheiro aos quadradinhos, Lisboa, Bedeteca de Lisboa, 1996.

Teófilo Braga

Teófilo Braga
Teófilo Braga, por Amadeu Carvalho Homem * Teófilo Braga Natural dos Açores, porque nascido na cidade de Ponta Delgada em 24 de fevereiro de 1843, Joaquim Teófilo Braga foi o sétimo filho de um casamento celebrado entre Joaquim Manuel Fernandes Braga, um antigo oficial miguelista, e Maria José da Câmara Albuquerque, filha de um descendente dos donatários da ilha de Santa Maria. A infância do pequeno Joaquim ressentiu-se da irreparável perda da sua mãe, falecida prematuramente, e do jugo que sobre ele exerceu, com rudeza e severidade, uma inclemente madrasta, Ricarda Marfim Pereira de seu nome. Os estudos primários e secundários foram realizados na capital da ilha micaelense e revelaram desde cedo a tenacidade de um jovem ambicioso e lutador. Teófilo Braga foi disciplinarmente punido no Liceu de Ponta Delgada, onde seu pai exercia atividades letivas, por ter ridicularizado um professor que lhe contestava a pretensão de um dia ser doutor, arguindo que não via moita da qual pudesse sair tal coelho; respondeu o discípulo, em jeito escarninho, declarando que o dito professor não tinha faro... Este jovem aspirante a doutor iniciou-se nas lides intelectuais e literárias desde cedo, sob o patrocínio de um farmacêutico natural da Lousã, Francisco Maria Supico, que se trasferira para Ponta Delgada por imperativos profissionais, aí desempenhando um papel muito ativo no jornalismo coevo. Com efeito, foi no jornal da Ribeira Grande A Estrela Oriental, dirigido por Supico, que Joaquim Teófilo Braga fez imprimir a sua primeira e ingénua poesia: tratou-se d’ “A Canção do Guerreiro”, composição de entono patriótico dedicada ao seu irmão João Fernandes Braga. Dando mostras de notório desembaraço, o jovem poeta viria a criar órgãos de imprensa quase inteiramente compostos e administrados por sua mão, para neles exarar as primícias do seu talento. Foi o que aconteceu com o semanário O Meteoro e com o quinzenário O Santelmo. Em 1859, com edição custeada pelo Visconde da Praia, potentado local, publicou o livro de versos Folhas Verdes. Tratou-se de uma tímida imitação das Folhas Caídas, de Almeida Garrett, sem que desta tentativa literária tenha resultado grande glória para o autor. Acabados os estudos liceais, passou a impor-se o problema de dar rumo à vida. Os meios económicos familiares eram escassos e a tradição dos ilhéus desamparados era a de procurarem melhores condições de sobrevivência através da emigração, sobretudo dirigida para as Américas. Por isso, Teófilo Braga começou por informar o pai do seu desejo de abandonar S. Miguel e de ir exercer em solo americano uma atividade profissional, talvez de tipógrafo, talvez de comerciante, talvez de assalariado numa qualquer atividade remunerada. O pai colocou-lhe a hipótese, mais aliciante, de ir estudar para Coimbra, embora o tivesse então advertido da fraca mesada que lhe poderia dispensar. A estima de Supico corroborou as intenções paternas, estimulando com entusiasmo o projeto esboçado. Assim, eis Teófilo Braga, aspirante a doutor, a arribar a Coimbra em abril de 1861, com o propósito de se matricular em Teologia ou Direito. Vingaria a opção pelos estudos jurídicos, após a dilação de um ano letivo, no qual repetiu as matérias preparatórias ao ingresso na Faculdade escolhida. A vida estudantil deste jovem açoriano foi pautada por uma férrea disciplina de vontade e por um estilo quase espartano de existência. Distanciou-se, portanto, da boémia académica e preferiu dar continuidade às diversas expressões da sua valia mental. Em Coimbra veio encontrar o seu conterrâneo Antero de Quental, chefe de fila de uma tertúlia intelectual alargada, à qual passou a pertencer, mantendo sempre, contudo, uma postura distanciada e egolátrica. Eram numerosas, por esse tempo, as folhas académicas - como O Pirilampo, O Fósforo e o Tira-Teimas - que recolhiam os tentames em prosa e verso de candidatos à notoriedade e à glória. Por algumas destas espalhou os seus poemas e as suas reflexões. O seu nome começou a ser conhecido, tanto dentro como fora dos círculos estritamente universitários. Alguns lentes da Faculdade de Direito reconheciam-lhe a aplicação, procurando arranjar-lhe tarefas retribuídas que lhe mitigassem a exiguidade da bolsa. Um desses trabalhos consistiu na organização e classificação dos velhos alfarrábios pertencentes a algumas livrarias monásticas. É certo que Teófilo não deixou de secundar a luta estudantil contra o implacável rigor disciplinar do Reitor Basílio Alberto de Sousa Pinto, luta na qual se viria a distinguir Antero de Quental, um dos principais mentores do movimento de protesto. Contudo, reservando o melhor do seu esforço para objetivos pessoais, a sua principal aposta consistiu em convencer um editor a publicar-lhe uma obra poética de maior fôlego, intitulada Visão dos Tempos. O livro surgirá em 1864, publicado pela Casa Moré, editora do Porto. O gerente da Moré, Gomes Monteiro, ficara rendido aos méritos desta obra. E se ela não se elevava ao cume da perfeição estética, era inegável que comportava o arejo da novidade temática e metodológica. Novidade, em Portugal, entenda-se... A sugestão de base era importada diretamente da Légende des Siècles, de Victor Hugo, que dera à diacronia histórica a peculiaridade de exaltantes abordagens poéticas. Algo de similar procurava Teófilo Braga incutir na sua Visão dos Tempos, que forcejava por captar em versos a essencialidade do classicismo, do judaísmo ou do cristianismo. A obra mereceu da crítica os maiores elogios. Ao tempo, era indisputável a autoridade da avaliação de António Feliciano de Castilho e do seu séquito de admiradores lisbonenses. A verdade é que tanto Castilho como o seu dileto amigo Manuel Pinheiro Chagas se renderam aos encantos da Visão, saudando-a com públicos louvores. Não aconteceu o mesmo quando Teófilo publicou um outro livro de poesia, as Tempestades Sonoras, que eram precedidas por um prólogo filosófico deveras obscuro e quase indecifrável. Aproveitaram os literatos de Lisboa a oportunidade para zurzirem certas personalidades que revelavam tendências dissidentes, tanto no plano de pura conceção artística, como no plano das reivindicações políticas. E como Antero de Quental tivesse feito imprimir recentemente as suas Odes Modernas, militantemente adversas à política conservadora da monarquia constitucional e à atuação da Igreja ultramontana, Castilho e os seus homens decidiram mover guerra sem quartel aos dois iconoclastas, que consideraram expoentes de uma escola coimbrã de gosto depravado e altamente nocivo. A guerra estalou quando Manuel Pinheiro Chagas deu ao prelo o seu Poema da Mocidade. António Feliciano de Castilho entendeu saudar o livro como se fosse uma insuperável obra-prima, através de uma carta-posfácio exarada no fim do volume; o elogio fazia contraponto com alfinetadas com que também aí eram visados os trabalhos de Antero e Teófilo. Assim se iniciou a chamada “Questão Coimbrã”, uma das mais apaixonadas refregas em que se envolveram literatos lusos, através da difusão de numerosos textos críticos e folhetos apologéticos. Antero de Quental replicou com o seu Bom Senso e Bom Gosto, seguindo-se-lhe A Dignidade das Letras e as Literaturas Oficiais, e Teófilo veio à liça com o verrinoso ataque contido n’As Teocracias Literárias. Não eram apenas diferenças de conceção estética e preferências de ideologia política o que determinava os ataques das hostes de Castilho contra os “dois bácoros” (Castilho dixit) de Coimbra. Vagara a cadeira de Literaturas Modernas do Curso Superior de Letras e António Feliciano de Castilho arvorara-se em ativo apoiante da ambição de Manuel Pinheiro Chagas em a lecionar, chegando ao ponto de sugerir, no já referido posfácio, que o seu protegido deveria ser provido interinamente em tal lugar, com dispensa do concurso público previsto na lei. Ora, o círculo de Castilho suspeitava, aliás com fundamento, que os execrandos conimbricenses também cobiçavam a vaga. Para Teófilo, a oportunidade era de ouro. Doutorara-se em 1868 e não obstante o seu apego ao trabalho e os dotes da sua inteligência vira gorar várias hipóteses de emprego estável, facto tanto mais preocupante quanto eram certos os acréscimos de responsabilidade, uma vez que contraíra matrimónio, no ano do seu doutoramento, com Dª Maria do Carmo Barros Leite. Não conseguira ingressar como professor na Academia Politécnica do Porto e também falhara a entrada no corpo docente da Faculdade de Direito de Coimbra, uma vez que o júri adotara, no concurso a que se submeteu, o adverso – e, para ele, incompreensível, – princípio da antiguidade na obtenção do grau académico. Teófilo Braga teve de esperar pelo ano de 1872 para poder reivindicar, num memorável concurso público, o ambicionado lugar de professor do Curso Superior de Letras. Superiorizou-se, no juízo do júri, a Manuel Pinheiro Chagas e a Luciano Cordeiro. E este triunfo, alcançado sobre pretendentes que gozavam de patrocínios quase oficiais, foi-lhe especialmente grato. Teófilo quis ser um pensador sistemático, ou seja, um teórico baseado num conjunto de evidências que lhe permitissem uma intrépida e dogmática interpretação do Homem, do Mundo e da Vida. Por isso, não nos deve espantar o alvoroço com que abraçou o positivismo e o labor sincrético com que o afeiçoou ao seu específico perfil mental. Esta conversão ao espírito de positividade irá operar-se entre 1872 e 1877. Para ela concorreu grandemente a influência de Joaquim Duarte Moreira de Sousa, professor de Matemática do Liceu de Castelo Branco, com quem largamente conferenciou. Era Moreira de Sousa espírito curioso e culto, além de ser um atento leitor das obras de Augusto Comte. Não esperemos, porém, que o positivismo teofiliano fique subordinado a uma servil glosa do pensamento de Augusto Comte ou de Emílio Littré. Como já se declarou, o que impera é um espírito de positividade que resultará da correlação sincrética entre a universalidade das relações teóricas mutuamente mantidas pelas disciplinas da enciclopédia científica. Esta atitude, que poderia ser o mais poderoso fator de novidade no contexto do pensamento de Teófilo, acaba por traduzir-se num exercício fatigante de descodificação. Para tal contribui a aproximação, puramente subjetiva e por vezes aleatória, de filosofemas pseudo-científicos e de generalizações abusivas. É isto que se colhe dos artigos exarados na revista O Positivismo, fundada por Teófilo Braga e por Júlio de Matos, a qual se divulgou a partir do Porto, entre 1878 e 1882; com mais flagrante nitidez, é ainda isto que se colhe da leitura do livro Traços Gerais de Filosofia Positiva comprovados pelas descobertas científicas modernas (1877), bem como da complexa arquitetura do Sistema de Sociologia (1884). Como é sabido, o projeto político do positivismo apontará, em último termo, para a versão de um republicanismo laico e compatível com as estratificações de classe do capitalismo desenvolvido. Teófilo, enquanto leitor das páginas de Comte, fixou-se francamente mais na radicalidade racionalista do Curso de Filosofia Positiva do que no imanentismo religioso do Sistema de Política Positiva. O seu visceral jacobinismo conduziu-o às teses do republicanismo federalista, de que se fez arauto e chefe de fila. Os temas da descentralização administrativa e do mandato imperativo, da viabilização e dos limites do princípio associativo, da gestão republicana do ensino público, do combate ao clericalismo ultramontano, do alcance e significado da soberania nacional e da génese e desenvolvimento das esperanças democráticas, a caminho do sufrágio universal, enchem os numerosos artigos que publicou, nomeadamente nos jornais A Vanguarda, O Século e O Rebate. A militância desta produção irá reservar-lhe um lugar de grande destaque na galeria dos republicanos do seu tempo, guindando-o a posições de representação e de comando. Entre 1879 e 1881 irão aparecer algumas das mais marcantes obras do seu ideário político. Estão neste caso as Soluções Positivas da Política Portuguesa (1879), a História das Ideias Republicanas em Portugal (1880) e a Dissolução do Sistema Monárquico-Representativo (1881). A propaganda por ele desenvolvida não se confinou à expressão livresca. Além de ter participado em inúmeros comícios e festividades promovidas por centros, clubes e associações republicanas, foi uma das mais obstinadas personalidades, de parceria com Ramalho Ortigão, a coordenar as vontades com base nas quais se organizaram, em 10 de Junho de 1880, as festividades do Tricentenário de Camões. Enquanto professor do Curso Superior de Letras e enquanto investigador, Teófilo Braga deu-nos o exemplo de um incansável estudioso. Embora dispensando à família a atenção que esta lhe exigia, na sua casa da Travessa de Santa Gertrudes, embora atento à evolução do crescimento dos seus dois filhos, que brindava com brinquedos saídos da sua habilidade manual, Teófilo vivia num quase recolhimento monástico, que ia quebrando para corresponder aos convites dos seus admiradores e às lutas impostas pelas campanhas cívicas. Foi através desta concentração cogitativa que se abalançou a escrever, quase desde os alicerces, a sua monumental História da Literatura Portuguesa. Compulsando vastos repositórios documentais, embora nem sempre cultivando a prudência interpretativa, Teófilo Braga teve, apesar dos deslizes, o mérito de esboçar a evolução da nossa literatura desde os alvores dos romances medievais e da produção dos trovadores galaico-portugueses ao ultrarromantismo e ao realismo da sua época. De bem cedo datam igualmente os seus interesses pela etnologia, pelo folclore e pela criatividade popular espontânea. Datam de 1867 os trabalhos História da Poesia Popular Portuguesa, o Cancioneiro Popular coligido da tradição e o Romanceiro Geral coligido da tradição. Um pouco mais tardio, de 1869, é o livro Cantos Populares do Arquipélago Açoreano; os Contos Tradicionais do Povo Português são de 1883 e os dois tomos da obra O Povo Português nos seus costumes, crenças e tradições remontam a 1885. Entre os finais de 1886 e os inícios de 1887 irá abater-se sobre a família de Teófilo o drama mais dilacerante: morrem-lhe inesperadamente os dois filhos. O respeitado professor do Curso Superior de Letras vê-se a braços com “a maior dor humana”, título do belo poema com que Camilo Castelo Branco desejou manifestar-lhe inteira solidariedade, nesse momento funéreo e tremendo. Apesar disso, permanecerá na barricada política, só atenuando o seu envolvimento na sequência da revolta portuense de 31 de janeiro de 1891. Esta veio encontrá-lo no Diretório do Partido Republicano, onde partilhava responsabilidades com Francisco Homem Cristo. O Diretório lisbonense nunca acreditou nas probabilidades de sucesso do golpe republicano da capital nortenha. Enquanto oficial do exército, Homem Cristo prezava demasiadamente as hierarquias castrenses para conferir credibilidade a uma sedição que não conseguira mobilizar as patentes mais elevadas e que parecia viver apenas dos brios românticos de soldados, cabos e sargentos e dos artigos inflamados do jornalista João Chagas. Teófilo corroborava esta leitura. Um e outro tudo fizeram para suster a eclosão do movimento militar. Após o naufrágio total da conspiração, com alguns dos implicados em fuga e muitos outros submetidos ao veredicto do tribunal militar de Leixões, ergueram-se vozes críticas nas hostes do republicanismo, lastimando que o Diretório de Lisboa não tivesse assumido uma posição mais compreensiva e solidária para com os implicados. Teófilo Braga melindrou-se com os argumentos dos objetores e decidiu passar a desempenhar nos trabalhos de propaganda republicana um papel mais discreto. Mas continuou atento às vicissitudes do “partido do povo”. Não é, por isso, de estranhar que o encontremos, em 1896, a secundar o programa do Grupo Republicano de Estudos Sociais, contribuindo para a quebra da passividade em que estavam a incorrer os responsáveis cimeiros do Partido Republicano e revendo, num sentido mais interventivo, as linhas programáticas desta formação partidária. A situação interna de Portugal degradou-se notoriamente após a crise do Ultimato inglês. Desfiguraram-se as garantias cívicas que até então singularizavam o regime e lhe conferiam a nota da equanimidade e da tolerância. De um constitucionalismo conservador transitou-se frequentemente para formas de despotismo anticonstitucional. Após o primeiro lustro do decénio de 90, passaram a ser frequentes os recursos a ditaduras administrativas e credíveis os protestos da opinião pública contra a rapacidade dos políticos. Na transição do século XIX para o século XX, irá assistir-se ao desmantelamento do sistema rotativo, que garantira até então a previsibilidade e a estabilidade do sistema de Poder. As cisões introduzidas por João Franco e por José de Alpoim nos dois grandes partidos históricos da monarquia constitucional, criando, respetivamente, ao lado do Partido Regenerador um minúsculo Partido Regenerador Liberal e ao lado do Partido Progressista a patrulha da Dissidência Progressista, vieram alterar profundamente as regras da coexistência política. A ditadura ensaiada por João Franco a partir de maio de 1907, que contou com a solidariedade efetiva do rei D. Carlos, não é mais do que um episódio desta magna crise e a culminação das pequenas e grandes provocações mútuas com que se passaram a guerrear Hintze Ribeiro, chefe do Partido Regenerador, e José Luciano de Castro, responsável máximo do Partido Progressista. Dividido entre as suas obrigações letivas e as sua indagações intelectuais, cumpridas no casulo doméstico de Santa Gertrudes, Teófilo Braga acompanharia os desvarios da ditadura franquista, o regicídio e a entronização de D. Manuel II, o qual, segundo João Chagas, assumiu os arminhos régios “quando já não era preciso”. Entrementes, a conspiração republicana alcançou vigor e amplitude, impulsionada pelo Partido Republicano, pela Maçonaria, pela Carbonária Portuguesa e por numerosos grupos de intervenção doutrinária, afetos ao campo republicano. A mudança do regime, pela via revolucionária, aconteceu na madrugada de 4 para 5 de Outubro de 1910. Teófilo Braga recebeu a confiança dos correligionários para ocupar o cargo de Presidente do Governo Provisório da República Portuguesa. Estava em marcha o fracionamento do campo republicano. O velho Partido Republicano unitário sofreu o efeito dos dissídios suscitados entre algumas das suas figuras de proa, sendo flagrante que o maior radicalismo de Afonso Costa dificilmente se poderia harmonizar com a maior moderação de António José de Almeida ou com o abstracionismo intelectual de Brito Camacho. Foi em torno destas figuras que se organizaram as novas formações partidárias. Afonso Costa recebeu a herança do antigo Partido Republicano, agora designado de Partido Democrático, dando origem à formação mais numerosa, mais jacobina e de indelével expressão urbana. António José de Almeida fundou o Partido Evolucionista, mais contemporizador, com menor número de militantes e implantado sobretudo em certas franjas da burguesia rural. Brito Camacho criou uma União Republicana que não representava muito mais do que os corrilhos de certa intelectualidade lisbonense. Uma das primeiras lutas entre estes novos partidos foi suscitada pelo ato eleitoral para a presidência da República. Os “democráticos” de Afonso Costa pretenderam guindar Bernardino Machado à suprema magistratura, ao passo que os “evolucionistas” de António José de Almeida e os “unionistas” de Brito Camacho, unidos num bloco de ocasião e de pura intenção eleitoral, conseguiram impor a candidatura de Manuel de Arriaga. Teófilo Braga esteve sempre muito mais próximo das teses políticas dos “democráticos” do que de quaisquer outras. Além do mais, sobravam, desde os tempos da propaganda realizada sob o regime anterior, questiúnculas insanáveis entre ele e Arriaga. Daí que tenha alinhado, nesta pugna, ao lado de Bernardino Machado e daí que a derrota deste tenha sido sentida, em boa medida, como a sua própria derrota. A partir de setembro de 1911, Teófilo Braga viu-se completamente desacompanhado, em consequência do falecimento da sua mulher. Caracterizará estas novas circunstâncias de vida, numa carta dirigida a Joaquim de Araújo, com palavras que lhe definem lapidarmente a vocação e a têmpera: “Volto a ser o antigo estudante solitário”. Voltará a desempenhar as mais altas funções oficiais, numa presidência republicana interina que se alargou entre maio e outubro de 1915, substituindo Manuel de Arriaga, decerto com maliciosa satisfação íntima. Arriaga oferecera anteriormente as rédeas da governação ao General Pimenta de Castro, que não encontrara melhor processo para aplacar as intransigências políticas das fações do que a implantação de uma ditadura. Quando esta foi varrida pela revolução “democrática” de 14 de maio de 1915, a posição de Manuel de Arriaga tornou-se de tal modo inviável que a demissão se apresentou como a única das possíveis saídas. Cumprida a missão presidencial, Teófilo regressou aos seus livros. A ânsia de somar títulos e de engrossar a sua bibliografia não lhe prejudicou a humildade. Assim se compreende que desde 1909 tenha querido realizar uma “recapitulação” da História da Literatura Portuguesa, revendo em profundidade e refundindo muito do que escrevera, por forma a suprimir erros e a corrigir imprecisões. Por outro lado as questões da identidade nacional tinham-no fascinado desde cedo. Assim, teimou em encontrar um substracto étnico em que pudesse sustentar a “essência da nação portuguesa”. Julgou tê-lo identificado na raça mosárabe ou moçárabe, que se teria originado, em seu entender, através da fusão entre a população goda mais humilde, que não acompanhara a retirada dos aristocratas para as Astúrias, e a população árabe. Esta muito questionável teoria encontra-se sustentada em títulos como as Epopeias da Raça Mosárabe, de 1871, e A Pátria Portuguesa. O Território e a Raça, de 1894. Tal patriotismo não foi uma singularidade ou uma bizantina expressão de subjetividade. Foi, outrossim, uma explícita e elevada reivindicação republicana, impregnando o ideário das diversas gerações militantes. No caso de Teófilo Braga, este pendor também se concretizou nos temas de toda uma literatura de imaginação ou de refiguração, cuja matéria-prima lhe foi fornecida por episódios ou figuras do nosso passado histórico. Isto explica a publicação, em 1902, do poema Os Doze de Inglaterra, da “narrativa epo-histórica” Viriato, de 1904, e do drama Gomes Freire, de 1907. A publicação, entre 1892 e 1902, dos quatro grossos volumes onde traçou a História da Universidade de Coimbra nas suas relações com a instrução pública portuguesa não correspondeu apenas à vontade de fixar os grandes momentos do desenvolvimento do ensino superior em Portugal; significou também um desforço, um ajuste de contas com a instituição que o preteriu num concurso público de candidatura à docência, baseando-se em critérios de antiguidade nos termos dos quais, segundo a sua ironia, “um velho banco da Universidade ” poderia “valer mais do que o Herculano”. O sistema filosófico perfilhado por Teófilo, firmado numa depurada racionalidade positivista e no culto do cientismo, conduziu-o à defesa do materialismo e à adoção do ateísmo. Mas isto não equivaleu à impossibilidade de se aperceber da carga poética inerente ao catolicismo. Não espanta, portanto, que tenham jorrado da sua pena de pensador ateu algumas interessantes páginas consagradas às Origens poéticas do Cristianismo (1880), que mais tarde se completaram com um outro volume, intitulado As Lendas Cristãs (1892). Realizar na idade madura o projeto de vida que se formulou na juventude, não é ventura que todos os seres humanos possam ter. Se a resposta dada por Joaquim Teófilo Braga a um dos seus professores do Liceu de Ponta Delgada, de querer, no futuro, ser doutor, primou pela sinceridade, então encontramo-nos perante uma venturosa criatura. Trabalhador incansável, titã da escrita, ainda que revelando os pés de barro da sua precipitação impetuosa, Teófilo teve um perecimento digno de si, uma vez que podemos afirmar, com propriedade, que morreu a trabalhar. Nos seus últimos tempos de vida queixava-se amargamente das suas enormes dificuldades de visão. Recorria aos préstimos dos seus amigos ou antigos discípulos mais fiéis para lhes ditar os textos que ia mentalmente arquitetando. O seu último projeto de investigação consistiu em tentar reconstruir a vida e a obra do livre-pensador Uriel da Costa. Logrado intento, visto que faleceu, rodeado dos seus papéis, no refúgio da Travessa de Santa Gertrudes, em 28 de janeiro de 1924. Cuidem-se os que se comprazem em denegrir e ridicularizar Teófilo. Ele poderia esmagá-los com o simples peso dos seus incontáveis livros e artigos. Seria triste que pigmeus morressem desta forma. E, sobretudo, seria muito injusto, atendendo à desproporção... Bibliografia Básica BRAGA, Teófilo, Visão dos Tempos, Porto, Em Casa da Viúva Moré-Editora, 1864. BRAGA, Teófilo, Tempestades Sonoras, Porto, Em Casa da Viúva Moré-Editora, 1864. BRAGA, Teófilo, As Theocracias Litterarias, Lisboa, Typographia Universal, 1865. BRAGA, Teófilo, Theoria da Historia da Litteratura Portugueza, Porto, Imprensa Portugueza-Editora, 1872. BRAGA,Teófilo, Traços Geraes de Philosophia Positiva comprovados pelas descobertas scientificas modernas, Lisboa, Nova Livraria Internacional, 1877. BRAGA, Teófilo, Soluções Positivas da Política Portugueza. Da aspiração revolucionaria e sua disciplina em opinião democrática, Lisboa, Nova Livraria Internacional, 1879. BRAGA, Teófilo, Historia das Ideas Republicanas em Portugal, Lisboa, Nova Livraria Internacional, 1880. BRAGA, Teófilo, Dissolução do Systema Monarchico-Representativo, Lisboa, Nova Livraria Internacional, 1881. BRAGA, Teófilo, Systema de Sociologia, Lisboa, Typographia Castro Irmão, 1884. BRAGA, Teófilo, Historia da Universidade de Coimbra nas suas relações com a instrucção publica portugueza, Lisboa, Por ordem e na Typographia da Academia Real das Sciencias, 1892-1902 (4 vols). BRAGA, Teófilo, As Modernas Ideias na Litteratura Portugueza,Porto, Livraria Internacional de Ernesto Chardron, 1892 (2 vols). BRAGA, Teófilo, Discursos sobre a Constituição Politica da Republica Portugueza, Lisboa, Livraria Ferreira, 1911. BASTOS, Teixeira, Theophilo Braga e a sua Obra, Porto, Casa Editora Lugan & Genelioux, Successores, 1892. CARREIRO, José Bruno, Vida de Teófilo Braga. Resumo Cronológico, Coimbra, Coimbra Editora, 1955. CIDADE, Hernâni, Doutor Teófilo Braga. As directrizes da sua obra de história literária, Lisboa, Faculdade de Letras, 1935. COELHO, A. do Prado, Teófilo Braga. Notas de estudo, Lisboa, Faculdade de Letras, 1936. FERRÃO, António, Teófilo Braga e o positivismo em Portugal (com um núcleo de correspondência de Júlio de Matos para Teófilo Braga), Lisboa, Academia das Ciências de Lisboa, 1935. HOMEM, Amadeu Carvalho, A ideia republicana em Portugal. O contributo de Teófilo Braga, Coimbra, Livraria Minerva, 1989. In Memoriam do Doutor Teófilo Braga. 1843-1924, Lisboa, Imprensa Nacional, 1934. ORTIGÃO, J. D. Ramalho, Theophilo Braga. Esboço biographico, Lisboa, Nova Livraria Internacional, 1879. Quarenta annos de vida litteraria (1860-1900). Com um prologo Autobiographia Mental de um Pensador Isolado por Theophilo Braga, Lisboa, Typographia Lusitana-Editora Arthur Brandão, MCMII. Quinquagenario.1858 a 1908. Cincoenta annos de actividade mental de Theophilo Braga julgados pela critica contemporanea de tres gerações litterarias, Lisboa, Antiga Casa Bertrand, José Bastos & C.ª, 1908. SOARES, Mário, As ideias políticas e sociais de Teófilo Braga, Lisboa, 1950. * Faculdade de Letras, Universidade de Coimbra

Rebello da Silva

Rebello da Silva
Rebello da Silva, por Carlos Leone Rebello da Silva Luiz Augusto Rebello da Silva (Lisboa, 1822-1871) foi um prolífico escritor, professor do Curso Superior de Letras (por recusa de Herculano) e homem público (sócio da Academia Real das Ciências desde 1854). Publicou abundantemente sobre Literatura, e fê-lo de acordo com os padrões da sua época: desde a diferença primacial entre Poesia e Prosa até aos géneros dominantes entre o público seu coetâneo (Romance e Teatro), não hesitou em escrever História literária e política enquanto se ocupava dos acontecimentos do quotidiano (estreias, óbitos), sempre atento às adjacências ainda hoje usuais (Jornalismo e Politica). As suas Obras Completas (41 vols., Empreza de História de Portugal, Lisboa), datadas de1909, incluem também um estudo em três volumes sobre a Arcádia Portuguesa, uma Memória biográfica e literária acerca de Manuel Maria Barbosa du Bocage, bem como vários outros trabalhos em que a literatura é fundamental; em aprticular, Apreciações Literárias, uma recolha póstuma (em três volumes) feita pelos editores, de textos dispersos pela Imprensa da época, incluindo mesmo (no volume III) um estudo sobre o Infante D. Henrique que, os próprios editores o admitem, aí figura apenas por conveniência de paginação. Entre as apreciações, encontramos o cânone consensual, ou quase, das Letras portuguesas de meados de Oitocentos: Garrett (com quem debateu no Parlamento) e Herculano (com quem conviveu de perto na Biblioteca da Ajuda), Lopes de Mendonça (qua crítico) e já Camilo Castello Branco e Bulhão Pato. Diferenciando Bocage dos seus seguidores e identificando no combate a estes a filiação de Garrett na escola de Filinto (sem aderir ao seu rigorismo linguístico), Rebello da Silva desenvolve toda a sua argumentação no sentido de o diferenciar dos seus antecessores locais e os colocar entre os seus congéneres europeus, chefes de fila do Romantismo nas várias línguas de cultura da Europa do século XIX, em particular Goethe. Esta contextualização de Garrett ocorre no âmbito de uma reavaliação da Literatura Moderna, valorizando o medieval, próprio da cultura nacional genuína e do seu específico génio linguístico, em detrimento da Literatura artificialmente clássica do Renascimento e do gosto neoclássico (também designado «escola francesa»). No caso português, isto significa: A primitiva lírica portuguesa está nas cantigas dos Cancioneiros; nos solaus e rimances de Bernardim Ribeiro; ou nas coplas de Gil Vicente. Será aquela a linguagem e o sentir do povo de então? De certo é. O verniz, que lhe deu a corte, o reflexo aristocrático, que cega os olhos do poeta, a lisonja que lhe ri nos lábios, vem só à superfície; o fundo ficou o mesmo. (I, 35) É o caráter revolucionário e moderno da D. Branca de Garrett que importa salientar, até para melhor se perceber o que foi este nacionalismo literário: «D. Branca fez uma revolução, porque provou, com argumentos de arte, que só da nacionalidade pode viver a verdadeira poesia.» (p. 40). Como escrevera páginas antes: «D. Branca descende desta linguagem pura castelhana. O seu autor admirava, sem as copiar, as nevoentas idealidades do Norte.» (p. 15). Tal como se pode ler também em Lopes de Mendonça, o sentimento de nacionalidade faz-se a partir de uma pertença ao movimento cultural europeu, não da sua exclusão; a cultura dinâmica da Europa do Norte, protestante e capitalista, não se impõe à comunidade ibérica que a «linguagem pura castelhana» exprime, mas nem por isso é ignorada ou menosprezada. Como era já igualmente nítido, a dificuldade nesta argumentação não se encontra no recurso aos conceitos correntes no pensamento da época mas na sua aplicabilidade ao caso português: disso mesmo dá conta o ensaio, a propósito da escassez de um público, mesmo se (ou além de) o que existe não se distinguir dos gostos vulgares de todos os públicos. Romântico numa sociedade pré-moderna, a Rebello da Silva resta usar o romantismo de Garrett, e acessoriamente o de Castilho e Herculano, contra os «abortos morais» da cena cultural romântica vigente e pródiga em sucessos junto das massas do século alumiado com os touros… Os textos que compõem o segundo volume de Apreciações são bem mais diversos. Nele destacam-se os dois textos dedicados a Alexandre Herculano, «O monge de Cister» e «Escritores contemporâneos», não tanto pela sua dimensão no conjunto deste segundo volume mas pela equiparação do papel de Herculano na Prosa e na Ciência românticas ao de Garrett na Poesia e Dramaturgia. Outros autores são Mendes Leal, destacado da geração nova posterior a Garrett e objeto de cinco textos; Ernesto Biester; D. Maria Cândida de Carvalho; Matheus de Magalhães; Lopes de Mendonça. De importância claramente diversa, nestes textos merecem destaque os dedicados a Herculano e a Lopes de Mendonça. Também o terceiro volume das Apreciações Literárias sofrerá os excessos de forma, mas serão os dos afetos excessivos. Ainda assim, de Lopes de Mendonça a Rebello da Silva e deste a Pinheiro Chagas encontramos em curso de (não) resolução as influências europeias na cultura portuguesa de oitocentos. De um iluminismo tardio a um romantismo limitado no reabilitar da pré-modernidade por um país em que esta nunca fora realmente abolida, até aos dias em que Chagas critica o realismo pela sua ambição falhada (e quantos no século XX não censuram justamente isso à geração de 70?), são os impasses de Portugal enquanto sociedade moderna que aqui surgem em clave literária. Sociedade pré-moderna, com um «Império» fora do tempo da Europa imperialista em sentido próprio, a Portugal já começava claramente a sobrar a História, aquela que levará no século XX António Sérgio escrever a Jaime Cortesão sobre a necessidade de matar o morto que dá pelo nome de «Portugal histórico» e, mais perto de nós, Eduardo Lourenço a insistir na nossa «hiperidentidade». Nas Apreciações Literárias, Rebello da Silva dá conta desses impasses pela dificuldade, impossibilidade, em aplicar as categorias culturais da Europa do seu tempo, Romântica, ao seu objeto de apreciação, não tanto a Literatura como a Arte em Portugal. A quantidade de História que sobrecarrega quase toda a crítica das Apreciações não é defeito do autor (ou, a sê-lo, é vício comum à época), embora se torne mais notória pela dificuldade em ater-se à crítica que pretende empreender, passe o ocasional apelo à benevolência do leitor. Mas nem por isso deixa de ter um fito: serve um programa estético que privilegia a Poesia sobre a Prosa, e cumpre uma função social, política, a exaltação nacionalista pela via linguística. Nesse fito enquadram-se igualmente a sua obra de ficção (Contos e Lendas) e de história (História de Portugal nos Séculos XVII e XVIII), bem como toda a enorme atividade pública que desenvolveu e que lhe valeu, nas Farpas de Eça e Ramalho, uma invulgar elegia. Sobre Rebello da Silva, consultar «Silva, Luís Augusto Rebelo da», por Hernâni Cidade, em Prado Coelho, J., dir., Dicionário de Literatura, vol. 4, pp.1024/5, Mário Figueirinhas Editor, Porto, 1997 (4ª ed.).