Rafael Bordalo
Pinheiro, por Matilde Tomaz do Couto
Rafael Bordalo Pinheiro
Rafael Bordalo Pinheiro (1846-1905) revelou-se
um espírito brilhante, ímpar de criatividade, que aplicou a uma contínua
intervenção atenta e crítica à vida portuguesa. Permanecem de surpreendente
atualidade os seus comentários à política, à economia, à sociedade da época,
nas revistas de caricatura e humor que editou, atitude que não raro refletiu na
cerâmica que, a partir de 1884, logra revitalizar nas Caldas da Rainha.
Rafael Augusto Prostes Bordalo Pinheiro nasce
na Rua da Fé, em Lisboa, aos 21 de março de 1846, terceiro filho duma extensa
prole de doze irmãos, a quem se seguiria o célebre retratista Columbano
(1857-1929). Foram seus pais o pintor romântico Manuel Maria Bordalo Pinheiro
(1815-1880) e D. Maria Augusta do Ó Carvalho Prostes.
Com nove anos, ingressa no Liceu Central das
Mercieiras e, quatro anos após, na Academia Real das Belas Artes de Lisboa,
onde virá a frequentar classes de Desenho até 1871. Entretanto, em 1865,
matricula-se ainda no Curso Superior de Letras, quando já tivera também, com
apenas catorze anos, o seu primeiro contacto com o palco, ao integrar o elenco
duma peça que sobe à cena no Teatro Garrett. Este interesse que muito cedo
despertara e o acompanhará por toda a vida certamente o motiva a inscrever-se,
por essa época, no Curso de Arte Dramática do Conservatório de Lisboa. Todavia,
não chega a concluir os estudos em qualquer destas áreas, pois o cumprimento
disciplinado dos programas escolares escapa ao seu temperamento irrequieto.
Em 1863, dá início à vida profissional como
amanuense da secretaria da Câmara dos Pares, ocupação que dificilmente conviria
ao seu caráter, mas que parece manter até 1875.
Data de 15 de setembro de 1866 o casamento de
Rafael com D. Elvira Ferreira de Almeida, enlace romanesco apadrinhado por
Júlio César Machado (1835-1890), que se realiza contra a vontade da família da
noiva. Do tempo então passado na Quinta da Broa, na Golegã, resultam apontamentos
a desenho e aguarela tomados do natural, que fixam a paisagem e os costumes da
região.
Rafael Bordalo Pinheiro ... Genuinamente
português por constituição e por temperamento, de olhos pretos, nariz grosso,
cabelo crespo, tendendo para a obesidade, ele é um sensual, um voluptuoso, um
dispersivo, um desordenado. Uma das mais belas virtudes que ele não tem, é a
que consiste em vencer os impulsos da natureza. Desgraçadamente, observa-se com
frequência que os homens rígidos, que mais exemplarmente triunfam das próprias
paixões, não triunfam de mais nada.
Ramalho Ortigão, 1891
Estreia-se nos salões da Sociedade Promotora
das Belas Artes em Portugal, em 1868, no qual seu pai também figura, não
passando despercebidos os trabalhos a aguarela que apresenta de tipos populares
da capital, como a “Vendedeira de Queijos”, o “Vendedor de Fósforos” ou o
“Vendedor de Palitos e Rocas”. Na exposição de 1870, denunciam-se já os seus
predicados de fino observador e a intuição do caricaturista, em obras
intituladas “O Espirra-Canivetes”, “Os Jogadores de Gamão” ou a série de “O
Homem que ri”. Até 1874, Rafael mantém uma presença assídua nos certames da
Promotora, com cenas de costumes, algumas notadas pelo seu realismo.
Contudo, a carreira artística de Bordalo
encontraria outras vias de desenvolvimento, passando ainda pelo jornalismo, a
ilustração e a decoração. Como exemplo, cite-se o livro de Júlio César Machado,
“Os Teatros de Lisboa” (1875), que é documentado com perto de 250 belos
desenhos de Rafael Bordalo. De notar que, entre 1873 e 1875, colabora como
ilustrador nos periódicos estrangeiros “Illustración de Madrid”, “Illustración
Española y Americana”, “El Mundo Cómico”, “El Bazar” e em várias revistas
francesas e inglesas, além do prestigiado “Illustrated London News”, que lhe
dirige convites de trabalho em Londres, que Bordalo não aceita.
Mas será com a caricatura artística que o
génio de Rafael Bordalo Pinheiro deixará uma marca indelével e inconfundível no
século XIX português. O seu lápis traduz no quotidiano a perspicaz e oportuna
observação do humor bordaliano, caracteriza a política do País escalpelizando
os seus ícones, cria símbolos das realidades nacionais, dos quais o Zé Povinho
se ergue como a imagem dum povo explorado e sofredor, mas conformado com a
sorte que lhe cabe. Bordalo perfila-se como o crítico, mas também como o
lutador em defesa dos valores e da dignidade de Portugal. O momento mais alto e
mais sentido será, sem dúvida, o da crise do “Ultimatum” britânico de 1890, que
motiva inúmeras páginas patrióticas e a personificação da Inglaterra na figura
anafada e arrogante de John Bull.
Em 1870, o sucesso obtido por uma caricatura
alusiva à peça em cena intitulada “O Dente da Baronesa” revelara um talento e
iria despoletar uma paixão. Esse ano vê surgir sucessivamente o espirituoso
álbum de caricaturas “O Calcanhar d’Aquiles”, a folha humorística “A Berlinda”,
da qual saem sete números, e “O Binóculo”, periódico semanal à venda apenas nos
teatros, com quatro números publicados. Deu ainda à estampa o “Mapa de
Portugal”, cujo êxito foi assinalado por vendas superiores a 4000 exemplares,
no espaço de um mês.
Data de 1875 a
iniciativa então de maior alcance, com a criação do primeiro jornal dedicado à
crítica social: “A Lanterna Mágica”. São companheiros de Bordalo neste
empreendimento Guilherme de Azevedo (1840-1882) e Guerra Junqueiro (1850-1923),
um projeto que faz a crónica dos factos sociais, enquanto tece a crítica às
políticas e às instituições. Neste contexto, nasce a figura do Zé Povinho, tão
acertada no seu conteúdo, que permanece no imaginário português com uma
reforçada carga simbólica.
Definia-se o vasto campo da atuação de
Bordalo, não só de expressão artística e de vivacidade de espírito crítico, mas
de intervenção cívica e patriótica.
Surgindo nessa época uma proposta de
colaboração em “O Mosquito”, jornal brasileiro de humor, no verão de 1875,
parte para o Rio de Janeiro, onde viverá quatro anos, apesar duma difícil
adaptação ao meio. A sua permanência no Brasil fica ainda assinalada pela
criação de duas revistas de caricaturas: o “Psit!!!” (1877) e “O Besouro”
(1878-79). É a oportunidade para nascerem do seu lápis novas personagens-tipo
da sociedade carioca, tais como o Psit!, o Arola ou o Fagundes.
Em Lisboa, publicava-se o “Álbum de
Caricaturas: Frases e Anexins da Língua Portuguesa” (1876), ilustrado com
desenhos de Bordalo.
Logo após o seu regresso à Pátria, em meados
de 1879, dá início à publicação de “O António Maria”, cujo título alude a
António Maria Fontes Pereira de Melo, figura política dominante que presidira
ao Ministério. Até janeiro de 1885, nas páginas desta revista onde também
colaborou Guilherme de Azevedo, conjuga-se um combate de ideias que visa os
partidos no exercício do poder e as debilitadas instituições da monarquia. Em
simultâneo, vão saindo as folhas do “Álbum das Glórias”, 42 caricaturas de
personalidades e instituições portuguesas, comentadas por literatos
contemporâneos. Na sua globalidade, estas obras, a que ainda acrescem edições
do “Almanaque do António Maria”, constituem o cerne da obra gráfica de Rafael
Bordalo Pinheiro, o apogeu do criador e um momento ímpar na cultura portuguesa.
É por esta época que Rafael Bordalo Pinheiro
integra o Grupo do Leão (1881-89), importante formação livre apoiada por
Alberto de Oliveira (1861-1922), que reúne artistas, escritores, intelectuais
em torno de Silva Porto (1850-1893) e inclui os pintores José Malhoa
(1855-1933), António Ramalho (1859-1916), João Vaz (1859-1931), Moura Girão
(1840-1916), Henrique Pinto (1853-1912), Ribeiro Cristino (1858-1948),
Rodrigues Vieira (1856-1898), Cipriano Martins e ainda Columbano, que pinta o
célebre retrato de grupo (1885) onde figuram estes protagonistas à mesa do Leão
d’Ouro, acompanhados por Manuel Fidalgo e outro dos criados daquela cervejaria
lisboeta. Também Rafael caricatura os mesmos na “Alegoria ao Grupo do Leão”,
óleo a simular azulejo em que cada artista surge com os atributos do seu género
de pintura.
De 1885 a
1891, publica os “Pontos nos ii”, revista com idêntica intenção e semelhante na
postura de defesa das causas portuguesas e de denúncia clara das manobras
políticas, em que assumem particular relevo a “Questão com a Inglaterra”, o
“Monopólio dos Tabacos”, o “Ultimatum” e a “Revolta do Porto de 31 de janeiro”.
É na sequência das empenhadas páginas dedicadas a este último acontecimento que
o jornal é encerrado pelo Governo Civil de Lisboa, logo após o número de 5 de
fevereiro de 1891.
Será a oportunidade para o rápido
reaparecimento de “O António Maria”, numa 2ª série que perdurará até 1899. Em
1900, dá lugar a “A Paródia”, revista que atesta o desencanto de Rafael Bordalo
face à vida política do País, substituindo-a cada vez mais pelo comentário do
seu desenho aos eventos e às personalidades do meio artístico lisboeta, e dando
espaço à colaboração do filho Manuel Gustavo (1867-1920). No entanto – ou por
isso mesmo –, é nas capas dos primeiros números desta revista que caricatura os
variados aspetos da realidade socioeconómica, de forma tão certeira que a sua
aplicação continua a ser lembrada com acuidade, seja “A Política: a Grande
Porca”, “A Finança: o Grande Cão”, “A Economia: a Galinha Choca” ou “A Retórica
Parlamentar: o Grande Papagaio”.
Refere a estudiosa do artista, Irisalva Moita:
“concorria em Rafael Bordalo Pinheiro
um tão importante conjunto de predicados necessários ao caricaturista –
espírito crítico, poder de síntese, penetração psicológica, amor ao próximo,
desenho incisivo e rápido, intuição, poder de fixação do essencial – que era
neste campo que o Artista havia, forçosamente, de se encontrar.”. Lembre-se que
é ele ainda o pioneiro, nas suas revistas, da banda desenhada portuguesa.
A criação da Fábrica de Faianças das Caldas da
Rainha sob a direção artística de Bordalo e a sua instalação na vila, em 1884,
contribui decisivamente para a revitalização da ancestral cerâmica local, quer
pela revolução das formas, quer pela gramática decorativa de raiz francamente
naturalista e tantas vezes duma exuberância a desafiar a realidade. É a
oportunidade de passar à argila a caricatura e o humor, entre muitos outros
motivos criando os bonecos de movimento, como o Zé Povinho, a Velha Maria, a
Ama das Caldas, o Cura, o Sacristão, o Polícia. Por outro lado, executa cerca
de 60 figuras da Paixão de Cristo (1887-99) para as Capelas do Buçaco,
esculturas em terracota de grande animismo, individualidade e movimento, uma
encomenda do Governo português para 86 figuras, que não foi concluída, e se
pode apreciar no Museu de José Malhoa, nas Caldas da Rainha. Mas não só a
faiança das Caldas deve a Bordalo Pinheiro o desbravar de caminhos. Também a
arte do barro portuguesa em geral colhe benéfico fruto da ação e da inspiração
desse notável vulto da nossa cultura.
Dirige ainda a construção do Pavilhão de
Portugal na Exposição Universal de Paris de 1889, empreendimento grandioso que
reúne e valoriza os produtos nacionais, alcançando aí a cerâmica das Caldas
notável sucesso e sendo o artista galardoado com medalha de ouro. Em 1892, em
colaboração com Ramalho Ortigão (1836-1915), realiza outro importante projeto
internacional: a decoração da secção portuguesa da Exposição Colombiana de
Madrid, segundo programa de motivos náuticos de grande visibilidade.
Aos 58 anos, quando a sua produção artística
ainda teria muito a revelar, Rafael Bordalo Pinheiro morre em Lisboa, no dia 23
de janeiro de 1905.
Bordalo, espírito criador, grande talento de
artista, renovador da cerâmica das Caldas, o caricaturista “pai” do Zé Povinho,
deixa uma obra que se identifica com o próprio País e o seu povo, não só pelo
génio do Artista, mas também pela intervenção do Homem.
Bibliografia sumária
Couto, Matilde Tomaz do – A Arte do Barro
nas Caldas, in “Museu de José Malhoa: Roteiro”, Caldas da Rainha, Museu de
José Malhoa, 2005. Couto, Matilde Tomaz do – Os Passos da Paixão de Cristo segundo
Rafael Bordalo Pinheiro, in “Monumentos”, n.º 20, Lisboa, DGEMN, Março
2004. França, José-Augusto – Rafael Bordalo Pinheiro: o Português tal e qual,
Lisboa, Livraria Bertrand, 1981. Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira, vol. 4, Lisboa – Rio de
Janeiro, Editorial Enciclopédia, Limitada, s. d.. Guia do Museu Rafael Bordalo Pinheiro, Lisboa, Câmara Municipal de
Lisboa, s. d.. Moita, Irisalva – A Caricatura na Obra Cerâmica de Rafael Bordalo Pinheiro,
Caldas da Rainha, Museu de José Malhoa, 1987. Ortigão, Ramalho – A Fábrica das Caldas da Rainha, Porto, 1891. Pinto, Manoel de Sousa – Raphael Bordallo Pinheiro: O Caricaturista,
Lisboa, Livraria Ferreira, 1915. Raphael Bordallo Pinheiro aos quadradinhos, Lisboa, Bedeteca de Lisboa,
1996.
Teófilo Braga, por Amadeu Carvalho Homem *
Teófilo Braga
Natural dos Açores, porque nascido na cidade
de Ponta Delgada em 24 de fevereiro de 1843, Joaquim Teófilo Braga foi o sétimo
filho de um casamento celebrado entre Joaquim Manuel Fernandes Braga, um antigo
oficial miguelista, e Maria José da
Câmara Albuquerque, filha de um descendente dos donatários da ilha de Santa
Maria. A infância do pequeno Joaquim ressentiu-se da irreparável perda da sua mãe,
falecida prematuramente, e do jugo que sobre ele exerceu, com rudeza e
severidade, uma inclemente madrasta, Ricarda Marfim Pereira de seu nome. Os
estudos primários e secundários foram realizados na capital da ilha micaelense
e revelaram desde cedo a tenacidade de um jovem ambicioso e lutador. Teófilo Braga
foi disciplinarmente punido no Liceu de Ponta Delgada, onde seu pai exercia
atividades letivas, por ter ridicularizado um professor que lhe contestava a
pretensão de um dia ser doutor, arguindo que não via moita da qual pudesse sair
tal coelho; respondeu o discípulo, em jeito escarninho, declarando que o dito
professor não tinha faro...
Este jovem aspirante a doutor iniciou-se nas
lides intelectuais e literárias desde cedo, sob o patrocínio de um farmacêutico
natural da Lousã, Francisco Maria Supico, que se trasferira para Ponta Delgada
por imperativos profissionais, aí desempenhando um papel muito ativo no
jornalismo coevo. Com efeito, foi no jornal da Ribeira Grande A Estrela
Oriental, dirigido por Supico, que Joaquim Teófilo Braga fez imprimir a sua
primeira e ingénua poesia: tratou-se d’ “A Canção do Guerreiro”, composição de
entono patriótico dedicada ao seu irmão João Fernandes Braga. Dando mostras de
notório desembaraço, o jovem poeta viria a criar órgãos de imprensa quase
inteiramente compostos e administrados por sua mão, para neles exarar as
primícias do seu talento. Foi o que aconteceu com o semanário O Meteoro e com o quinzenário O Santelmo. Em 1859, com edição custeada pelo
Visconde da Praia, potentado local, publicou o livro de versos Folhas Verdes.
Tratou-se de uma tímida imitação das Folhas Caídas, de Almeida Garrett,
sem que desta tentativa literária tenha resultado grande glória para o autor. Acabados os estudos liceais, passou a impor-se o problema de dar rumo à vida.
Os meios económicos familiares eram escassos e a tradição dos ilhéus
desamparados era a de procurarem melhores condições de sobrevivência através da
emigração, sobretudo dirigida para as Américas. Por isso, Teófilo Braga começou
por informar o pai do seu desejo de abandonar S. Miguel e de ir exercer em solo
americano uma atividade profissional, talvez de tipógrafo, talvez de
comerciante, talvez de assalariado numa qualquer atividade remunerada. O pai
colocou-lhe a hipótese, mais aliciante, de ir estudar para Coimbra, embora o
tivesse então advertido da fraca mesada que lhe poderia dispensar. A estima de
Supico corroborou as intenções paternas, estimulando com entusiasmo o projeto
esboçado. Assim, eis Teófilo Braga, aspirante a doutor, a arribar a Coimbra em
abril de 1861, com o propósito de se matricular em Teologia ou Direito.
Vingaria a opção pelos estudos jurídicos, após a dilação de um ano letivo, no
qual repetiu as matérias preparatórias ao ingresso na Faculdade escolhida.
A vida estudantil deste jovem açoriano foi pautada por uma férrea disciplina de
vontade e por um estilo quase espartano de existência. Distanciou-se, portanto,
da boémia académica e preferiu dar continuidade às diversas expressões da sua
valia mental. Em Coimbra veio encontrar o seu conterrâneo Antero de Quental,
chefe de fila de uma tertúlia intelectual alargada, à qual passou a pertencer,
mantendo sempre, contudo, uma postura distanciada e egolátrica. Eram numerosas,
por esse tempo, as folhas académicas - como O Pirilampo, O Fósforo e o Tira-Teimas - que recolhiam os tentames em prosa e verso de
candidatos à notoriedade e à glória. Por algumas destas espalhou os seus poemas
e as suas reflexões. O seu nome começou a ser conhecido, tanto dentro como fora
dos círculos estritamente universitários. Alguns lentes da Faculdade de Direito
reconheciam-lhe a aplicação, procurando arranjar-lhe tarefas retribuídas que
lhe mitigassem a exiguidade da bolsa. Um desses trabalhos consistiu na
organização e classificação dos velhos alfarrábios pertencentes a algumas livrarias
monásticas. É certo que Teófilo não deixou de secundar a luta estudantil contra
o implacável rigor disciplinar do Reitor Basílio Alberto de Sousa Pinto, luta
na qual se viria a distinguir Antero de Quental, um dos principais mentores do
movimento de protesto. Contudo, reservando o melhor do seu esforço para
objetivos pessoais, a sua principal aposta consistiu em convencer um editor a
publicar-lhe uma obra poética de maior fôlego, intitulada Visão dos Tempos.
O livro surgirá em 1864, publicado pela Casa Moré, editora do Porto. O gerente
da Moré, Gomes Monteiro, ficara rendido aos méritos desta obra. E se ela não se
elevava ao cume da perfeição estética, era inegável que comportava o arejo da
novidade temática e metodológica. Novidade, em Portugal, entenda-se... A
sugestão de base era importada diretamente da Légende des Siècles, de
Victor Hugo, que dera à diacronia histórica a peculiaridade de exaltantes
abordagens poéticas. Algo de similar procurava Teófilo Braga incutir na sua Visão
dos Tempos, que forcejava por captar em versos a essencialidade do
classicismo, do judaísmo ou do cristianismo. A obra mereceu da crítica os maiores elogios. Ao tempo, era indisputável a
autoridade da avaliação de António Feliciano de Castilho e do seu séquito de
admiradores lisbonenses. A verdade é que tanto Castilho como o seu dileto amigo
Manuel Pinheiro Chagas se renderam aos encantos da Visão, saudando-a com
públicos louvores. Não aconteceu o mesmo quando Teófilo publicou um outro livro
de poesia, as Tempestades Sonoras, que eram precedidas por um prólogo
filosófico deveras obscuro e quase indecifrável. Aproveitaram os literatos de
Lisboa a oportunidade para zurzirem certas personalidades que revelavam
tendências dissidentes, tanto no plano de pura conceção artística, como no
plano das reivindicações políticas. E como Antero de Quental tivesse feito
imprimir recentemente as suas Odes Modernas, militantemente adversas à
política conservadora da monarquia constitucional e à atuação da Igreja
ultramontana, Castilho e os seus homens decidiram mover guerra sem quartel aos
dois iconoclastas, que consideraram expoentes de uma escola coimbrã de
gosto depravado e altamente nocivo. A guerra estalou quando Manuel Pinheiro
Chagas deu ao prelo o seu Poema da Mocidade. António Feliciano de
Castilho entendeu saudar o livro como se fosse uma insuperável obra-prima,
através de uma carta-posfácio exarada no fim do volume; o elogio fazia
contraponto com alfinetadas com que também aí eram visados os trabalhos de
Antero e Teófilo. Assim se iniciou a chamada “Questão Coimbrã”, uma das mais
apaixonadas refregas em que se envolveram literatos lusos, através da difusão
de numerosos textos críticos e folhetos apologéticos. Antero de Quental
replicou com o seu Bom Senso e Bom Gosto, seguindo-se-lhe A Dignidade
das Letras e as Literaturas Oficiais, e Teófilo veio à liça com o verrinoso
ataque contido n’As Teocracias Literárias.
Não eram apenas diferenças de conceção
estética e preferências de ideologia política o que determinava os ataques das
hostes de Castilho contra os “dois bácoros” (Castilho dixit) de Coimbra.
Vagara a cadeira de Literaturas Modernas do Curso Superior de Letras e António
Feliciano de Castilho arvorara-se em ativo apoiante da ambição de Manuel
Pinheiro Chagas em a lecionar, chegando ao ponto de sugerir, no já referido
posfácio, que o seu protegido deveria ser provido interinamente em tal lugar,
com dispensa do concurso público previsto na lei. Ora, o círculo de Castilho
suspeitava, aliás com fundamento, que os execrandos conimbricenses também
cobiçavam a vaga.
Para Teófilo, a oportunidade era de ouro.
Doutorara-se em 1868 e não obstante o seu apego ao trabalho e os dotes da sua
inteligência vira gorar várias hipóteses de emprego estável, facto tanto mais
preocupante quanto eram certos os acréscimos de responsabilidade, uma vez que
contraíra matrimónio, no ano do seu doutoramento, com Dª Maria do Carmo Barros
Leite. Não conseguira ingressar como professor na Academia Politécnica do Porto
e também falhara a entrada no corpo docente da Faculdade de Direito de Coimbra,
uma vez que o júri adotara, no concurso a que se submeteu, o adverso – e, para
ele, incompreensível, – princípio da antiguidade na obtenção do grau académico.
Teófilo Braga teve de esperar pelo ano de 1872 para poder reivindicar, num
memorável concurso público, o ambicionado lugar de professor do Curso Superior
de Letras. Superiorizou-se, no juízo do júri, a Manuel Pinheiro Chagas e a
Luciano Cordeiro. E este triunfo, alcançado sobre pretendentes que gozavam de
patrocínios quase oficiais, foi-lhe especialmente grato.
Teófilo quis ser um pensador sistemático, ou
seja, um teórico baseado num conjunto de evidências que lhe permitissem uma
intrépida e dogmática interpretação do Homem, do Mundo e da Vida. Por isso, não
nos deve espantar o alvoroço com que abraçou o positivismo e o labor sincrético
com que o afeiçoou ao seu específico perfil mental. Esta conversão ao espírito
de positividade irá operar-se entre 1872 e 1877. Para ela concorreu
grandemente a influência de Joaquim Duarte Moreira de Sousa, professor de
Matemática do Liceu de Castelo Branco, com quem largamente conferenciou. Era
Moreira de Sousa espírito curioso e culto, além de ser um atento leitor das
obras de Augusto Comte. Não esperemos, porém, que o positivismo teofiliano
fique subordinado a uma servil glosa do pensamento de Augusto Comte ou de
Emílio Littré. Como já se declarou, o que impera é um espírito de
positividade que resultará da correlação sincrética entre a universalidade
das relações teóricas mutuamente mantidas pelas disciplinas da enciclopédia
científica. Esta atitude, que poderia ser o mais poderoso fator de novidade no
contexto do pensamento de Teófilo, acaba por traduzir-se num exercício
fatigante de descodificação. Para tal contribui a aproximação, puramente
subjetiva e por vezes aleatória, de filosofemas pseudo-científicos e de
generalizações abusivas. É isto que se colhe dos artigos exarados na revista O
Positivismo, fundada por Teófilo Braga e por Júlio de Matos, a qual se
divulgou a partir do Porto, entre 1878 e 1882; com mais flagrante nitidez, é
ainda isto que se colhe da leitura do livro Traços Gerais de Filosofia
Positiva comprovados pelas descobertas científicas modernas (1877), bem
como da complexa arquitetura do Sistema de Sociologia (1884).
Como é sabido, o projeto político do
positivismo apontará, em último termo, para a versão de um republicanismo laico
e compatível com as estratificações de classe do capitalismo desenvolvido.
Teófilo, enquanto leitor das páginas de Comte, fixou-se francamente mais na
radicalidade racionalista do Curso de Filosofia Positiva do que no
imanentismo religioso do Sistema de Política Positiva. O seu visceral
jacobinismo conduziu-o às teses do republicanismo federalista, de que se fez
arauto e chefe de fila. Os temas da descentralização administrativa e do
mandato imperativo, da viabilização e dos limites do princípio associativo, da
gestão republicana do ensino público, do combate ao clericalismo ultramontano,
do alcance e significado da soberania nacional e da génese e desenvolvimento
das esperanças democráticas, a caminho do sufrágio universal, enchem os
numerosos artigos que publicou, nomeadamente nos jornais A Vanguarda, O
Século e O Rebate. A militância desta produção irá reservar-lhe um
lugar de grande destaque na galeria dos republicanos do seu tempo, guindando-o
a posições de representação e de comando. Entre 1879 e 1881 irão aparecer
algumas das mais marcantes obras do seu ideário político. Estão neste caso as Soluções
Positivas da Política Portuguesa (1879), a História das Ideias
Republicanas em Portugal (1880) e a Dissolução do Sistema
Monárquico-Representativo (1881). A propaganda por ele desenvolvida não se
confinou à expressão livresca. Além de ter participado em inúmeros comícios e
festividades promovidas por centros, clubes e associações republicanas, foi uma
das mais obstinadas personalidades, de parceria com Ramalho Ortigão, a
coordenar as vontades com base nas quais se organizaram, em 10 de Junho de
1880, as festividades do Tricentenário de Camões.
Enquanto professor do Curso Superior de Letras
e enquanto investigador, Teófilo Braga deu-nos o exemplo de um incansável
estudioso. Embora dispensando à família a atenção que esta lhe exigia, na sua
casa da Travessa de Santa Gertrudes, embora atento à evolução do crescimento
dos seus dois filhos, que brindava com brinquedos saídos da sua habilidade
manual, Teófilo vivia num quase recolhimento monástico, que ia quebrando para
corresponder aos convites dos seus admiradores e às lutas impostas pelas
campanhas cívicas. Foi através desta concentração cogitativa que se abalançou a
escrever, quase desde os alicerces, a sua monumental História da Literatura
Portuguesa. Compulsando vastos repositórios documentais, embora nem sempre
cultivando a prudência interpretativa, Teófilo Braga teve, apesar dos deslizes,
o mérito de esboçar a evolução da nossa literatura desde os alvores dos
romances medievais e da produção dos trovadores galaico-portugueses ao
ultrarromantismo e ao realismo da sua época. De bem cedo datam igualmente os
seus interesses pela etnologia, pelo folclore e pela criatividade popular
espontânea. Datam de 1867 os trabalhos História da Poesia Popular Portuguesa,
o Cancioneiro Popular coligido da tradição e o Romanceiro Geral
coligido da tradição. Um pouco mais tardio, de 1869, é o livro Cantos
Populares do Arquipélago Açoreano; os Contos Tradicionais do Povo
Português são de 1883 e os dois tomos da obra O Povo Português nos seus
costumes, crenças e tradições remontam a 1885.
Entre os finais de 1886 e os inícios de 1887
irá abater-se sobre a família de Teófilo o drama mais dilacerante: morrem-lhe
inesperadamente os dois filhos. O respeitado professor do Curso Superior de
Letras vê-se a braços com “a maior dor humana”, título do belo poema com que
Camilo Castelo Branco desejou manifestar-lhe inteira solidariedade, nesse
momento funéreo e tremendo. Apesar disso, permanecerá na barricada política, só
atenuando o seu envolvimento na sequência da revolta portuense de 31 de janeiro
de 1891. Esta veio encontrá-lo no Diretório do Partido Republicano, onde
partilhava responsabilidades com Francisco Homem Cristo.
O Diretório lisbonense nunca acreditou nas
probabilidades de sucesso do golpe republicano da capital nortenha. Enquanto
oficial do exército, Homem Cristo prezava demasiadamente as hierarquias
castrenses para conferir credibilidade a uma sedição que não conseguira
mobilizar as patentes mais elevadas e que parecia viver apenas dos brios
românticos de soldados, cabos e sargentos e dos artigos inflamados do jornalista
João Chagas. Teófilo corroborava esta leitura. Um e outro tudo fizeram para
suster a eclosão do movimento militar. Após o naufrágio total da conspiração,
com alguns dos implicados em fuga e muitos outros submetidos ao veredicto do
tribunal militar de Leixões, ergueram-se vozes críticas nas hostes do
republicanismo, lastimando que o Diretório de Lisboa não tivesse assumido uma
posição mais compreensiva e solidária para com os implicados. Teófilo Braga
melindrou-se com os argumentos dos objetores e decidiu passar a desempenhar nos
trabalhos de propaganda republicana um papel mais discreto. Mas continuou
atento às vicissitudes do “partido do povo”. Não é, por isso, de estranhar que
o encontremos, em 1896, a
secundar o programa do Grupo Republicano de Estudos Sociais, contribuindo para
a quebra da passividade em que estavam a incorrer os responsáveis cimeiros do
Partido Republicano e revendo, num sentido mais interventivo, as linhas
programáticas desta formação partidária.
A situação interna de Portugal degradou-se
notoriamente após a crise do Ultimato inglês. Desfiguraram-se as garantias
cívicas que até então singularizavam o regime e lhe conferiam a nota da
equanimidade e da tolerância. De um constitucionalismo conservador transitou-se
frequentemente para formas de despotismo anticonstitucional. Após o primeiro
lustro do decénio de 90, passaram a ser frequentes os recursos a ditaduras
administrativas e credíveis os protestos da opinião pública contra a rapacidade
dos políticos. Na transição do século XIX para o século XX, irá assistir-se ao
desmantelamento do sistema rotativo, que garantira até então a previsibilidade
e a estabilidade do sistema de Poder. As cisões introduzidas por João Franco e
por José de Alpoim nos dois grandes partidos históricos da monarquia
constitucional, criando, respetivamente, ao lado do Partido Regenerador um
minúsculo Partido Regenerador Liberal e ao lado do Partido Progressista a
patrulha da Dissidência Progressista, vieram alterar profundamente as regras da
coexistência política. A ditadura ensaiada por João Franco a partir de maio de
1907, que contou com a solidariedade efetiva do rei D. Carlos, não é mais do
que um episódio desta magna crise e a culminação das pequenas e grandes
provocações mútuas com que se passaram a guerrear Hintze Ribeiro, chefe do
Partido Regenerador, e José Luciano de Castro, responsável máximo do Partido
Progressista.
Dividido entre as suas obrigações letivas e as
sua indagações intelectuais, cumpridas no casulo doméstico de Santa Gertrudes,
Teófilo Braga acompanharia os desvarios da ditadura franquista, o regicídio e a
entronização de D. Manuel II, o qual, segundo João Chagas, assumiu os arminhos
régios “quando já não era preciso”. Entrementes, a conspiração republicana
alcançou vigor e amplitude, impulsionada pelo Partido Republicano, pela
Maçonaria, pela Carbonária Portuguesa e por numerosos grupos de intervenção
doutrinária, afetos ao campo republicano. A mudança do regime, pela via
revolucionária, aconteceu na madrugada de 4 para 5 de Outubro de 1910. Teófilo
Braga recebeu a confiança dos correligionários para ocupar o cargo de
Presidente do Governo Provisório da República Portuguesa.
Estava em marcha o fracionamento do campo
republicano. O velho Partido Republicano unitário sofreu o efeito dos dissídios
suscitados entre algumas das suas figuras de proa, sendo flagrante que o maior
radicalismo de Afonso Costa dificilmente se poderia harmonizar com a maior
moderação de António José de Almeida ou com o abstracionismo intelectual de
Brito Camacho. Foi em torno destas figuras que se organizaram as novas
formações partidárias. Afonso Costa recebeu a herança do antigo Partido
Republicano, agora designado de Partido Democrático, dando origem à formação
mais numerosa, mais jacobina e de indelével expressão urbana. António José de
Almeida fundou o Partido Evolucionista, mais contemporizador, com menor número
de militantes e implantado sobretudo em certas franjas da burguesia rural.
Brito Camacho criou uma União Republicana que não representava muito mais do
que os corrilhos de certa intelectualidade lisbonense. Uma das primeiras lutas
entre estes novos partidos foi suscitada pelo ato eleitoral para a presidência
da República. Os “democráticos” de Afonso Costa pretenderam guindar Bernardino
Machado à suprema magistratura, ao passo que os “evolucionistas” de António
José de Almeida e os “unionistas” de Brito Camacho, unidos num bloco de
ocasião e de pura intenção eleitoral, conseguiram impor a candidatura de Manuel
de Arriaga. Teófilo Braga esteve sempre muito mais próximo das teses políticas
dos “democráticos” do que de quaisquer outras. Além do mais, sobravam, desde os
tempos da propaganda realizada sob o regime anterior, questiúnculas insanáveis
entre ele e Arriaga. Daí que tenha alinhado, nesta pugna, ao lado de Bernardino
Machado e daí que a derrota deste tenha sido sentida, em boa medida, como a sua
própria derrota.
A partir de setembro de 1911, Teófilo Braga
viu-se completamente desacompanhado, em consequência do falecimento da sua
mulher. Caracterizará estas novas circunstâncias de vida, numa carta dirigida a
Joaquim de Araújo, com palavras que lhe definem lapidarmente a vocação e a
têmpera: “Volto a ser o antigo estudante solitário”.
Voltará a desempenhar as mais altas funções
oficiais, numa presidência republicana interina que se alargou entre maio e
outubro de 1915, substituindo Manuel de Arriaga, decerto com maliciosa
satisfação íntima. Arriaga oferecera anteriormente as rédeas da governação ao
General Pimenta de Castro, que não encontrara melhor processo para aplacar as
intransigências políticas das fações do que a implantação de uma ditadura.
Quando esta foi varrida pela revolução “democrática” de 14 de maio de 1915, a posição de Manuel de Arriaga tornou-se
de tal modo inviável que a demissão se apresentou como a única das possíveis
saídas. Cumprida a missão presidencial, Teófilo regressou aos seus livros.
A ânsia de somar títulos e de engrossar a sua
bibliografia não lhe prejudicou a humildade. Assim se compreende que desde 1909
tenha querido realizar uma “recapitulação” da História da Literatura
Portuguesa, revendo em profundidade e refundindo muito do que escrevera,
por forma a suprimir erros e a corrigir imprecisões. Por outro lado as questões
da identidade nacional tinham-no fascinado desde cedo. Assim, teimou em
encontrar um substracto étnico em que pudesse sustentar a “essência da nação
portuguesa”. Julgou tê-lo identificado na raça mosárabe ou moçárabe,
que se teria originado, em seu entender, através da fusão entre a população
goda mais humilde, que não acompanhara a retirada dos aristocratas para as
Astúrias, e a população árabe. Esta muito questionável teoria encontra-se
sustentada em títulos como as Epopeias da Raça Mosárabe, de 1871, e A
Pátria Portuguesa. O Território e a Raça, de 1894. Tal patriotismo não foi
uma singularidade ou uma bizantina expressão de subjetividade. Foi, outrossim,
uma explícita e elevada reivindicação republicana, impregnando o ideário das
diversas gerações militantes. No caso de Teófilo Braga, este pendor também se
concretizou nos temas de toda uma literatura de imaginação ou de refiguração,
cuja matéria-prima lhe foi fornecida por episódios ou figuras do nosso passado
histórico. Isto explica a publicação, em 1902, do poema Os Doze de
Inglaterra, da “narrativa epo-histórica” Viriato, de 1904, e do
drama Gomes Freire, de 1907. A
publicação, entre 1892 e 1902, dos quatro grossos volumes onde traçou a História
da Universidade de Coimbra nas suas relações com a instrução pública portuguesa não correspondeu apenas à vontade de fixar os grandes momentos do
desenvolvimento do ensino superior em Portugal; significou também um desforço,
um ajuste de contas com a instituição que o preteriu num concurso público de
candidatura à docência, baseando-se em critérios de antiguidade nos termos dos
quais, segundo a sua ironia, “um velho banco da Universidade ” poderia “valer
mais do que o Herculano”.
O sistema filosófico perfilhado por Teófilo,
firmado numa depurada racionalidade positivista e no culto do cientismo,
conduziu-o à defesa do materialismo e à adoção do ateísmo. Mas isto não
equivaleu à impossibilidade de se aperceber da carga poética inerente ao
catolicismo. Não espanta, portanto, que tenham jorrado da sua pena de pensador
ateu algumas interessantes páginas consagradas às Origens poéticas do
Cristianismo (1880), que mais tarde se completaram com um outro volume,
intitulado As Lendas Cristãs (1892).
Realizar na idade madura o projeto de vida que
se formulou na juventude, não é ventura que todos os seres humanos possam ter.
Se a resposta dada por Joaquim Teófilo Braga a um dos seus professores do Liceu
de Ponta Delgada, de querer, no futuro, ser doutor, primou pela sinceridade,
então encontramo-nos perante uma venturosa criatura. Trabalhador incansável,
titã da escrita, ainda que revelando os pés de barro da sua precipitação
impetuosa, Teófilo teve um perecimento digno de si, uma vez que podemos
afirmar, com propriedade, que morreu a trabalhar. Nos seus últimos tempos de
vida queixava-se amargamente das suas enormes dificuldades de visão. Recorria
aos préstimos dos seus amigos ou antigos discípulos mais fiéis para lhes ditar
os textos que ia mentalmente arquitetando. O seu último projeto de investigação
consistiu em tentar reconstruir a vida e a obra do livre-pensador Uriel da
Costa. Logrado intento, visto que faleceu, rodeado dos seus papéis, no refúgio
da Travessa de Santa Gertrudes, em 28 de janeiro de 1924.
Cuidem-se os que se comprazem em denegrir e
ridicularizar Teófilo. Ele poderia esmagá-los com o simples peso dos seus
incontáveis livros e artigos. Seria triste que pigmeus morressem desta forma.
E, sobretudo, seria muito injusto, atendendo à desproporção...
Bibliografia Básica
BRAGA, Teófilo, Visão dos Tempos,
Porto, Em Casa da Viúva Moré-Editora, 1864.
BRAGA, Teófilo, Tempestades Sonoras,
Porto, Em Casa da Viúva Moré-Editora, 1864.
BRAGA, Teófilo, As Theocracias Litterarias,
Lisboa, Typographia Universal, 1865.
BRAGA, Teófilo, Theoria da Historia da
Litteratura Portugueza, Porto, Imprensa Portugueza-Editora, 1872.
BRAGA,Teófilo, Traços Geraes de Philosophia
Positiva comprovados pelas descobertas scientificas modernas, Lisboa, Nova
Livraria Internacional, 1877.
BRAGA, Teófilo, Soluções Positivas da
Política Portugueza. Da aspiração revolucionaria e sua disciplina em opinião
democrática, Lisboa, Nova Livraria Internacional, 1879.
BRAGA, Teófilo, Historia das Ideas
Republicanas em Portugal, Lisboa, Nova Livraria Internacional, 1880.
BRAGA, Teófilo, Dissolução do Systema
Monarchico-Representativo, Lisboa, Nova Livraria Internacional, 1881.
BRAGA, Teófilo, Systema de Sociologia,
Lisboa, Typographia Castro Irmão, 1884.
BRAGA, Teófilo, Historia da Universidade de
Coimbra nas suas relações com a instrucção publica portugueza, Lisboa, Por
ordem e na Typographia da Academia Real das Sciencias, 1892-1902 (4 vols).
BRAGA, Teófilo, As Modernas Ideias na
Litteratura Portugueza,Porto, Livraria Internacional de Ernesto Chardron,
1892 (2 vols).
BRAGA, Teófilo, Discursos sobre a
Constituição Politica da Republica Portugueza, Lisboa, Livraria Ferreira,
1911.
BASTOS, Teixeira, Theophilo Braga e a sua
Obra, Porto, Casa Editora Lugan & Genelioux, Successores, 1892.
CARREIRO, José Bruno, Vida de Teófilo Braga.
Resumo Cronológico, Coimbra, Coimbra Editora, 1955.
CIDADE, Hernâni, Doutor Teófilo Braga. As
directrizes da sua obra de história literária, Lisboa, Faculdade de Letras,
1935.
COELHO, A. do Prado, Teófilo Braga. Notas
de estudo, Lisboa, Faculdade de Letras, 1936.
FERRÃO, António, Teófilo Braga e o
positivismo em Portugal (com um núcleo de correspondência de Júlio de Matos
para Teófilo Braga), Lisboa, Academia das Ciências de Lisboa, 1935.
HOMEM, Amadeu Carvalho, A ideia republicana
em Portugal. O
contributo de Teófilo Braga, Coimbra, Livraria Minerva, 1989.
In Memoriam do Doutor Teófilo Braga. 1843-1924, Lisboa, Imprensa
Nacional, 1934.
ORTIGÃO, J. D. Ramalho, Theophilo Braga.
Esboço biographico, Lisboa, Nova Livraria Internacional, 1879.
Quarenta annos de vida litteraria (1860-1900). Com um prologo Autobiographia Mental de um Pensador Isolado por Theophilo Braga, Lisboa, Typographia Lusitana-Editora Arthur Brandão, MCMII.
Quinquagenario.1858 a 1908. Cincoenta annos de actividade mental de Theophilo Braga julgados pela critica contemporanea de tres gerações litterarias, Lisboa, Antiga Casa Bertrand, José Bastos & C.ª,
1908.
SOARES, Mário, As ideias políticas e
sociais de Teófilo Braga, Lisboa, 1950.
* Faculdade de Letras, Universidade de Coimbra