Teatro Estúdio do Salitre
(Lisboa, 1946-1950)
O Teatro-Estúdio do Salitre surgiu em abril de 1946, numa época de “crise” do teatro português em que os rumos estavam indefinidos e os cânones eram questionados.
Grupo inicial do Teatro-Estúdio do Salitre, s.d. [espólio de Luiz Francisco Rebello]. |
O final da Segunda Guerra Mundial tinha, de certa forma, abalado as fundações do regime e enfraquecido a censura que durante tanto tempo havia determinado os modelos artísticos da cena portuguesa, o que permitiu alguma latitude na escolha de textos e práticas que se refletiu no aparecimento do movimento experimental. Gino Saviotti, Vasco Mendonça Alves e Luiz Francisco Rebello impulsionaram no Salitre o rumo experimentalista que, apoiado num Manifesto, procurava romper com o naturalismo, por demais enraizado no teatro, e explorar estéticas modernistas e simbolistas. Os Espetáculos essencialistas (com novos textos de autores nacionais e estrangeiros) deixaram a sua marca no panorama teatral português e abriram caminho para os movimentos experimentais que se seguiram, mesmo após a extinção do grupo em 1950.
Instalado numa sala adaptada do Instituto Italiano de Cultura (na Rua do Salitre, em Lisboa), inaugurada para esse fim em 1946, o Teatro Estúdio do Salitre marcou – apesar das vicissitudes da conjuntura histórico-política e cultural do país e da heterogeneidade estética e artística do grupo – o início do movimento experimental no teatro português do pós-guerra. Surgiu por iniciativa de um grupo de homens e mulheres das letras e das artes empenhados em participar na renovação da cena portuguesa, entre os quais Armando Vieira Pinto, Eduardo Scarlatti, Jorge de Faria, Manuela Azevedo e Luiz Francisco Rebello. Aproveitando um dos raros períodos de abrandamento da censura e na presunção de uma abertura do país ao exterior, constituíram formalmente o Círculo de Cultura Teatral, em 1945, embora vários de entre eles estivessem já unidos pela intensa atividade intelectual que caracterizava as tertúlias realizadas desde o início da década em casa de Gino Saviotti, diretor daquele Instituto, também ele dramaturgo, tradutor e encenador. É, aliás, da sua autoria, a principal produção teórica, publicada em livros – Paradoxo sobre o teatro (1944) e Filosofia do teatro (1945) – e em periódicos, sustentando a ideia de renovação do teatro por via da sua “reteatralização”, baseada grosso modo na necessária distinção, embora nem sempre reconhecida, entre literatura dramática e especificidade cénica, com implicações diretas na forma de entender, em particular, o texto, a encenação, a representação e a componente plástica do espetáculo.
No dia da estreia do espetáculo inaugural, a 30 de abril, o público tomou contacto, desde logo, com três dados que evidenciavam a tentativa de compatibilizar pontos de vista e opções estéticas e artísticas, mas que os cerca de cinco anos de atividade confirmariam serem inconciliáveis, pelo menos na perspetiva da afirmação de uma linha ou sequer de uma tendência: (1) a direção, integrando personalidades com gostos e interesses reconhecidamente distintos (Gino Saviotti, Vasco de Mendonça Alves e Luiz Francisco Rebello, este, em assumida rutura com os demais, substituído por Pedro Bom a partir do 6º espetáculo, em 1947); (2) o “Manifesto do essencialismo teatral”, uma carta de intenções marcada pela insipiência e incongruência das posições, pondo lado a lado a defesa da “teatralidade” (na esteira das teses de Saviotti) e a negação de referentes que com ela poderiam ligar-se (como a obra de Gordon Craig); e (3) o próprio programa do espetáculo, para o qual foram selecionadas quatro peças, cujos tratamentos formal e temático espelhavam a heterogeneidade da composição do grupo (O homem da flor na boca, de Luigi Pirandello, O beijo do Infante, de D. João da Câmara, Maria Emília, de Alves Redol, e Viúvos, de Vasco de Mendonça Alves).
Até 1950, ali subiram à cena dezassete espetáculos a partir de quarenta e três textos (trinta e um de autores portugueses, dos quais vinte e sete contemporâneos), desde peças paradoxalmente radicadas no contestado naturalismo a peças surpreendentemente inovadoras, referidas a matrizes estéticas com as quais o público português não estava – ou estava pouco – familiarizado (como o expressionismo em O mundo começou às 5 e 47, de Luiz Francisco Rebello, ou o surrealismo em A fábula do ovo, de Carlos Montanha). Estes dados são reveladores da amplitude do envolvimento de dramaturgos, tanto veteranos como jovens (Luna de Oliveira e Luís de Oliveira Guimarães ou Fernando Amado e David Mourão-Ferreira, entre outros), passando também por escritores reconhecidos que não haviam tido ainda as suas peças encenadas (como Almada Negreiros, Branquinho da Fonseca ou João Pedro Andrade), para além do alargamento do reportório à dramaturgia universal, de Marivaux a Tchekov, com especial destaque para a italiana, de Carlo Gozzi ou Vittorio Alfieri a Pirandello (este autor com forte ascendência em muito do que ali se fez). Os atores tinham proveniências diversas, desde amadores (a maioria) a profissionais reconhecidos (como João Villaret e Laura Alves), integrando também dezenas de jovens estudantes do Conservatório Nacional, que ali encontraram oportunidades de experimentação cénica, alguns dos quais vieram a tornar-se primeiras figuras do teatro português, como Armando Cortez, Carlos Wallenstein, Fernanda Borsatti, Isabel de Castro, Rogério Paulo ou Ruy de Carvalho. O leque de artistas estendeu-se a outras áreas da conceção do espetáculo, especialmente à cenografia, na qual colaboraram pintores como Júlio de Sousa, Sarah Afonso ou o próprio Almada Negreiros.
Embora não tendo adquirido os contornos de “escola” ou “movimento”, como alguns chegaram a propor, e mesmo sem ter alterado radicalmente o cristalizado panorama teatral da época, como era pretensão dos seus fundadores, o Salitre inovou a cena lisboeta. E demonstrou, com repercussão nacional e internacional (André Veinstein integrou-o no conjunto de “teatros de ensaio” mais inovadores, a par dos grupos de Baty, Dullin, Chancerel, Meyerhold ou Piscator), que era possível “reconquistar a essência do teatro” (conforme a proclamação do Manifesto) e que a arte poderia ser recriação – e não apenas reprodução – do real, constituindo um estímulo para outras iniciativas artísticas e um incentivo para o surgimento de um conjunto importante de grupos experimentais.
Bibliografia
ANON. (1946). “O Teatro Estúdio e a sua função cultural”, Baliza, 26 de Maio, p. 2.
FALCÃO, Miguel (2005). Espelho de ver por dentro: O percurso teatral de Alves Redol. Tese de Doutoramento em Estudos de Teatro, apresentada à Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa (texto policopiado).
REBELLO, Luiz Francisco (1971). O jogo dos homens. Lisboa: Ática.
REDOL, Alves et. al. (1996). Teatro Estúdio do Salitre: Lisboa, 50 anos. Lisboa: Sociedade Portuguesa de Autores/Publicações Dom Quixote.
SAVIOTTI, Gino (1945). “Premissas para a constituição em Lisboa de um Estúdio Teatral”, Acção, 30 de Agosto, pp. 1 e 4.
VEINSTEIN, André (1955). La mise en scène théâtrale et sa condition esthétique. Paris: Flammarion.
Consultar a ficha de instituição na CETbase:
http://ww3.fl.ul.pt/CETbase/reports/client/Report.htm?ObjType=Instituicao&ObjId=10544
Consultar imagens no OPSIS:
Miguel Falcão/Centro de Estudos de Teatro