A ceia dos cardeais

(Teatro D. Amélia, 24-03-1902)

A estreia de um dos textos de maior êxito da dramaturgia portuguesa, A ceia dos cardeais, ocorreu no Teatro D. Amélia (hoje São Luiz), a 24 de março de 1902, com os atores João Rosa (Cardeal Gonzaga), Augusto Rosa (Cardeal Montmorency) e Eduardo Brazão (Cardeal Rufo) como protagonistas.

  A ceia dos cardeais
  A ceia dos cardeais, de Júlio Dantas, Teatro D. Amélia, 1902 (João Rosa, Augusto Rosa, Eduardo Brazão) [Brasil-Portugal, nº 77, 01-04-1902, p. 457].

Este original de Júlio Dantas foi encomendado pelo Visconde S. Luiz Braga e escrito propositadamente para a festa artística de João Rosa, tendo, posteriormente, conhecido grande sucesso com mais de 50 edições em português e várias traduções noutras línguas. Foi, também, representado um pouco por toda a Europa, bem como na América do Sul. A peça em um ato, escrita em verso alexandrino, é composta, essencialmente, por três grandes monólogos proferidos por três cardeais – um português, um francês e um espanhol – que, numa luxuosa sala do Vaticano setecentista, saboreiam uma riquíssima ceia e recordam os seus amores de mocidade.

A peça em um ato, A ceia dos cardeais, foi redigida em 1902, por Júlio Dantas, “em versos alexandrinos de rima emparelhada” (REBELLO 1970: 149), e compõe-se por pouco mais que três grandes monólogos que nos revelam as aventuras amorosas da juventude de três cardeais: o Cardeal Gonzaga de Castro, com oitenta e um anos, bispo de Albano e Camerlengo, de origem portuguesa; o Cardeal Rufo, com setenta e três anos, de origem espanhola, arcebispo de Ostia e deão do Sacro-colégio; e, por último, de proveniência gaulesa, o Cardeal Montmorency – o mais novo, com sessenta anos – bispo de Palestrina. Os três cardeais, reunidos numa luxuosa sala do Vaticano durante o papado de Bento XIV, no século XVIII, partilham uma ceia digna da riqueza do ambiente que os envolve: um faisão acompanhado de trufas, xerez e champanhe francês, tudo servido em baixelas de prata e ouro, comido em loiça de Sèvres.

Os três episódios amorosos evocados no texto propunham-se como representativos do espírito dos países personificados por cada um dos cardeais. Assim, o primeiro monólogo, debitado pelo cardeal espanhol, era “colorido e pícaro” (REBELLO 1970: 149), demonstrando uma imagem estereotipada da “fanfarronice espanhola” (Idem 1978: 55); o segundo, do Cardeal Montmorency, “[…] procura[va] corresponder à imagem convencional do espírito francês” (Idem 1970: 149), marcado pela galanteria; e, por último, o episódio amoroso da mocidade do cardeal português, que Dantas apresentava não apenas como representando o “sentimentalismo português” (Idem 1978: 55), mas também, e sobretudo, para com ele demonstrar que, de todos os sentimentos à mesa confessados, este seria o mais verdadeiro dos três.

A peça, habilmente descrita por Joaquim Madureira como uma sucessão de “[…] três monólogos, sem acção, sem côr, ligados entre si por um faisão com trufas, sedas roçagantes de príncipes de Egreja, acordes ligeiros num cravo antigo, baixelas ricas e versos delambidos” (1905: 17), foi encomendado a Júlio Dantas pelo Visconde S. Luiz Braga, empresário do Teatro D. Amélia. Subiu à cena a 24 de março de 1902 – juntamente com Salto mortal, de Henrique Lopes de Mendonça, Os dois barcos, de D. João da Câmara, O tio Pedro, de Marcelino Mesquita e Silêncio alado, de Eduardo Garrido – na festa artística de João Rosa, para a qual “[os] bilhetes [se] tinham esgotado rapidamente e, na noite da estreia, o teatro oferecia um aspecto deslumbrante, sem um lugar vago e com o que havia de melhor na época” (GUIMARÃES 1963: 139).

Apesar de muito criticado e de ter sido considerado, décadas mais tarde, uma “[…] banalidade brilhante, lamentavelmente sobrecarregada de referências epocais […]”, por Jorge de Sena (1988: 194), este “[…] sentimentalismo piegas […]” (CARVALHO 1925: 146) de Júlio Dantas conheceu na sua noite de estreia um grande êxito, não tanto pela peça em si, mas mais pela impressionante cenografia – ao cuidado do talentoso Augusto Pina – materializada a partir da detalhada didascália inicial do texto. Augusto Rosa – o Cardeal Montmorency – dá-nos uma ideia da magnificência do cenário ao recordar o subir do pano na noite de estreia: “[…] ouviu-se em toda a sala um sussurro admirativo. A scena estava ornamentada profusamente com autenticas e riquissimas pratas, a mesa guarnecida com os melhores cristais e louças, o chão coberto de soberbos tapetes orientais. Eu trinchava um faisão a valer, […] os criados serviam vinhos e champagne Moët et Chandon, que não bebíamos” (1915: 311). Este verismo e opulência cenográfica do espetáculo tornaram necessária a presença noturna de agentes da polícia no teatro, para que ninguém caísse na tentação de furtar os riquíssimos adereços de cena.

Foi precisamente este cenário – aliado ao elenco de topo –, causador de um forte impacto no público e imprensa de então, que contribuiu, em grande parte, para o êxito do espetáculo, uma vez que “[…] se não fosse a comedia, em verso, e não a representassem os três primeiros actores da companhia do D. Amélia, o sucesso seria diminuto, porque A Ceia dos Cardeaes é, em bôa verdade, um pouco longa para tão pequeno assumpto” (F.R. 1902: 2). Todavia, este espetáculo foi, sem sombra de dúvida, o grande êxito da festa artística de João Rosa e “[os] aplausos a Júlio Dantas e aos seus intérpretes, João Rosa, Augusto Rosa, e Eduardo Brasão, nos três cardeais da Ceia, pareciam intermináveis; o pano subiu inúmeras vezes e tudo dir-se-ia envolto numa atmosfera de apoteose” (GUIMARÃES 1963: 141). Tamanho sucesso motivou o empresário do D. Amélia a preparar uma reposição deste espetáculo, para o Carnaval do ano seguinte, em fevereiro de 1903, protagonizado pelas três primeiras atrizes da companhia: Adelina Abranches, como Cardeal Rufo, Lucinda Simões no papel de Cardeal Montmorency, e Rosa Damasceno, que representou o Cardeal Gonzaga de Castro.

Este espetáculo, que mereceu várias reposições e recriações, foi apresentado por Joaquim Madureira como uma ceia, por “[…] tantas vezes servida, já, por lista e em travesti, no D. Amélia, que não sabe a gente o que fazem os bons-homens […] da Saúde Pública, que ainda não relegaram ao barril do lixo aquelle faisão e aquellas trufas.” (MADUREIRA 1905: 14). Contudo, é indiscutível a sua importância na história do teatro português, não apenas pelo número de representações que já atingiu, em português e em muitas outras línguas – tanto em Portugal, como na Alemanha, Áustria, Espanha, Argentina, Dinamarca e Suíça, entre outros países –, mas também devido à sua qualidade de testemunho histórico-cultural do Portugal de então.

Apesar das críticas negativas por parte de vários autores, como Joaquim Madureira, Fialho d’Almeida ou Teixeira de Carvalho, nem toda a imprensa recebeu A ceia dos cardeais com hostilidade. Recorde-se, a este propósito, a crítica de Jayme Victor: “A Ceia dos Cardeais é uma pequenina obra prima, é um acto em verso, alexandrinos primorosos, de um rythmo suavíssimo, de uma correcção parnasiana, e de um colorido pujante, em que as meias tintas estão dispostas com uma arte superior, e as imagens ressaltam espontâneas, dando um relevo encantador à ideia poética que atravessa toda essa singelíssima acção” (VICTOR 1902: 458).

A crítica ao trabalho de Júlio Dantas não se esgotou nos comentários à Ceia dos cardeais, nem sequer se restringiu apenas à sua produção literária. Júlio Dantas, o homem, foi, também, alvo de críticas corrosivas por parte do movimento modernista português, entre as quais se destaca o polémico Manifesto Anti-Dantas e por extenso, de Almada Negreiros, que surgiu em 1915, no seguimento da estreia de Soror Mariana, a 21 de outubro desse mesmo ano, no Teatro do Ginásio. Esse manifesto atacou principalmente Júlio Dantas – mas não só – como símbolo de toda uma geração retrógrada, bem como do estagnado panorama literário português.

Atualmente, a importância deste texto insere-se, quase exclusivamente, no domínio da arqueologia do teatro português, como nos recorda Luiz Francisco Rebello, ao referir que “[m]uito deste teatro, mesmo nos casos de maior apuro técnico ou literário, possui hoje um interesse apenas documental. Mas espelham-se nele os gostos e as preocupações de uma época” (2010: 114).

 

Bibliografia

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Consultar a ficha de espetáculo na CETbase:

http://ww3.fl.ul.pt/CETbase/reports/client/Report.htm?ObjType=Espectaculo&ObjId=4422

Consultar imagens no OPSIS:

http://opsis.fl.ul.pt/

 

Eunice Azevedo/Centro de Estudos de Teatro