O processo do rasga

(Teatro Infantil dos irmãos Dallot, 22-02-1879)

Como opereta cómica e burlesca, da autoria de Jaime Venâncio, O processo do rasga parodia a zarzuela O processo do cancan, tendo-se estreado no Teatro dos Recreios, em Lisboa, em 1878.

  O processo do rasga
  Capa da primeira edição da paródia O processo do rasga, 1885.

A paródia portuguesa ao cancan estreou em Fevereiro de 1879, no Teatro Infantil dos irmãos Dallot, um barracão de madeira que se instalara provisoriamente na Quinta da Várzea, em Alcântara, antes do arranque de mais uma temporada de feiras (onde normalmente fazia as suas apresentações).

A inspiração de Jaime Venâncio surgira da agitação que a zarzuela O processo do cancan provocara, no Verão do ano anterior, no Teatro dos Recreios Whittoyne. Na zarzuela, com libreto de Rafael María Liem (mais conhecido por Amalfi) e música de Francisco Asenjo Barbieri, a intriga gira em torno da figura do Cancan, uma dança de passos considerados indecentes, que entra à força no templo de Tepsícore, raptando a Polka e a Seguidilha, quando estas estão prestes a casar. A conduta do imoral Cancan é julgada pela deusa grega, mas a defesa de Seguidilha permite que, no final, tudo termine a contento.

Embalado pelo sucesso do cancan, o ator Jaime Venâncio (também cenógrafo e aderecista), que sempre se movimentara pelos teatros de feira, resolve parodiar a bem sucedida zarzuela, numa opereta cómica e burlesca em dois atos. Nesta paródia, o outrora processado Cancan transforma-se em principal acusador de uma dança negro-portuguesa, ainda não muito conhecida no país, que teria surgido entre os negros e mulatos de Lisboa no início do séc. XIX. Jaime Venâncio coloca o Rasga – um preto tocador de ganzá, que se apresenta como Caetano Rasga Roupa, natural de Cabinda – no papel de uma dança imoral, que todos condenam, por não ter a necessária licença prévia da autoridade competente. Elevado à categoria de rei dos bailes, é o Cancan quem serve de anfitrião a um encontro onde se juntam muitas danças reconhecidas socialmente, como o bolero, o fandango, o fado, o malhão, a caninha verde, a polka ou a seguidilha, mas onde o rasga não teria permissão de entrar. Embora proibido de se apresentar em tão ilustre reunião, Caetano Rasga Roupa, faz-se anunciar, sendo-lhe de imediato movido um processo, por ousar utilizar o título de dança sem ter diploma assinado pelo “rei”.

A paródia de Jaime Venâncio abordava um tema que, segundo o investigador brasileiro José Ramos Tinhorão, já era conhecido há mais de vinte anos em França “mas, curiosamente, devia a Portugal o seu aparecimento” (TINHORÃO 2007: 44). O primeiro autor a explorar o filão temático terá sido o gaulês Arthur Saint-Léon, com o baile em 2 atos e 4 quadros Os saltimbancos ou o processo do fandango, apresentado em Paris em 1856. Nesta obra, o músico, coreógrafo e dançarino francês, “nada mais fazia do que evidenciar o seu entusiasmo pelo fandango português, que viera a conhecer e a aprender a dançar quando de longa temporada em Lisboa, durante o ano de 1854” (TINHORÃO 2007: 44).

A estreia d’O processo do rasga aconteceu quando a barraca dirigida por Charles Dallot, terminada a época das feiras, se instalara nos terrenos da Quinta da Várzea, em Alcântara, com o ator Guilherme no papel de D. Rasga Roupa, o ator Domingos no papel de Mirundela e a atriz Elisa Aragonez no papel de Seguidilha. Todavia, a paródia de Jaime Venâncio só conheceria um verdadeiro sucesso quando a barraca de madeira se mudou, como sempre acontecia, para a Feira das Amoreiras, no início do mês de Maio. Embora nesse ano a grande atração fosse o Teatro Lisbonense, considerado o primeiro teatro de feira, “por ser todo novo e com bastantes comodidades para se poder passar ali algumas horas agradavelmente” (Diário ilustrado 03-05-1879: 1), acabou por ser o Infantil a conseguir as maiores enchentes nessa temporada, quando resolveu retomar as récitas da obra de Jaime Venâncio.

O sucesso da paródia manteve-se até ao final do ano, percorrendo o teatro ainda a feira de Belém e (possivelmente) a feira do Campo Grande, sem que o entusiasmo esmorecesse ou as enchentes diminuíssem, nem mesmo quando, nas feiras, outras duas barracas resolvem estrear, também elas, paródias a’O processo do cancan. O Teatro Lisbonense estreia, ainda na Feira das Amoreiras, O julgamento do Cancan, da autoria de J. C. Carvalho e J. C. Aguiar, e o Teatro Popular apresenta, na Feira de Belém, O processo do fado.

Embora, nos periódicos da altura, não abundassem referências a’O processo do rasga, a maioria não deixava de informar sobre as consecutivas enchentes que o espetáculo conseguia, os inúmeros benefícios que todas as semanas o teatro realizava e o aplauso generalizado que obtinha por parte do púbico. E, de facto, foi tal o êxito do espetáculo, que a obra de Jaime Venâncio teve direito a um almanaque com o seu nome para 1880 e acabaria por dar também origem a uma continuação do processo, numa nova paródia de Jaime Venâncio, O casamento do rasga, em que D. Rasga Roupa convida, para o seu casamento, algumas das danças que o se reportam a África.

A opereta cómica e burlesca de Jaime Venâncio acabaria depois por ganhar asas, com apresentações um pouco por todo o país – nomeadamente no Porto, por iniciativa da corporação dos Bombeiros Voluntários daquela cidade, e em várias cidades do país pela mão da companhia do Teatro Lisbonense, criada por Domingos da Silva (que interpretava o papel de Mirundela) – e também no Brasil, estreando no Teatro Santana, no Rio de Janeiro, a 9 de Outubro de 1890.

Com O processo do rasga, Jaime Venâncio que, segundo Sousa Bastos, “nunca passou dos últimos teatros, incluindo os de feira” (BASTOS 1898: 660), nascendeu, momentaneamente, à categoria de estrela, ainda que reduzida à escala das feiras e arredores. Apesar das poucas ou nenhumas referências dos periódicos de então, ao longo de quase todo o ano de 1879 (e também nas feiras de 1880), não se terá cansado o Joaquim Confeiteiro, palhaço reclamista do Teatro Infantil dos irmãos Dallot, de, à velha maneira das barracas de arlequins, apregoar O processo do rasga: É entrar senhores! É entrar! Vai principiar a função. Vai principiar. Comprem os seus bilhetes!

Anos mais tarde, quando nas suas “Boémias Teatrais – Coisas arrancadas ao passado e trazidas ao presente para serem lidas no futuro”, publicadas na revista ABC, o comediógrafo Penha Coutinho recorda a paródia e as grandes enchentes que ela provocara na feira das Amoreiras, destaca o facto de estar tudo “certo na afortunada pecinha, tanto nos criadores, como nos seus continuadores. Seixas ou Palhares, no Cancan; Ferreira Pequeno no enfatuado Minuete, Emília Guilherme ou Carlota Palhares, na Gavota; sempre o José Maria Casaca, no Fandango; Pedro Elástico, no Bolero; Perpétuo, o Ferreira do Porto, no Malhão, Mariana ou Lola, na Polka; Salud, na Caninha Verde; e especialmente o Venâncio ou o Alfredo, no Schiffaroth; Guilherme, no Rasga; Elisa Aragonez, na Seguidilha e Domingos Silva ou José Pedro, no Mirundela” (ABC, 09.06.1927: 18).

 

Bibliografia

BASTOS, Sousa (1898). A carteira do artista. Lisboa: Antiga Casa Bertrand – José Bastos.

COSTA, Mário (1959). Feiras e outros divertimentos populares de Lisboa. Lisboa: Município de Lisboa.

COUTINHO, Penha. “Boémias Teatrais – Coisas arrancadas ao passado e trazidas ao presente para serem lidas no futuro. ABC, 1927-1928.

MAGALHÃES, Paula (2014). “O processo do rasga: Na senda de um sucesso dos teatros de feiras” in Sinais de cena, Nº 21, junho 2014. Porto: Húmus, APCT / CET, pp. 121-129.

TINHORÃO, José Ramos (2007). O rasga: Uma dança negro português., Lisboa: Editorial Caminho.

VENÂNCIO, Jaime (1885). O processo do rasga: paródia ao Processo do Cancan. Porto: João E. da Cruz Coutinho - Editor.

VENÂNCIO, Jaime (1886). O casamento da rasga: continuação ao Processo do rasga. Porto: João E. da Cruz Coutinho - Editor.

 

Consultar a ficha de espetáculo na CETbase:

http://ww3.fl.ul.pt/CETbase/reports/client/Report.htm?ObjType=Espectaculo&ObjId=26287

Consultar imagens no OPSIS:

http://opsis.fl.ul.pt/

 

Paula Gomes Magalhães / Centro de Estudos de Teatro