Textos / Espetáculos

Um auto de Gil Vicente

(1838)

Escrita por João Baptista da Silva Leitão de Almeida Garrett (1799-1854) em 1838 (entre 11 de junho e 10 de julho, como ele próprio esclareceu), a peça Um auto de Gil Vicente marcou a sua opção por uma dramaturgia nacional de inspiração romântica que, anos mais tarde, teria a sua mais elevada realização artística em Frei Luís de Sousa (1843).

Garrett abandonava, assim, os seus juvenis esboços dramáticos de pendor neoclássico (Xerxes, 1818; Lucrécia, 1819; Mérope, 1819; Catão, 1821) e aventurava-se em matéria portuguesa, apresentando um drama histórico, em três atos, com a ação a decorrer na corte do rei D. Manuel I.

Para celebrar a partida da Infanta D. Beatriz para Sabóia, onde casaria com Carlos III, Gil Vicente prepara a representação da peça Cortes de Júpiter e é em torno desse labor – que suscita o processo metateatral, do teatro dentro do teatro – que se desenrola a trama, insinuando os amores secretos entre a infanta e o poeta Bernardim Ribeiro. A peça de Garrett estreou-se nesse mesmo ano, a 15 de agosto, no Teatro da Rua dos Condes, em Lisboa, sob a direção de Émile Doux e com a jovem Emília das Neves no papel principal, mas só em 1841 seria dada à estampa. 

  Um auto de Gil Vicente
  Um auto de Gil Vicente, de Almeida Garrett, enc. Luís Miguel Cintra, cenário e figurinos de Cristina Reis, Teatro da Cornucópia, 1996 (Luís Miguel Cintra e Márcia Breia), fot. Paulo Cintra e Laura Castro Caldas.

Por uma Portaria Régia de 28 de setembro de 1836 (que decorria da vitória da revolução de setembro), Garrett foi incumbido por Passos Manuel, em nome da Rainha D. Maria II, de apresentar “um plano para a fundação e organização de um Teatro Nacional nesta capital, o qual, sendo uma escola de bom gosto, contribu[isse] para a civilização e aperfeiçoamento moral da Nação Portuguesa”, o que necessariamente implicaria também a escrita de  “dramas nacionais".

Um auto de Gil Vicente obedecia também a esse critério de escolher matéria nacional, com figuras históricas em momento de grandeza espiritual e artística do país, como foi o tempo e a corte de D. Manuel I. A peça integrava não apenas o Rei, a Infanta D. Beatriz, Gil Vicente e Bernardim Ribeiro, mas convocava também uma “lenda” dos amores impossíveis entre D. Beatriz e o poeta que foi também autor da novela Saudades, mais conhecida pelas suas palavras iniciais “Menina e moça me levaram de casa de minha mãe para muito longe”.

Emília das Neves  
Emília das Neves (1820-1883).  

No enredo da peça, Garrett inventou que, com o apoio de Paula Vicente (filha de Gil Vicente e que secretamente também amava o poeta), Bernardim se disfarça de moura para num momento do espetáculo se aproximar da Infanta e dela se despedir. Sobre a intenção que o levou a escrever a peça, juntaria à 1.ª edição da peça (1841) a declaração: “O que eu tinha no coração e na cabeça – a restauração do nosso teatro – seu fundador Gil Vicente – seu primeiro protector el-rei D. Manuel – aquela grande época, aquela grande glória – de tudo isto se fez o drama. Não foi somente o teatro, a poesia portuguesa nasceu toda naquele tempo; criaram-na Gil Vicente e Bernardim Ribeiro, engenhos de natureza tão parecida, mas que tão diversamente se moldaram.” (GARRETT 1966: 1324, 1325).

Para lá desse intuito patriótico na revisitação do passado, movia-o também um projeto de renovação teatral, como escreveu nessa mesma edição: “O drama de Gil Vicente que tomei para título deste não é um episódio, é o assunto mesmo do meu drama; é o ponto em que se enlaça e do qual se desenlaça depois a acção; por consequência a minha fábula, o meu enredo ficou até certo ponto obrigado. Mas eu não quis só fazer um drama, mas sim um drama de outro drama e ressuscitar Gil Vicente a ver se ressuscitava o teatro” (GARRETT 1966: 1326).

A receção do espetáculo foi excelente e não faltaram elogios a todos os elementos cénicos, como a “riqueza do vestuário” e a “propriedade das decorações” (Atalaia nacional dos teatros, n.º 15, 16 de agosto de 1838, p. 57). Num número posterior do mesmo periódico referem-se pormenores do cenário (pintado) e dão-se indicações sobre os figurinos: “a cena do paço de Sintra, a do interior do galeão, que levava a infanta a Sabóia, estão primorosamente pintadas pelo Sr. Palucci, de S. Carlos” e “o vestuário foi igualmente todo novo e apropriado exactamente às diferentes personagens, para o que houve de consultar diferentes figurinos e estátuas daquela época” (Atalaia Nacional dos Teatros, n.º 16, 19 de agosto de 1838, p. 62).

Os aspetos do espetáculo mais aplaudidos na crítica da época reportavam-se ao desempenho dos atores, com um claro destaque para a jovem atriz estreante, mas que se estendia também a outros atores principais: Victorino no papel de D. Manuel, Epifânio [Aniceto Gonçalves] no de Bernardim Ribeiro, Teodorico no de Gil Vicente e Carlota Talassi no de Paula Vicente. A escolha de Emília das Neves, uma jovem estreante de 18 anos para figurar a Infanta D. Beatriz, foi do próprio Garrett, mas a qualidade da sua interpretação ficou também a dever-se à direção de Doux, pelo que não faltaram elogios às suas “excelentes qualidades físicas, o som encantador da sua voz, as suas acertadas inflexões, a inteligência e concepção que mostra” (Atalaia nacional dos teatros, n.º 15, 16 de agosto de 1838, p. 57).

  Um auto de Gil Vicente
  Um auto de Gil Vicente, de Almeida Garrett, enc. Luís Miguel Cintra, cenário e figurinos de Cristina Reis, Teatro da Cornucópia, 1996 (Margarida Marinho e Beatriz Batarda), fot. Pedro Soares.

Os processos dramatúrgicos e o estilo da peça mereceram também destaque em críticas como as de A. B. [Anselmo Braamcamp Júnior], na Crónica literária, de Coimbra (n.º 2, 1840), que elogiava a “pureza do estilo e a linguagem tão limada e portuguesa: melodiosa música soando a nossos ouvidos quase esquecidos dela!”, bem como “os pensamentos finos e delicados, os ditos jocosos que esmaltam esta comédia”. O Diário do governo (n.º 214, de 10 de setembro de 1838) sublinhava que “o estilo é correcto, e somente antiquado quando a verdade e fidelidade dos caracteres o demandam”. Outros comentários destacavam “a ação bem traçada e desenvolvida, cheia de sublimes transições”, bem como o mérito de “todos os caracteres [serem] extraídos da História e Crónicas, com um gosto depurado, seus sentimentos e o modo com que os expõem” (Atalaia nacional dos teatrosIbidem). Por outro lado, e contra o gosto do melodrama que então imperava, a peça demonstrava que “era possível criar e sustentar um grande e vivo interesse no delírio das paixões mais cegas, sem nos dar crimes e horrores; que pode haver amor, amor apaixonado, delirante, infeliz que excite profundamente a alma, sem os incestos, adultérios, envenenamentos, parricídios, infanticídios que a moderna escola nos quer fazer acreditar como elementos indispensáveis da tragédia e do grande drama (Diário do governoIbidem).

Na sua caracterização nacionalista, dir-se-ia ainda que esta peça é “a primeira verdadeira nacional toda, no assunto, nos ornatos, no estilo, em tudo inteira e plenamente portuguesa” (Diário do governoIbidem) e, num outro periódico, anuncia-se que “esta comédia penetra os corações verdadeiramente portugueses de nobre emulação incitando a imitar as grandes façanhas de nossos antepassados, desses varões prestantes que encheram o mundo com seu nome e o abrilhantaram com o fulgor de seu heroísmo” (Atalaia nacional dos teatrosIbidem). E essa ideia acompanhava a avaliação positiva – também em termos políticos – da peça como “[apurando] o gosto da nação, deleitando e instruindo, [servindo para] propagar os princípios e máximas salutares da moral, e [alimentando] nos corações a sagrada chama do patriotismo, sem o qual não existe liberdade civil” (Atalaia nacional dos teatrosIbidem).

Uma recriação notável da peça em 1996 pelo Teatro da Cornucópia (em coprodução com o Teatro Nacional S. João no Porto) teve cenografia inspirada e soberbos figurinos de Cristina Reis, e a encenação de Luís Miguel Cintra foi de uma inteligência e criatividade raras. O projeto cénico, que animava esta revisitação a um texto basilar da dramaturgia romântica portuguesa, procedia a uma interrogação identitária sobre Portugal e o ser português, operando sobre ícones e práticas simbólicas e revivificando o texto de uma maneira admirável.

 

Bibliografia

BASTOS, Sousa (1908). Diccionario do theatro portuguez. Lisboa: Imprensa Libanio da Silva (edição fac-similada: Coimbra: Minerva, 1994).

GARRETT, Almeida (1966).Obras de Almeida Garrett, Vol. II. Porto: Lello & Irmão Editores.

REBELLO, Luiz Francisco (2010). Três espelhos: Uma visão panorâmica do teatro português do liberalismo à ditadura (1820-1926). Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda.

REIS, Cristina et al. (2002). Teatro da Cornucópia: Espectáculos de 1973 a 2001. Lisboa: Teatro da Cornucópia.

SEQUEIRA, Matos (1955). História do Teatro Nacional D. Maria II: 1846-1946 (2 vols.). Lisboa.

SERÔDIO, Maria Helena (2002). “Um auto de Gil Vicente: considerações a propósito da encenação de Luís Miguel Cintra”, in AA.VV., Garrett às portas do milénio. Lisboa: Edições Colibri, pp. 85 – 92.

___ (2009). “A crítica de teatro em Portugal: Questionar uma tradição numa breve nota a propósito de Almeida Garrett”, in Letras & Ciências: As duas culturas de Filipe Furtado (Livro de homenagem). Org. Carlos Ceia, Miguel Alarcão e Iolanda Ramos. Casal de Cambra: Caleidoscópio, pp.159-174.

VASCONCELOS, Ana Isabel & Teixeira de (2003). O teatro em Lisboa no tempo de Almeida Garrett. Lisboa: Museu Nacional do Teatro.

 

Consultar a ficha de espetáculo na CETbase:

http://ww3.fl.ul.pt/CETbase/reports/client/Report.htm?ObjType=Espectaculo&ObjId=12507

Consultar a ficha de espetáculo (pelo Teatro da Cornucópia) na CETbase:

http://ww3.fl.ul.pt/CETbase/reports/client/Report.htm?ObjType=Espectaculo&ObjId=3415

Consultar imagens no OPSIS:

http://opsis.fl.ul.pt/

 

Maria Helena Serôdio/Centro de Estudos de Teatro