O Velho Senhor das Matemáticas Portuguesas

 

José Martins Vicente Gonçalves nasceu no Funchal em 26 de Agosto de 1896 e veio muito jovem para Coimbra, aonde se licenciou com apenas 21 anos de idade.  Foi logo contratado como 2º assistente do grupo de Mecânica e Astronomia da universidade. Começou a trabalhar em problemas de Análise Complexa e demonstrou alguns resultados novos na teoria das funções inteiras, isto é, de funções que admitem derivada em todos os pontos do plano complexo.  Esses resultados obteve-os o jovem madeirense trabalhando sozinho, e sozinho trabalharia para o seu doutoramento, que viria a obter em 1921, com 25 anos de idade.  O doutoramento trouxe-lhe a promoção a 1º assistente, como era norma na altura.  A sua passagem a professor catedrático deu-se seis anos mais tarde, em 1927, depois de ter defendido outra dissertação, como era exigido na época.

 

Em 1942 Vicente Gonçalves transferiu-se para a Faculdade de Ciências de Lisboa aonde ensinou até se jubilar, em 1966.  No período de 1947 a 1960 ensinou igualmente no Instituto de Ciências Económicas e Financeiras, actual ISEG. Vem a morrer a 2 de Agosto de 1985.

 

O panorama do ensino superior das matemáticas não era ao tempo brilhante, como continuou a não o ser. Vicente Gonçalves não teve a acarinhá-lo nem a apoiá-lo qualquer estrutura colectiva de estudo e investigação nem a troca de informação e de ideias que caracteriza a produção científica moderna. Nesse sentido, como o escreveu Tiago de Oliveira, Vicente Gonçalves era um «self-made man» tal como o eram os dois outros grandes vultos dos fins do século XIX e primeira parte do século XX, Gomes Teixeira no Porto e Mira Fernandes em Lisboa.

 

Se Vicente Gonçalves e outros matemáticos portugueses da altura não eram fruto de nenhuma escola, se estudavam e trabalhavam isolados, também a verdade é que não formaram qualquer escola no país nem aproximaram a academia dos grandes centros de produção intelectual do mundo de então. É significativo que da centena de trabalhos científicos publicados por Vicente Gonçalves, muitos deles escritos em francês, que era um dos idiomas científicos da época, nem um único artigo tenha aparecido numa revista internacional. 

 

A contribuição científica de Vicente Gonçalves foi sobretudo importante em Álgebra e Análise clássicas, aonde o matemático madeirense simplificou a demonstração de resultados conhecidos e obteve resultados inovadores.

 

Há quem afirme que Vicente Gonçalves merece um reconhecimento internacional muito mais significativo do que o que tem tido e que a mesma injustiça se tem registado com muitos matemáticos e cientistas portugueses. Um caso célebre, aliás revelado por Vicente Gonçalves, passou-se com José Anastácio da Cunha (1744–1787), matemático português nomeado por Pombal na reforma da Universidade de Coimbra e condenado depois pela Inquisição. Anastácio da Cunha parece ter sido o primeiro a fornecer uma definição correcta do conceito de convergência de uma série numérica.  Com efeito, nos seus «Princípios Mathematicos», publicados em 1790, Anastácio da Cunha dá como definição de convergência a condição que Cauchy, meio século depois, demonstrará ser necessária e suficiente.

 

Vicente Gonçalves manteve-se um matemático clássico ao longo de toda a sua vida. Um choque com a nova geração, partidária da matemática moderna, era inevitável. Nos anos 40 começaram a regressar a Portugal matemáticos mais jovens, que tinham conhecido directamente a Europa e que tinham estado expostos à teoria dos conjuntos e ao formalismo das matemáticas modernas. António Aniceto Monteiro (1907–1980), Hugo Baptista Ribeiro (1910–1980), Ruy Luís Gomes (1905–1984) e, sobretudo, Sebastião e Silva (1914–1972) vinham dispostos a introduzir a modernidade na academia e fizeram-no em oposição a Vicente Gonçalves. O mestre madeirense foi sempre respeitado pela nova geração, mas como o «velho senhor» das matemáticas clássicas.

 

Uma segunda vertente da contribuição de Vicente Gonçalves para as matemáticas nacionais foi o seu extenso trabalho pedagógico, como autor e como docente. Numa época em que abundavam, como ainda hoje abundam, as sebentas de má qualidade, Vicente Gonçalves dedicou grande cuidado à redacção de manuais escolares que primavam pelo rigor e organização. O seu «Curso de Álgebra Superior», editado em 1933 e sucessivamente revisto, reformulado e reeditado, foi uma obra que educou gerações de estudantes no rigor matemático contemporâneo. O estilo que Vicente Gonçalves introduziu em Portugal foi o estilo elegante e rigoroso que franceses, italianos e alemães tinham vindo a introduzir ao longo do século XIX.  Com honrosas excepções, tal estilo rigoroso estava ausente das matemáticas nacionais.

 

O mestre madeirense tinha particular apego à economia da exposição. Vicente Gonçalves exultava quando conseguia retirar uma linha a uma demonstração e quando conseguia dispensar alguns passos na exposição de difíceis conceitos matemáticos.  Como pedagogo, esse estilo estimulava alguns alunos e desanimava outros.

 

A terceira grande contribuição de Vicente Gonçalves para a ciência portuguesa foi constituída pelos seus estudos históricos. Numa época em que pouco interesse havia pela análise do nosso passado intelectual, Vicente Gonçalves publicou uma série de minuciosos estudos sobre os trabalhos de alguns dos maiores matemáticos portugueses.  Essa preocupação pelo passado era na altura praticamente inaudita. Com excepção da resenha histórica de Gomes Teixeira (1851–1933), publicada em 1934, já depois da sua morte, praticamente não existiam estudos históricos da época sobre a matemática em Portugal.  Vicente Gonçalves considerava que o respeito pelo passado pode desenvolver o brio no futuro e dedicou os últimos anos da sua vida ao estudo das contribuições dos matemáticos portugueses.  A ele se deve, em grande parte, o reconhecimento da grandeza de José Anastácio da Cunha, em cuja sala o velho senhor das matemáticas portuguesas foi homenageado no centenário do seu nascimento, em 1996.

 

Vicente Gonçalves sobre a Ciência em Portugal

«Acabara a lição de Álgebra Superior […] fomos acompanhando o Mestre pela Rua Larga, a caminho de sua casa.  Enchia-nos de orgulho ir ali junto com um homem capaz de ombrear com as mais altas figuras da Matemática contemporânea, e doía-nos a injustiça de não vermos seu nome na galeria dos grandes mestres europeus, nem menção dos seus trabalhos em livros da especialidade, — quando deles tanto lustre podia vir ao país.  Neste redemoinho de juízos e sentimentos juvenis, destrava-se o alarme da insensatez e parte de súbito a fremente injunção — Mande esse trabalho para França, para que o ponham nos livros!

«Ainda hoje nos punge a desolação da resposta:  “Que ideia!  Isto é apenas o abc; nós em Matemática estamos cem anos atrás dos franceses”.

«Tenho referido por vezes esta dura lição, — sempre que a julgo oportuna ou salutar; mas nunca a entendi em desprimor dos universitários portugueses.»

 

Vicente Gonçalves, in Ciência, Abril de 1948, p. 9. 

[Julga-se que o autor se referia ao professor Bruno de Cabedo.]

 


Nuno Crato


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