Entre o Porto e Recife

MATEMÁTICO NOTÁVEL, RESISTENTE, PROFESSOR NO BRASIL, CANDIDATO À PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA, REITOR DA UNIVERSIDADE DO PORTO

Ruy Luís Gomes nasceu no Porto em 5 de Dezembro de 1905 e aí faleceu em 28 de Outubro de 1984. Nos quase 79 anos da sua vida, produziu uma obra matemática extensa, formou numerosos discípulos, ensinou em várias universidades e sofreu a perseguição política de um regime que não tolerava a independência de pensamento. A sua vida, tal como a de tantos outros intelectuais portugueses da época, revela o drama de um nascimento abortado da investigação em Portugal.

Filho de António Luís Gomes, político da primeira república, o jovem Ruy dedicou-se muito cedo ao estudo, onde revelou uma extraordinária capacidade para o raciocínio abstracto. Licenciou-se em matemática na Universidade de Coimbra, onde se doutorou logo depois, em 1928, com 22 anos. No seu doutoramento analisou problemas de mecânica, uma área originada no estudo físico dos sistemas sujeitos a forças, mas que ganhou um grande desenvolvimento matemático autónomo. Deslocou-se para a Universidade do Porto, onde entrou como Assistente de Álgebra Superior e de Geometria Projectiva, regendo depois a cadeira de Física-Matemática. Em 1933, com 28 anos, atingiu o lugar de catedrático.

Quem o teve como professor recorda «um modo de ensino bastante diferente», como o escreveu o professor José Morgado, seu discípulo e depois colega e amigo: «em vez daquelas exposições aparentemente seguras, sem hesitações», podia-se assistir a aulas «aparentemente não tão seguras, por vezes cheias de hesitações, mas [...] vivas, dialogadas, humanizadas e entusiásticas» onde os alunos tinham «a sensação de participar, em maior ou menos grau, no crescimento ou melhoramento de um ou outro aspecto das teorias matemáticas tratadas». Só um homem que participava na investigação científica poderia praticar uma tal forma de ensino. Para Ruy Luís Gomes, o ensino e a investigação eram actividades indissociáveis do seu labor académico.

Nos anos 30 e 40, o matemático portuense acompanhou os desenvolvimentos da área da Física-Matemática e contribuiu com numerosos trabalhos originais para esses avanços. Nessa altura, manteve correspondência com grandes matemáticos de outros países, tais como o italiano Tullio Levi-Civita (1873–1941), e mereceu referências de vultos maiores da época, tais como o Nobel da Física Louis de Broglie (1892–1987) e o matemático John von Neumann (1903–1957). Publicou numerosos trabalhos em revistas internacionais — «Rendiconti della Reale Accademia dei Lincei» e «Journal de Physique et Radio».

Na altura, tinha surgido em Portugal uma geração de jovens brilhantes e entusiastas em que se destacavam ainda, entre outros, António Aniceto Monteiro (1907–1980), Hugo Baptista Ribeiro (1910–1988) e José Sebastião e Silva (1914–1972). Com o apoio de Gomes Teixeira (1851–1933), de Mira Fernandes (1884–1958) e de outros matemáticos de gerações anteriores, esses jovens conseguiram estabelecer ligações com a investigação internacional e começaram a propagar aos estudantes o seu entusiasmo pela matemática moderna e pela investigação. Parecia que as condições se estavam a reunir para que as universidades portuguesas ultrapassassem uma letargia que, com algumas excepções, se tinha estabelecido no ensino e na investigação.

Uma das ideias que essa geração procurou introduzir no país foi a da ligação sistemática entre o ensino e a investigação, deixando os professores de ser meros transmissores das teorias aprendidas através dos compêndios estrangeiros e passando a ser agentes activos da investigação. A grande preocupação de Ruy Luís Gomes e dos seus companheiros era que os matemáticos portugueses se tornassem parceiros do esforço internacional para o progresso das ciências. Outra das ideias pioneiras dessa nova geração foi a do trabalho colectivo em matemática, promovido através de seminários para troca de ideias, conferências, cursos breves, centros de estudo e investigação e sociedades científicas.

O esforço colectivo dos novos matemáticos levou à criação das revistas «Portugaliae Mathematica», surgida em 1937 e dedicada a artigos de investigação, e «Gazeta Matemática», lançada em 1939 e dedicada à divulgação. Apesar de alguns interregnos e grandes dificuldades, ambas tiveram uma continuidade notável, sendo ainda hoje publicadas pela Sociedade Portuguesa de Matemática. O dinamismo desta geração levou ainda à criação do Núcleo de Matemática, Física e Química e do Seminário de Matemática, em Lisboa. Ainda na capital, sob o impulso de Bento Jesus Caraça (1901–1948), Mira Fernandes e Beirão da Veiga, surge no Instituto de Ciências Económicas e Financeiras, actual ISEG, o Centro de Estudos Matemáticos Aplicados à Economia, de que hoje é herdeiro o Centro de Matemática Aplicada à Previsão e Decisão Económica (Cemapre). Em 1940, surge a Sociedade Portuguesa de Matemática. Finalmente, em 1943, Mira Fernandes, António Aniceto Monteiro e Ruy Luís Gomes criam a Junta de Investigação Matemática, que publicou uma série importante de monografias com o objectivo de «despertar na juventude estudiosa portuguesa o entusiasmo pela investigação».

Ruy Luís Gomes foi um dos fundadores da «Portugaliae Mathematica», revista portuguesa de investigação actualmente publicada pela Sociedade Portuguesa de Matemática.

No Porto, Ruy Luís Gomes cria em 1942 o Centro de Estudos Matemáticos, onde dinamiza seminários de investigação e forma jovens matemáticos. Ao mesmo tempo, produz textos expositivos de grande qualidade onde sistematiza aspectos vários da matemática e da física-matemática modernas. Publica em 1938 a obra «Teoria da Relatividade Restrita» e em 1954 «A Teoria da Relatividade — Espaço, Tempo, Gravitação». Em 1949 faz sair «Integral de Riemann», que complementou depois com «Integral de Riemann-Stieltjes» (1952) e «Sobre as Relações entre Integral de Riemann e Integral de Lebesgue» (1953).

No entanto, todo o entusiasmo promissor da nova geração de matemáticos portugueses viria a ser liquidado pelo regime salazarista que se tinha estabelecido no país. Depois de perseguições várias, em 1947 o governo expulsa das universidades praticamente todos os novos matemáticos. Sebastião e Silva seria o único dos doutorados no período que se conseguiria manter em Portugal.

Entre 1947, data da sua expulsão da universidade, até 1958, data em que deixou o país, Ruy Luís Gomes foi preso várias vezes pela polícia política e manteve-se firme opositor do regime. Em 1951 foi candidato à Presidência da República pelo Movimento Nacional Democrático, mas não chegou a ir à urnas pois o governo alterou retroactivamente a lei eleitoral e impediu a sua candidatura. A vida de Ruy Luís Gomes em Portugal tornava-se pessoalmente penosa e cientificamente impossível. Em 1958 partiu para a Universidade de Bahia Blanca, na Argentina, e em 1960 deslocou-se para o Recife, onde foi responsável por um novo desenvolvimento da investigação matemática.

Em 1974, regressou a Portugal, sendo nomeado Reitor da Universidade do Porto, cargo em que se manteve até 1975, data do seu jubileu. Em 1984, este homem que Levi-Civita tinha dito, com simplicidade e rigor, ser «um sábio sério» expirou na sua cidade natal.

Nuno Crato


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