Representações do relevo na Cartografia portuguesa


A figuração das formas do terreno foi talvez a questão cartográfica de mais difícil resolução, mais até do que a marcação, tão exacta quanto possível, da posição dos lugares à superfície da Terra. Em causa estava, não só a expressão da sua tridimensionalidade no plano da representação, como também a compreensão das formas e dos mecanismos que justificam a sua repartição espacial. Essa representação só começou a ser resolvida, de forma adequada, praticamente nos começos de Oitocentos, desenvolvendo-se sobretudo ao longo desse século. E, ao mesmo tempo que se tentaram normalizar os procedimentos para uma representação mais rigorosa, estabeleceram-se também normas para a sua descrição verbal. À semelhança do que acontecera de forma inovadora em França a partir de 1802, essa normalização foi logo a seguir também ensaiada em Portugal pelos engenheiros militares, trabalho no qual se destacaria o oficial do Real Corpo de Engenheiros José Maria das Neves Costa. Em Ensaio sobre a teoria do relevo dos terrenos, começado a redigir na década de 10 e concluído em 1824 (mas só publicado após a sua morte, a partir de 1849), este engenheiro tentou também definir uma terminologia uniforme a utilizar nas memórias que deveriam acompanhar qualquer mapa bem realizado (fig. 1 a 3).

No entanto, desde as primeiras cartas conhecidas que a preocupação de nelas expressar montes e vales esteve presente mas a figuração foi durante muito tempo fantasista, dependendo das capacidades artísticas do cartógrafo e das técnicas de impressão, entre outras.

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Fig. 1 - Algumas designações das formas de relevo, atendendo à sua altura, segundo Neves Costa (adaptado, 1824).
Fig. 2 - As formas de relevo consideradas no sentido vertical, segundo Neves Costa (1824): algumas designações e figuras adaptadas do seu Ensaio.
Fig. 3 - As formas de relevo consideradas no sentido horizontal, segundo Neves Costa (1824): figura adaptada do seu Ensaio.


Até pelo menos aos finais do século XVII, o relevo tanto surge sob a forma de pequenos montes isolados e intrigantes (como é o caso da Serra de Montejunto na carta de Fernando Álvaro Seco de 1561, aliás a única representada), como os montes desenhados preenchem os espaços entre os numerosos cursos de água que são geralmente representados nas cartas da época, mas sem qualquer ligação com a sua maior ou menor expressão real (como na carta de Portugal de Pedro Teixeira Albernaz de 1662). Essas formas também aparecem, nalgumas cartas, rigorosamente alinhadas em espinha ao longo dos interflúvios, mas, em qualquer dos casos, são sempre levantadas em perspectiva sobre o plano horizontal da planimetria. Durante este período, o relevo é imaginariamente representado; depois, sobretudo a partir do século XVIII, procura-se que sejam figurações “representativas” e realistas, em particular quando se trata de levantamentos pormenorizados.

Mas uma coisa era a figuração do relevo nas cartas impressas (fig. 4), muitas delas cartas gerais de pequena escala, e outra a sua figuração nas cartas topográficas ou plantas dos engenheiros militares, tanto no século XVIII como durante a primeira metade do século seguinte, geralmente manuscritas e muitas vezes de escala grande. Nestas, o terreno exprimia-se nas cartas portuguesas com o pincel ou, então, com o lápis ou a pena, sendo figurado “à vista” no terreno. Para exprimir formas e declives utilizavam-se técnicas diversas.

Nesta altura, era sobretudo muito utilizado em Portugal o “desenho penejado”, isto é, “hachures” (ou normais) grosseiramente desenhadas à pena ou a pincel, a que também se chamavam “linhas de queda de água” ou “linhas de pêndio” (fig. 5). Este processo de representação consistia em imaginar as curvas descritas pelas gotas da chuva no terreno, determinando-se à vista a sua projecção no plano. Considerava-se à época que esta era uma das melhores formas de exprimir o relevo mas não em mapas de pequena escala.

Para além de traços segundo o declive da vertente, outras técnicas permitiam dar expressão às formas (fig. 6), incluindo esbater a rigidez dos traços com aguadas. Mas o desenho só com aguadas, por se considerar muito monótono e não traduzir adequadamente o perfil das elevações (fig. 7), era muitas vezes substituído pelo “desenho penejado” a pincel (fig. 8), a que se juntavam aguadas ligeiras para atenuar a aspereza dos traços marcados ao longo das vertentes.

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Fig. 4 - Primeiras representações do relevo em cartas impressas de Portugal.
Fig. 5 - O relevo nos mapas manuscritos dos começos do século XIX: pormenores de uma carta da Beira Interior, do Barão de Blumenstein e do Cavaleiro de Miremont, de 1801, em que normais ainda rudimentares esboçam formas e declives do terreno.
Fig. 6 - Utilização de técnicas diferentes no “desenho penejado”: o mesmo pormenor em duas plantas da praça de Juromenha (marquês de Ternay, 1807, ao topo; Henrique Niemeyer, 1803, em baixo).

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Fig. 7 - A Serra de Monchique representada só por aguadas numa carta geral de Portugal, 1840, pela mão de José Maria das Neves Costa.
Fig. 8 - O “desenho penejado” a pincel; às vezes em perspectiva: pormenores de plantas de Estremoz (Brandão de Sousa, 1818, ao topo; des. Correia Botelho e Gualdino da Costa, ca. 1840, em baixo).


Utilizava-se ainda o desenho por “secções ou planos horizontais equidistantes”, geralmente atenuados por aguadas (fig. 9). Eram, portanto, neste caso imaginadas as secções feitas nos relevos por planos horizontais, paralelos e equidistantes, representando-se no plano as projecções dessas curvas. Às vezes, o desenho, pretendendo ser tão realista, parecia sugerir escamas (fig. 10).

Outras vezes, combinam-se várias técnicas nas cartas portuguesas, tentando simular uma realidade que era, então, muito difícil de representar (fig. 11).

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Fig. 9 - Representação por “cortes ou secções de planos horizontais” imaginados através dos relevos e suavizados por aguadas: pormenor da serra de Sintra em duas cartas de ca. 1820, ao topo, e ca. 1821-1837, em baixo.
Fig. 10 - A pretensão de um desenho realista parece às vezes sugerir “escamas”: pormenores de uma planta de Marvão levantada por Pedro Folque, 1818.
Fig. 11 - Utilização conjunta de técnicas diferentes na mesma carta: pormenores de uma planta de Valença, em cima, e de Castro Marim, em baixo, ambas desenhadas por Pedro Celestino Soares em 1813 e 1833, respectivamente.


É já entrado o século XIX que os mapas chegam à precisão das alturas e ao rigor da representação das formas do relevo. As verdadeiras normais (ou “hachures”) atingem, na primeira metade deste século, a sua grande perfeição mas, como técnica exigente, estavam reservadas para as cartas impressas (fig. 12). Só depois cedem o seu lugar ao emprego de figurações abstractas mas mais precisas, as curvas de nível.

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Fig. 12 - Utilização de sombreados em mapas manuscritos e de “hachures” em mapas impressos: o mesmo pormenor da carta topográfica militar da Península de Setúbal, na versão original desenhada pelo próprio autor (ca. 1:30 000, 1816), e quando foi impressa com “hachures” (1861). Junto figura um extracto da actual Carta Militar de Portugal 1:25 000 (1994, 4ª ed.), com curvas de nível, processo este utilizado nas cartas portuguesas desde 1861.


Nesta altura, conhecia-se ainda mal o relevo português, nomeadamente as alturas dos seus pontos altos. Veja-se a síntese feita, em 1824, pelo barão de Eschewege, que compilou uma centena de valores conhecidos, traçando-os sob forma gráfica (fig. 13): o ponto mais alto representado é a Serra do Soajo, com cerca de 2 400 m. Este documento prova, portanto, que não havia ainda a ideia, nesta altura, que a Serra da Estrela fosse o ponto culminante do território continental português.

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Fig. 13 - Altitudes conhecidas em 1824, segundo o barão de Eschwege: o ponto mais alto representado no gráfico, à direita, corresponde à Serra do Soajo (2400 m, 1335m actuais), enquanto s Serra da Estrela, ao centro, com valores diferentes consoante os autores, mostra uns mais modestos 2100-2300 m (1993 m nas cartas actuais).


Mas os engenheiros militares portugueses delineavam já nos seus esboços, com apreciável exactidão, a altura relativa das formas: à vista, no terreno, e medindo os desníveis, ao calcorrear o país, era importante sugerir, geralmente através das diversas técnicas de sombreados, aquelas formas que dominavam e as que eram dominadas. Esses sombreados, que todo o oficial engenheiro devia saber fazer na perfeição, embora uns sejam mais artísticos do que outros, reservavam-se aos mapas manuscritos, ou seja, à grande maioria dos levantamentos; para as cartas impressas, estavam reservadas as “hachures” (ou normais), que exigiam uma perfeição técnica e um tempo de execução incompatíveis com a generalidade dos trabalhos. Apesar de nos poder parecer hoje muito grosseiro o relevo mostrado nos levantamentos militares portugueses do século XVIII e sobretudo da primeira metade de Oitocentos, a sua representação sugere já uma imagem muito próxima da realidade, esquematizando com grande correcção as principais formas e a sua dominância relativa. A comparação dessas imagens com as rigorosas cartas actuais prova-o cabalmente (fig. 14).

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Fig. 14 - Animação 3-D da região de Oeiras em 1815, segundo uma carta topográfica do engenheiro militar Manuel Joaquim Brandão de Sousa. O revestimento de um moderno modelo digital do terreno com a carta antiga, efectuado com recurso ao software ArcGIS 9.1, foi realizado por Fernando Leitão e José João Costa (Seminário de Cartografia e Sistemas de Informação Geográfica, Departamento de Geografia da Faculdade de Letras de Lisboa, 2006).



Alguns estudiosos defendem que a origem da moderna figuração do relevo terrestre se deve ir procurar à Cartografia náutica: foi ao tentar figurar as formas invisíveis da parte submersa da Terra, fundamentais para o marinheiro levar o seu barco a bom porto, que o Homem descobriu o modo de exprimir com exactidão o relevo terrestre, então com muito menos interesse prático. Na realidade, as sondas surgem representadas nas cartas, no decurso do século XVI, junto às áreas de águas menos profundas (porque não se conseguia sondar a mais de 100 braças, ou ca. de 200 m), mas as batimétricas só se generalizaram a partir dos princípios do século XVII (as primeiras curvas desenhadas são, compreensivelmente, os níveis da maré alta e baixa). Se foi óbvia a escolha do nível do mar para nível de referência na parte submersa, o mesmo não aconteceu nas áreas emersas. Numa das primeiras tentativas de dar cotas ao terreno, no século XVIII, estas são negativas e o plano de comparação, correspondente ao zero, situava-se no ponto mais alto. Este plano horizontal, passando pelo ponto culminante, também chamado “plano de comparação”, era, no fundo, a transposição feita pelos engenheiros nos seus levantamentos do método utilizado nas cartas náuticas. Daqui que a Comissão de normalização francesa tenha proposto, em 1802, que todos os serviços públicos passassem a reportar ao nível do mar as cotas determinadas no terreno. E os princípios das curvas de nível, em que se supunha uma inundação geral que se elevasse ou baixasse gradualmente e deixasse os seus traços na paisagem, traduzem a adaptação às cartas terrestres do método utilizado nas cartas náuticas.


Até inícios do século XIX, não era ainda possível a representação correcta do relevo, também por não ser fácil a medição sistemática das altitudes. Por isso, a carta de França, vulgarmente conhecida como a carta de Cassini (levantada entre 1744 e 1793) e que serviu de modelo às realizadas nos outros países europeus, continuou sobretudo a tendência anterior de representar com o maior rigor possível a posição dos lugares, não se preocupando os engenheiros com as formas do terreno, que se mantiveram ainda fantasistas. E para tornar a carta mais agradável, juntou-se-lhe um esboço de topografia. Nenhuma medição de altitude foi feita, porque o objectivo era construir não uma carta topográfica mas uma carta geométrica. E a carta francesa do Estado-Maior, que se lhe seguiu, realizada já no século XIX (1817-1881) e com altitudes em metros, utilizou sempre as “hachures” como meio de expressão das formas. Quanto a Portugal e à carta corográfica 1:100 000 (37 fls., 1856-1904), a primeira carta moderna que cobriu com algum detalhe todo o país, tendo embora começado a sua publicação com recurso às normais, rapidamente esse método de representação foi convertido nas modernas curvas de nível, ao mesmo tempo que se substituíam as três folhas já editadas com aquele sistema.


Maria Helena Dias



Bibliografia

ACOSTA, José Maria das Neves - Ensaio sobre a theoria do relêvo dos terrenos. Revista Militar. Lisboa: Empresa da Revista Militar. Nº 1 (1849), p. 47-53; nº 2 (1849), p. 65-73; nº 7 (1849), p. 396-403; nº 8 (1849), p. 451-459; nº 10 (1849), p. 582-590; nº 11 (1849), p. 613-621; nº 1 (1850), p. 9-16; nº 7 (1850), p. 311-318; nº 9 (1850), p. 409-416; nº 10 (1850), p. 455-462; nº 1 (1851), p. 11-16.

DIAS, Maria Helena (aut. texto) – Portugalliae descriptio: do primeiro mapa conhecido (1561) ao primeiro mapa moderno (1865). Lisboa: Instituto Geográfico do Exército, 2006. 23 p + 8 mapas. ISBN 989-21-0084-0.

DIAS, Maria Helena (coord.) – Contributos para a História da Cartografia militar portuguesa [CD-ROM]. Lisboa: Centro de Estudos Geográficos [etc.], 2003. ISBN 972-636-141-9.

DIAS, Maria Helena; BOTELHO, Henrique Ferreira (coord.) – Quatro séculos de imagens da Cartografia portuguesa = Four centuries of images from Portuguese Cartography. 2ª ed. Lisboa: Comissão Nacional de Geografia [etc.], 1999. LIV + 71 p. ISBN 972-765-787-7.

DIAS, Maria Helena; GARCIA, João Carlos; ALMEIDA, André Ferrand de; MOREIRA, Luís (coord.) – História da Cartografia militar, séculos XVIII-XX. Viana do Castelo: Câmara Municipal, 2005. 307 p. ISBN 972-588-172-9.

FORTES, Manoel de Azevedo – Tratado do modo o mais fácil, e o mais exacto de fazer as cartas geográficas... Lisboa: Off. de Pascoal da Sylva, 1722. 200 p.

FORTES, Manoel de Azevedo – O engenheiro português. Lisboa: Direcção da Arma de Engenharia, 1993. 2 vol.

FRANÇA. Dépôt Général de la Guerre - Mémorial topographique et militaire. Paris: Imprimerie de la Republique, [1802-1805]. 6 vol.

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