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Século XX

Fernando Lopes-Graça

Fernando Lopes-Graça
Fernando Lopes-Graça, por Teresa Cascudo Retrato de Fernando Lopes-Graça (© Câmara Municipal de Cascais / Museu da Música Portuguesa / Fundo Fernando Lopes-Graça) No decurso de uma entrevista concedida em 1986, Lopes-Graça afirmou que a sua atuação enquanto artista era inseparável dos compromissos que, como cidadão, tinha com a “Cidade” e com a “Grei”. A sua intenção era esclarecer definitivamente, no significativo momento do seu 80º aniversário, que não era nem um “compositor político” nem um “político compositor”. A posição de Lopes-Graça apresenta analogias com a de numerosos intelectuais portugueses, os quais, a partir de coordenadas diferentes, defenderam o papel da cultura como fundamento para a construção da sociedade civil. Este compromisso, no caso de Lopes-Graça, foi primeiramente um compromisso pessoal. Foi, ainda, um compromisso público, alicerçado numa conceção social da arte e na fé no progresso da humanidade. Porém, decorridos cem anos desde o seu nascimento, Lopes-Graça merece ser principalmente recordado como compositor, como autor de uma vasta obra em que deu voz a uma forma interveniente e crítica de “ser” português.Nascido em Tomar, em 1906, Fernando Lopes-Graça iniciou os seus estudos musicais na sua cidade natal, tendo-os concluído no Conservatório Nacional de Lisboa, que frequentou entre 1923 e 1931. Nessa instituição foi discípulo de piano dos professores Adriano Merea e José Viana da Mota, estudou composição com Tomás Borba, e ciências musicais com Luís de Freitas Branco. Frequentou ainda o curso de Letras das Universidades de Lisboa (1928-31) e de Coimbra (1932-4), embora não chegasse a conclui-lo. As primeiras obras do seu catálogo foram apresentadas em Lisboa em concertos organizados em colaboração com outros colegas do Conservatório, na mesma época em que iniciava um notável trabalho como cronista musical, manifestando um raro talento literário e uma ampla cultura. Em 1932 começou a ensinar na Academia de Música de Coimbra, cidade onde permaneceu radicado até 1936. Os anos de Coimbra foram precedidos e encerrados com duas detenções por motivos políticos que o impediram de ensinar em escolas públicas durante os anos posteriores, apesar de ter ganho por oposição uma vaga de professor de piano no Conservatório Nacional de Lisboa em 1931. Estes anos coincidiram com um primeiro período, que poderíamos qualificar como modernista, no seu percurso como compositor, durante o qual o seu estilo revelou a influência de autores como Arnold Schönberg e Paul Hindemith. Nas suas primeiras obras, muitas delas destruídas ou revistas posteriormente, também se destaca um atento estudo da prosódia da língua portuguesa, manifestado nas suas canções de poetas como Adolfo Casais Monteiro, José Régio ou Fernando Pessoa. O seu gosto pelos géneros vocais, estimulado pelo relacionamento constante com poetas contemporâneos, permaneceu ao longo de toda a sua vida.Lopes-Graça instalou-se em Paris em 1937. Na capital francesa frequentou o curso de Musicologia da Sorbonne, assistindo às aulas de Paul-Marie Masson, e teve alguns contactos com o compositor Charles Koechlin. Em Paris compôs várias obras para piano, a música para o bailado realista La Fièvre du Temps e realizou as suas primeiras harmonizações para voz e piano de canções tradicionais portuguesas. Uma parte da sua produção derivou num “nacionalismo essencial”, nas suas palavras, caracterizado pelo tratamento do material retirado da música tradicional e pela assimilação dos seus rasgos harmónicos, melódicos e rítmicos. Temos dois exemplos na Sonata para piano nº 2 e na primeira versão do Quarteto com piano, onde a referência estilizada às canções populares surge junto com o uso de uma colorística harmonia e de ritmos percutidos alternados com polirritmias lineares. Esta nova tendência no seu estilo de compor manifesta a influência de Bela Bartók e de Manuel de Falla e a dos escritos de Koechlin publicados nestes anos. Fernando Lopes-Graça a dirigir o Coro da Academia dos Amadores de Música (© Câmara Municipal de Cascais / Museu da Música Portuguesa / Fundo Fernando Lopes-Graça) Lopes-Graça regressou a Lisboa em 1939, tendo retomado a sua atividade como cronista musical, musicólogo e professor e iniciando o seu labor como organizador de concertos e maestro coral. Ensinou piano, harmonia e contraponto na Academia de Amadores de Música e constituiu a sociedade Sonata que, entre 1942 e 1960, promoveu a apresentação de programas inteiramente preenchidos por música do século XX. A sua primeira obra importante após o seu regresso de Paris foi o Concerto para piano e orquestra nº 1, composição que ganhou o primeiro prémio de composição patrocinado pelo Círculo de Cultura Musical em 1940. Recebeu a mesma distinção em 1942, com a cantata História Trágico-Marítima sobre textos de Miguel Torga, em 1944, com a Sinfonia per orchestra, e, em 1952, com a Sonata para piano nº 3. Lopes-Graça também retomou as suas colaborações nas publicações periódicas Seara Nova e O Diabo, como crítico musical e teatral respetivamente. Participou, com Bento de Jesus Caraça, na organização da Biblioteca Cosmos e publicou vários livros onde, para além de editar seleções dos seus artigos jornalísticos, se dedicou à difusão, com intuito pedagógico, de diversos assuntos de caráter musical.Após a Segunda Guerra Mundial, grande parte da atividade de Lopes-Graça foi determinada pela sua participação no Movimento de Unidade Democrática, assim como no PCP, do qual se tornou militante na década de 40. É de 1945, por exemplo, o seu plano para a organização estatal da música, inédito até à sua publicação em 1989, um bom indício das esperanças postas na mudança política que foram partilhadas por muitos nesta época. É também deste ano o início da composição das célebres Canções Heróicas, canções de intervenção que Lopes-Graça, apesar da proibição que pesava sobre a sua execução pública, continuou a compor até 1974, e inclusive em anos posteriores. A criação, igualmente em 1945, do Coro do Grupo Dramático Lisbonense fez parte deste movimento. Este foi o antecedente do Coro da Academia de Amadores de Música, fundado em 1950. Para além do trabalho de regência, Lopes-Graça escreveu para este agrupamento dezenas de harmonizações corais de canções tradicionais portuguesas, que constituíram o seu repertório. Por último, também em 1945, Lopes-Graça começou a colaborar regularmente na revista Vértice, onde publicou ao longo da segunda metade da década quatro artigos essenciais para entender as suas atitudes estéticas e políticas: “Necessidade e capricho da música contemporânea” (1945), “Sobre o conceito de popular na música” (1947), “O valor da tradição nas culturas musicais” e “Valor estético, pedagógico e patriótico da canção popular portuguesa” (ambos de 1949). O seu apreço reivindicativo da música tradicional continuou manifestando-se nas suas obras musicais da década de 50, nomeadamente na Sonata nº 3 e nas Glosas, ambas para piano.O fim da sua atividade pedagógica na Academia de Amadores de Música, em 1954, foi consequência de um despacho ministerial que anulou a sua autorização para dar aulas em instituições privadas de ensino. Conseguiu, porém, manter a sua ligação com a instituição através da revista Gazeta Musical (1950-1957), fundada por ele juntamente com João José Cochofel, e da edição do Dicionário de Música (1954-8), empresa iniciada a partir do projeto de um dos seus professores, o então já falecido Tomás Borba, e através da direção musical do mencionado Coro da Academia de Amadores de Música, que teve nestes anos um dos seus períodos de mais intensa atividade. O dicionário foi editado pela Editorial Cosmos e durante estes anos foi a principal fonte de ingressos do compositor. O seu encontro com Michel Giacometti data de fins da década de 50, quando após um primeiro encontro pessoal ambos deram início a um trabalho conjunto que se manteve durante décadas. O primeiro fruto desta colaboração nasceu em 1960, ano em que foi editado o primeiro volume discográfico da coleção “Antologia da Música Regional Portuguesa”, dedicado à região de Trás-os-Montes. Ambos, em 1981, editaram no Círculo de Leitores o Cancioneiro Popular Português. Primeira página da partitura autografa "Suite Rústica N.º 1" de Fernando Lopes-Graça (© Câmara Municipal de Cascais / Museu da Música Portuguesa / Fundo Fernando Lopes-Graça) O desenvolvimento posterior da obra musical de Lopes-Graça tem permitido definir uma terceira fase iniciada na segunda metade da década de cinquenta, e marcada por obras como o ciclo vocal As mãos e os frutos (1959), sobre poemas de Eugénio de Andrade, o Canto de Amor e de Morte, quinteto com piano composto em 1961, e a Sonata para piano nº 5, escrita em 1977. Estas duas obras contam-se entre a produção mais intensa e exigente em termos formais e expressivos do compositor, evidenciando uma nova orientação no seu estilo. Embora nunca chegasse a abandonar completamente as referências explícitas à canção tradicional no seu catálogo, nestes anos, o compositor passou a explorar de maneira intensiva o ritmo e a harmonia, sendo o trabalho sobre este parâmetro baseado na utilização de um número muito reduzido de relações intervalares, em estruturas mais elaboradas. Esta é também a época do Concerto da camera col violoncelo obbligato, encomenda de Mstislav Rostropovich que o interpretou em primeira audição num concerto em Moscovo, e do Quarteto de cordas nº 1, vencedor do prémio de composição Rainier III de Mónaco em 1965. Nesse ano foram gravadas pela primeira vez obras sinfónicas da sua autoria interpretadas pela Orquestra do Porto sob a regência de Silva Pereira, que tinha dirigido no ano anterior um concerto inteiramente preenchido com composições para orquestra de Lopes-Graça, promovido pela delegação portuense da Juventude Musical Portuguesa.O fim do Estado Novo traduziu-se no reconhecimento oficial da importância de Lopes-Graça para a cultura portuguesa através de diversas homenagens e encomendas estatais. No que diz respeito à divulgação da sua obra, devemos referir a reedição, ao longo das décadas de 70 e de 80, dos seus livros numa coleção da Editorial Caminho e a gravação em disco de um considerável número de obras da sua autoria, editadas pela etiqueta discográfica PortugalSom, então dependente da Secretaria de Estado da Cultura. Os anos transcorridos desde 1974 até ao seu falecimento foram para Lopes-Graça criativamente muito férteis. São prova disso as duas sonatas para piano e um quarteto, o impressionante Requiem para as vítimas do fascismo em Portugal (1979) e as Sete predicações de “Os Lusíadas” (1980), o bailado Dançares, uma sinfonia para orquestra de formação clássica, numerosas canções, composições instrumentais mais breves e peças de circunstância. Da sua última produção para voz e piano, destacam-se os Dez Novos Sonetos de Camões, Aquela nuvem e outras (sobre poemas infantis de Eugénio de Andrade) e canções sobre textos de Fernando Pessoa e de José Saramago. Se o expressivo Requiem sintetiza a vertente mais dramática do seu catálogo, surgiram neste período outras composições com características novas. Lopes-Graça cultivou a partir dos anos 80 uma espécie de neoclassicismo revisitado para formações instrumentais que nunca tinham feito parte do seu catálogo. Na realidade, essa ideia de neoclassicismo relaciona-se ao longo de toda a sua obra com uma interessante reflexão sobre a de tradição, que se evidencia no recurso e manipulação constante de citações musicais. Sonata nº 6, a Sinfonietta homenagem a Haydn e Geórgicas são exemplos desta última fase, obras onde também se revela através da paródia o seu peculiar sentido do humor.Bibliografia sumária:Carvalho, Mário Vieira de Carvalho, O essencial sobre Fernando Lopes-Graça, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1988.Cascudo, Teresa, “À luz do presencismo: uma leitura da Introdução à música moderna (1942), de Fernando Lopes-Graça”, Leituras: Revista da Biblioteca Nacional, 12-13, 2003, pp. 107-124.Uma homenagem a Fernando Lopes-Graça, Porto, Câmara Municipal de Matosinhos/Edições Afrontamento, 1995.Vértice, 444/5 (1981) [número especial dedicado a Fernando Lopes-Graça].Apontadores:http://www.musica.gulbenkian.pt/cgi-bin/wnp_db_dynamic_browse.pl?dn=db_notas_soltas_articles&sn=dossier_fernando_lopes_gracaDossier Lopes-Graça (Notas Soltas, webzine do Serviço de Música da Fundação Calouste Gulbenkian)

Fidelino Figueiredo

Fidelino Figueiredo
Fidelino Figueiredo, por Carlos Leone Fidelino de Sousa Figueiredo (Lisboa, 1888 – Lisboa, 1967) Fidelino de Figueiredo é há muito um autor esquecido mesmo por aqueles que contactam com a sua imensa Obra. A mais forte das razões para esta situação é a dificuldade em enquadrá-la no seu tempo. Com efeito, nascido no mesmo ano que, por exemplo, Vieira de Almeida, a sua atividade parece anterior (apesar de ter morrido até mais tarde). O que sucede é algo simples de compreender (o próprio Fidelino o observou) mas difícil de contrariar: o seu pensamento e mesmo a sua sensibilidade eram tributários de um século XIX, liberal e seleto, que não chegou a tempo de viver.Homem de Letras, espírito fino e elevado, o seu tempo não poderia ser o século XX que conheceu em Portugal (e Espanha): o de regimes conflituosos e populares, e depois violentos e antiliberais. E se começou por fazer nome em sucessivos trabalhos de grande extensão dedicados à crítica literária como ciência (pós-positivista, no entanto) e à História da Literatura Portuguesa, nas décadas de 1910 e 1920, o seu espírito era o de um homem do mundo, mas não exatamente do seu tempo. Isso mesmo era óbvio quando o jovem José Régio, para melhor vincar a genialidade de Pessoa, comparava favoravelmente os breves prefácios deste com as longas obras de Fidelino. E o mesmo se poderia dizer dos géneros mistos (romanescos) que também ensaiou, nos quais o seu estilo sobressaía mas, de igual modo, o seu anacronismo também. Contudo, crescentemente considerado em Espanha, fruto do seu interesse pelos temas iberistas, obteve aí sucesso junto do público e da crítica, bem como de vastos setores académicos com duas obras: As Duas Espanhas e Pyrene (1932 e 1935, respetivamente). Mas desenvolveu o seu magistério académico não tanto na Península Ibérica quanto nos EUA, México e, sobretudo, Brasil (São Paulo, onde dirigiu a revista Letras e deixou discípulos). Por esta altura, cerca de 1950, mesmo antigos críticos, como o presencista Adolfo Casais Monteiro, já o estimavam quer intelectualmente quer civicamente. Veio a morrer, após longa doença, em Lisboa.Neste ponto convém observar que a vida de Fidelino de Figueiredo não decorreu apenas entre livros e bibliotecas, embora aí se sentisse em casa. Na verdade, foi político (ministro de Sidónio Pais), duas vezes diretor da Biblioteca Nacional (a primeira na década de 1910, a segunda na de 1920) e exilado político, fugindo ao desterro para as colónias (após tentar derrubar a ditadura instalada em 1926 num golpe em 1927). Mesmo reiterando o seu desinteresse pela política, nunca abdicou do seu liberalismo, tanto na vida literária como na pública. Foi, por isso, incompreendido tanto pelo regime do Estado Novo como por muitos dos mais novos que se lhe opunham. De certo modo próximo de Ortega y Gasset, só que sem esperança em renovar o liberalismo, que entendia ter sido superado pelo democratismo na Europa pós-Segunda Guerra Mundial, Fidelino desejava que o pós-guerra trouxesse uma governação global mais eficaz que a experiência da Liga das Nações, mas para todos os efeitos nunca foi um pensador político.Por outro lado, o seu pensamento tem numerosas facetas. O melhor estudo compreensivo de que dispomos, de Mário Carneiro, subdivide-o enquanto Filosofia em Epistemologia, Filosofia da Cultura e Filosofia da Educação, reconhecendo embora como o tempo acrescentou a estas áreas trabalhos de teoria da História, Música, etc. Em rigor, o pensamento de Fidelino é de tal modo diverso que melhor é identificar o que nele falta: ciências sociais. Como os seus estudiosos mais rigorosos notaram, mesmo a Psicologia e a História que encontramos nos seus escritos têm maiores afinidades com o século XIX do que com o XX, e isso deve-se ao modo de pensar, mais do que a falta de conhecimentos.Leitor incessante, Fidelino correspondeu-se com numerosos estudiosos de muitas origens. Sempre atento aos grandes temas do seu tempo, talvez melhor do que em outros temas seja no pensamento sobre as crises da época em que viveu que melhor se vê a marca original da sua Obra. De facto, Fidelino via o seu tempo como um de crise, mas pela positiva, isto é, como um de «cultura intervalar» (título de um dos seus livros). Entendia por este termo o período de passagem de uma era cultural para outra; assim, a Idade Média (finda logo com Carlos Magno, de resto) teria sido intervalar entre duas eras, e mesmo assim também original em muitas coisas, desde o Direito até aos registos vernaculares entretanto promovidos a línguas de cultura e oficiais. Mesmo hoje é discutível até que ponto tal leitura é rigorosa, mas independentemente de outros aspetos, a sua originalidade é real e merece interesse.Embora Fidelino nunca tivesse obtido consolo com semelhante singularidade: «roubar a alguem a pátria é talvez o maior crime da malevolência politica, porque é desenquadrar uma vida da moldura social que lhe dá significado e finalidade, é demolir toda a architectura duma vida.» (Notas para um Idearium Português, p. 221). Ele perdera a sua, o liberalismo de Oitocentos. Referências bibliográficas:Carneiro, Mário, O Pensamento Filosófico de Fidelino de Figueiredo, INCM, Lisboa, 2004.Serra, Pedro, Um Intelectual na Fobolândia, Angelus Novus, Coimbra e Braga, 2004.Lemos e Moreira Leite, orgs, A Missão Portuguesa : Rotas Entrecruzadas, ed. UNESP, S. Paulo, 2002.

Guilhermina Suggia

Guilhermina Suggia
Guilhermina Suggia, por Fátima Pombo Em Paris, 1909. Guilhermina Augusta Xavier de Medim Suggia nasceu em 27 de junho de 1885, na freguesia de S. Nicolau, no Porto e morreu na noite de 30 de julho de 1950, na sua casa da Rua da Alegria, 665, também no Porto.Suggia revela uma tendência prematura para a música e tem como primeiro professor de violoncelo o pai, Augusto Suggia, que reconhece na filha o seu imenso talento musical.Guilhermina Suggia toma a corajosa decisão de ser violoncelista profissional, sendo a primeira mulher a fazer carreira a solo e a atingir tão grande êxito nessa profissão.Existem outras mulheres, anteriores a Suggia ou da sua geração que, não podendo comparar-se-lhe em génio musical e consagração, seria injusto esquecer. Lisa Cristiani (1827-1853), parisiense, foi uma das primeiras violoncelistas de que se tem conhecimento; apesar de se reconhecer talento a Cristiani, diz-se que tinha um som pequeno. Gabrielle Plateau (1855-1875), belga, de quem se sabe muito pouco, é considerada possuidora de uma técnica brilhante, mas também sem um som poderoso. De Beatrice Eveline (nasceu em 1877, desconhece-se a data da sua morte), inglesa, sabe-se que fez tournées na Europa como solista. É, no entanto, May Mukle (1880-1963) que é considerada a pioneira das mulheres violoncelistas em Inglaterra e a primeira a conquistar o estatuto de concertista. Beatrice Harrison (1892-1965), filha de ingleses, nasce no Noroeste da Índia. Fez o seu début com 15 anos, foi a primeira mulher violoncelista a tocar no Carnegie Hall e a primeira a ser convidada como solista pelas Orquestras Sinfónicas de Boston e de Chicago.Na geração imediatamente a seguir a Guilhermina Suggia há a destacar Thelma Reiss (Plymouth, Inglaterra,1906) e Raya Garbousova (Tiflis, Rússia, 1909). Ambas tiveram lições com Suggia. Violoncelistas como Antonia Butler (Londres, 1909) ou Florence Hooton (Scarborough, 1912) têm de ser consideradas, fundamentalmente, como professoras. Zara Nelsova (Winnipeg, Canadá, 1918) marca o início de uma geração de mulheres violoncelistas que já não estudam diretamente com Suggia, mas que continuam a reconhecê-la como referência ímpar. Nelsova toca em 1950, no primeiro concerto que se realiza em memória de Guilhermina Suggia, com a Orquestra Sinfónica de Londres, dirigida por Sir Malcolm Sargent, na Royal Academy of Music. Uma outra mulher com um som belíssimo, ligada ainda ao nome de Suggia, é a brilhante e efémera Jacqueline Du Pré (Oxford, 1945-1987) que ganha, com 10 anos, o Prémio Suggia, o qual lhe permite estudar com William Pleeth na Guildhall School of Music. Em Londres, Anos 20. Guilhermina Suggia era uma mulher muito culta, uma mulher de muitas experiências, uma conquistadora nata, tinha uma lógica própria e relacionava-se com o mundo a partir dessa lógica. Falar do seu temperamento implica falar de música, porque a vida de Suggia é acompanhada sempre de música e do violoncelo. Apesar do seu talento para o violoncelo, estudava muitíssimo, motivada por um ideal de perfeição estilística e musical. Para Suggia, o violoncelo é o mais extraordinário de todos os instrumentos, considerando-o ela o único que tem a possibilidade de suster um baixo por um longo período e a possibilidade de cantar uma melodia praticamente em qualquer registo. Porém, para que se revele a substância musical do violoncelo, é preciso que a técnica não seja estudada apenas como destreza, mas que tenda sempre para a música. “A técnica é necessária como veículo de expressão e quanto mais perfeita a técnica, mais livre fica a mente para interpretar as ideias que animaram o compositor”. [Guilhermina Suggia, “The Violoncello” in Music and Letters, nº 2, vol. I, Londres, abril de 1920, 106].Suggia dedica uma atenção muito subtil aos pormenores. Em Londres, quando mora num segundo andar, tem uma vizinha que se queixa que, num dos apartamentos do andar de cima, Suggia, para além de dar aulas de violoncelo, toca continuamente. Acrescenta ainda, com humor amargo, que Suggia se mudou para lá no outono de 1922 e que até então, 1924, não deixou de tocar. Suggia fixa-se em Londres a partir de 1914 e só regressa definitivamente a Portugal nos anos 30.A formação de Suggia, depois do que aprendeu com o pai e que foi de muita qualidade e da experiência adquirida no Quarteto Moreira de Sá, é aperfeiçoada na escola alemã de violoncelo, que nos finais do século XIX e princípios do XX é a mais conceituada. Suggia parte para Leipzig em 1901 com uma bolsa de estudo concedida pela Rainha D. Amélia para estudar no Conservatório de Leipzig – conhecido pela exigência de ensino e pela exigência na seleção de alunos – com o professor Julius Klengel (1859-1933).Sobre a sua discípula, informa Klengel num certificado, datado de 19 de junho de 1902, que “sem dúvida não tem havido uma violoncelista com o mérito da artista de que me ocupo, que também não tem nada a recear no confronto com os seus colegas do sexo masculino. Mlle. Suggia, possuindo alta inteligência musical e um completo conhecimento da técnica, tem o direito de ser considerada, no mundo artístico, como uma celebridade”.Klengel profetiza que Guilhermina “cheia de talento, conhecedora de todos os segredos do violoncelo, começa a subir e há-de ir tão alto que ninguém a atingirá”.A profecia de Klengel realizou-se logo a seguir ao período de Leipzig, com Suggia a tocar com o maior sucesso nas mais prestigiadas salas de concerto europeias. Suggia, que sempre elogiou o professor Klengel e os seus extraordinários ensinamentos, destaca também a influência de Pablo Casals (1876-1973).Em 1906 Suggia está em Paris, toca nessa altura para Casals e ainda durante esse ano começa a partilhar com ele a mesma casa, a Villa Molitor. O primeiro encontro com Pablo Casals foi no verão de 1898, em Espinho. Casals tinha sido contratado pelo Casino de Espinho para tocar durante o estio, nas noites do Casino. Eram sete músicos, mas uma vez por semana Pablo Casals tocava a solo e dele se dizia que “transformava um café numa sala de concertos e esta num templo”. O pai de Guilhermina, atraído pela fama do violoncelista, pede-lhe para ouvir a filha (com 13 anos) e Casals, entusiasmado com o som dela, aceita dar-lhe lições. Guilhermina passa o verão a viajar em lentos comboios, entre o Porto e Espinho, carregada com o violoncelo, enquanto Casals ali trabalha. Encontram-se outra vez em Leipzig, durante as visitas do catalão ao professor Julius Klengel. Em Londres, Anos 30. Com Suggia e Casals a viver juntos em Paris na Villa Molitor, está reunido o casal mais famoso e talentoso de violoncelistas. A casa situava-se na zona de Auteuil e estava alugada a Casals desde janeiro de 1905. A Villa Molitor faz parte de um bairro de 25 casas. Casals alugou o nº 20 por ter um pequeno jardim e ficar no fim da rua. A casa tem três pequenos andares: a cozinha no rés do chão, a sala de jantar e a sala de visitas no 1º andar, dois quartos e a casa de banho no andar de cima. No fim da primavera ou princípio do verão, quando acabava a temporada de concertos e os músicos regressavam das suas tournées, encontravam-se todos na Villa Molitor e daí resultavam extraordinários serões musicais. Lembrou Casals mais tarde que tocavam juntos “pelo puro amor de tocar, sem pensar em programas de concerto ou horários, em empresários, bilheteiras, audiências, críticos de música. Apenas nós e a música”. Desse círculo de amigos faziam parte, entre outros, os pintores Degas e Eugène Carrière, o filósofo Henri Bergson, o escritor Romain Rolland, os músicos Ysaÿe, Thibaud, Cortot, Bauer e compositores como d’Indy, Enesco, Ravel, Schönberg, Saint-Saëns.Durante o período de coabitação parisiense, encontram-se na revista Le Monde Musical muitas referências entusiásticas às interpretações de ambos.O ano de 1913 é devastador para a relação Suggia-Casals. O violoncelista pretende sepultar no mais profundo esquecimento aquele pedaço de vida a que ele se referiu como o “episódio mais cruelmente infeliz da minha vida”. Suggia, quando mais tarde se referir a Casals, será na qualidade de violoncelista e nunca no plano amoroso.O quadro que Augustus John pintou de Guilhermina Suggia em 1923 traz para a matéria a têmpera de Suggia quando toca em público. Durante as sessões no atelier do pintor, Suggia tocava Bach. Essa imagem que o artista tão irresistivelmente captou é um legado para a posteridade sobre a atitude interpretativa de Suggia. No palco incarna a figura da prima-dona que domina a música. Quando entra é uma aparição imponente e desde esse momento começa a magnetização do público ao unir a técnica e a compreensão absoluta da obra. É comum ler-se nas críticas que os aplausos são estrondosos, ressoando nas salas com assistências enfeitiçadas. Suggia, mais do que aplaudida, é aclamada.Suggia provoca, em geral, sentimentos extremos porque ela própria é de uma impenetrabilidade de aço ou de uma generosidade sem par. Pode ser efusiva, rir alto, ser extravagante, mas também recolher-se até à nostalgia, ser silenciosa e austera.No Porto, dizem que é uma inglesa excêntrica, que gosta de usar palavras estrangeiras na conversação, afastando-se ostensivamente quando alguém espirra. Tem um sentido de humor britânico que exercita nos circuitos sociais. Ao contrário das senhoras portuenses, Guilhermina Suggia joga ténis, pratica remo e natação. Muitas vezes é ela que conduz o seu Renault preto. Se vai para a casa de Leça da Palmeira, dispensa o motorista. Em Leça da Palmeira alugou uma casa para estudar. Leva um dos cães consigo, Mona ou Sandy e o violoncelo. No Porto, Anos 40. Durante a Guerra, Suggia permanece mais por Portugal, e no Porto solicitam a sua participação em concertos de angariação de fundos humanitários. No final dos anos 40, o encontro de Suggia com Maria Adelaide de Freitas Gonçalves, diretora do Conservatório de Música do Porto, tem consequências para a vida musical da cidade: a formação da Orquestra Sinfónica do Conservatório, integrando alunos finalistas dessa escola, a que a diretora chamava carinhosamente o “viveiro”. Suggia apoiou o naipe de violoncelos e foi solista no concerto de apresentação da Orquestra, na noite de 21 de junho de 1948, no Teatro Rivoli. Tocou o Concerto de Saint-Saëns e Kol Nidrei de Max Bruch. Dos seus alunos – Pilar Torres, Madalena Moreira de Sá e Costa, Isabel Millet, Maria Beires, Maria Alice Ferreira, Celso de Carvalho, Filipe Loriente, Carlos de Figueiredo, Amaryllis Fleming, Audrey Rainier, Jean Marcel – tinha uma intuição muito lúcida quanto ao papel que desempenhariam na música enquanto violoncelistas. É preciso suportar os bastidores e saber que “para tocar queimamos os nossos nervos”, dizia aos seus discípulos, que nunca aceitou em grande número.Em 1949, Suggia com sinais visíveis de doença, tem a corajosa iniciativa de criar o Trio do Porto, constituído por ela, pelo violinista Henri Mouton e pelo violetista François Broos. É neste período dos anos 40 que Suggia reforça os laços musicais com compositores e intérpretes portugueses, tocando no Porto, em Lisboa, Aveiro, Viana do Castelo, Braga, Viseu... muitas vezes a convite do Círculo de Cultura Musical dessas cidades. Em 31 de maio de 1950 toca pela última vez em público, num recital no Teatro Aveirense, para os sócios do Círculo de Cultura Musical de Aveiro, acompanhada ao piano por Maria Adelaide de Freitas Gonçalves. Foi o seu último êxito. Regressa ao Porto conduzida pelo motorista, com o carro cheio de flores. A viagem à América, tão desejada e já programada, não se realizará.Visando distinguir o melhor aluno do Curso Superior de Violoncelo do Conservatório de Música do Porto é instituído por vontade testamentária da violoncelista o Prémio Guilhermina Suggia, atribuído pela primeira vez em 1953.Igualmente em cumprimento de disposição testamentária é instituído a partir de 1951 o Prémio Guilhermina Suggia a atribuir pela Royal Academy of Music de Londres com o principal objetivo de incentivar os violoncelistas com perfil de intérpretes a solo a dedicarem-se a um período especial de pós-graduação.Guilhermina Suggia tinha vários violoncelos. Entre eles destacam-se os famosos Stradivarius (Cremona, 1717) e Montagnana (Cremona, supostamente em 1700; na etiqueta o terceiro algarismo não está completamente legível, embora se assemelhe a um zero). Suggia fez poucas gravações. Para além das gravações existentes em 78 rotações, está atualmente disponível no mercado o CD Guilhermina Suggia plays Haydn, Bruch, Lalo, na etiqueta Dutton (CDBP9748), U.K., 2004.ReportórioSuggia tocava todos os importantes concertos da época para violoncelo e orquestra – os concertos de Haydn, Elgar, Saint-Saëns, Schumann, Eugène d’Albert, Dvořak.Uma vez que Suggia fez infelizmente poucas gravações, uma das possibilidades para poder imaginar o som dela é a leitura de variadas críticas, por exemplo à mesma peça, interpretada em anos diferentes. A seleção que apresento é muito restrita e tem de ser percebida como um exercício que deixa de fora muitíssimas outras críticas que, no entanto, participam da mesma atmosfera apreciativa. O critério utilizado nesta brevíssima seleção foi o de procurar referências que pudessem sugerir a natureza do som de Suggia e a particularidade da interpretação em diferentes momentos da sua carreira.Concerto de DvořakLiverpool Post, 17 de novembro de 1926:“Mme. Suggia, que tocou no Concerto da Filarmónica na noite passada, tem sempre a certeza de uma audiência entusiástica. Seja qual for o significado do termo, ela aparece como uma das artistas mais temperamentais do mundo dos concertos. A noite passada apresentou-se absolutamente no melhor da sua forma, tocando o Concerto de Dvořak com beleza extraordinária de estilo. O seu triunfo junto da audiência foi completo”.Manchester City News, 19 de novembro de 1926:“A beleza de execução de Mme. Guilhermina Suggia poderia transformar em algo atraente a mais árida das melodias: quando a sua arte é utilizada em peça tão bela como o Concerto para Violoncelo de Dvořak, o efeito é supremamente inebriante. Nada mais perfeito no género foi ouvido, quanto a nós, em nenhum concerto Hallé, nos últimos anos, do que a interpretação que Mme. Suggia deu do andamento de abertura e do “adagio” deste concerto para violoncelo no programa de 5ª feira”. The Times, 25 de março de 1931:“Grande é Suggia e o seu violoncelo. Suggia, artista incomparável, inimitável mulher-espectáculo. Suggia tomou o violoncelo nos seus braços num poderoso gesto. Ele tornou-se parte dela. Uma viragem da sua cabeça na direcção do maestro e lá vamos nós. O violoncelo responde a todas as suas carícias. Ele acompanha-a à medida que ela oscila de um lado para outro. Ela inclina-se ligeiramente para trás e recupera forças como a prima donna na ópera e exterioriza as mais graves notas com uma profundidade de sentimento harmoniosa, a qual vem directamente do tom de toda a orquestra. (...) Agora ela está a ter e a dar inspiração ao maestro. Olha para ele através do seu instrumento, com admiração e alegria. (...) Nós vemos os executantes de cello na orquestra inclinados para a frente com as cabeças curvadas e expressões tensas, perdidos na admiração desta grande mestre do seu ofício. Acabando num acesso de glória ela retira-se do palco. A audiência reclamou-a outra vez e outra vez”.Musical Opinion, maio de 1931:“Diz-se que a interpretação de Suggia do Concerto de Dvořak foi uma visão de rara beleza. Jamais ouvimos o fascinante segundo tema do primeiro andamento tocado com tal sentimento, de acordo com as suas qualidades românticas e ao mesmo tempo com tal recato. Nunca se sabe antecipadamente que particular momento de uma peça receberá o toque inesperado da temperamental Suggia”.Concerto de SchumannSunday Times, 8 de fevereiro de 1920:“É quase impossível encontrar algo de novo a dizer sobre a arte de Madame Suggia, mas todas as suas aparições são um fresco deleite. A sua leitura do Concerto para Violoncelo de Schumann foi absolutamente subjugadora, não tanto pela perfeição do fraseado e beleza do tom, como pela impressão que se sentiu de que Mme. Suggia estava absolutamente vivendo na música”.The Daily Mail, 27 de outubro de 1922:“Suggia é soberbamente temperamental, sendo sempre ela que dirige o seu temperamento, sem nunca ser dirigida por ele. No Concerto de Schumann anima com o fogo da sua personalidade o que de outro modo ficaria morto; com a esplêndida largueza de arco e a vivacidade do seu som, Suggia dá alento e brilho à peça”.Concerto de HaydnMusical Opinion, outubro de 1930:“O mais marcante momento do programa foi a interpretação soberba de Madame Suggia do Concerto em Ré M para Violoncelo e Orquestra de Haydn. Não tinha ouvido tocar assim violoncelo desde que ouvi a última vez Casals; perfeição é a única palavra para isto, dizer mais alguma coisa seria supérfluo”.The Times, janeiro de 1935:“O Concerto em Ré para Violoncelo e Orquestra de Haydn raramente soou tão belo como nesta ocasião, tocado como foi pelo magnífico virtuosismo e, ao mesmo tempo, pela mais íntima simbiose por Madame Suggia, a ligação entre solo e orquestra foi perfeita”.Concerto de Saint-SaënsMusical Opinion, 9 de março de 1917:“A actuação de Mlle. Suggia revelou toda a grandeza. Ela executou Saint-Saëns não da maneira alemã, mas sim da francesa, mostrando todas as suas boas qualidades, toda a sua amabilidade, a sua cortesia, a sua agudeza de espírito e o requinte de execução no qual estas graças vivem sem sobrecarregar a música com sentimentos tensos. As Variações de Böllmann possuem mais exuberância de expressão e de estilo e nestas Mme. Suggia colocou em realce uma energia apropriada, dando mesmo o toque do estilo satânico ao qual conduz a originalidade da música”.Daily Telegraph, 23 de outubro de 1930:“Mme. Suggia executou a sua parte do Concerto como se toda a literatura da música para violoncelo nunca tivesse sustentado nada tão divino. Ela parecia, igualmente, inspirar a orquestra (Orquestra Sinfónica da BBC, dirigida por Sir Adrian Boult) com o mesmo sentimento”.Musical Opinion, março de 1936:“Não houve efeitos, nem distorsões rítmicas, nem ênfases exagerados de qualquer espécie: houve uma absoluta precisão técnica, uma constante perfeição da entoação e toda a peça foi envolvida com luminosidade e frescura”.Concerto de LaloSeara Nova, 5 de junho de 1943:“S. Carlos – 4º Concerto da Orquestra Sinfónica NacionalSuggia é uma grande e extraordinária artista: isto vale dizer tudo. A sua interpretação do Concerto de Lalo foi de uma qualidade de estilo única, de uma eloquência generosa, no 1º andamento, de uma qualidade de som encantadora no 2º e de uma graça e vivacidade insuperáveis no último. Sempre perfeita, sempre elegante, sempre de uma sedução sem par, Suggia deu-nos ainda o Kol Nidrei de Max Bruch, o Allegro Apassionato de Saint-Saëns, a Peça em Forma de Habanera de Ravel e a Dança do Fogo do Amor Brujo de Falla. Extra programa e correspondendo ao entusiasmo do público, executou a ilustre violoncelista o Zapateado de Sarasate e uma Suite para Violoncelo Solo de Bach, onde subiu às culminâncias da grande arte”.Concerto de ElgarRepública, 16 de fevereiro de 1946:“(...) a colossal artista emocionou e encantou a assistência, que lhe fez justamente uma verdadeira apoteose. Tocou o Concerto em Mi menor de Elgar com a sua arcada que arrebata, com o brio e a expressão que só ela possui e ouvido em religioso silêncio, teve aplausos intermináveis, tendo de repetir o último andamento...”.Suites para Violoncelo Solo de BachArts Gazette, 29 de novembro de 1919:“Para mim ela foi sempre uma violoncelista incomparável, mas o que nos deu em Boccherini, em Huré e especialmente em Bach, foi a execução duma grande artista. A sensualidade do seu tom passou a uma sobriedade de paixão serena. O modo como toca é não só de uma beleza sem falhas, como tem o auto-domínio sem o qual nenhuma arte pode viver. A precisão dos contornos e ritmos em Bach, o charme delicado em Boccherini, o sonho em Hauré – nada mais perfeito poderia imaginar-se”.Sunday Times, 12 de novembro de 1924:“Ela alcança provavelmente o seu melhor nas Suites de Bach, onde nenhum conjunto de sons orquestrais ou de piano vêm escurecer a insuperável beleza do seu tom. Tem-se dito acerca dela que consegue fazer vibrar a sua audiência através da mera execução de uma vulgar escala, o que dificilmente constitui um exagero”.Glasgow Evening Standard, 22 de outubro de 1926:“Tudo o que possa ser dito acerca de Mme. Suggia já foi provavelmente dito muitas vezes. É assim quase suficiente afirmar que Mme. Suggia estava na sua melhor forma. Admirava-se a um tempo, o fraseamento, o tom delicado e calmo e a articulação quase humana do instrumento. Foi, contudo, talvez no seu Bach a solo que a sua musicalidade atingiu o mais alto nível. Em suma, Mme. Suggia obrigou-nos uma vez mais a tomar consciência de tudo o que o seu nome significa no mundo da música”.Oxford Mail, 5 de dezembro de 1930: “Uma actuação magistral. A violoncelista deu-nos uma interpretação particularmente notável das duas danças e da giga [da Suite nº 4 em mi bemol maior]”.Bibliografia:CLÁUDIO, Mário, Guilhermina, INCM, Lisboa, 1986.POMBO, Fátima, Guilhermina Suggia ou o Violoncelo Luxuriante, edição português / inglês, Fundação Eng.º António de Almeida, Porto, 1993.POMBO, Fátima, A Sonata de Sempre, Edições Afrontamento, Porto, 1996.

Hernâni Cidade

Hernâni Cidade
Hernâni Cidade, por Helena Cidade Moura Professor, ensaísta, historiador, crítico literário, Hernâni António Cidade (1887-1975) era natural do Redondo, distrito de Évora. Seu pai, António Cidade, era carpinteiro de carros e foi ao som da “orquestra da serra e do malho” que Hernâni cidade disse ter aprendido a exatidão do trabalho, o valor do esforço, o sagrado cumprimento das tarefas. António Cidade, para além de artífice, cantava baladas e histórias, recitava versos de Augusto Gil, Guerra Junqueiro, António Nobre: à noite, ao serão, envolvia os filhos e os netos naquele universalismo alentejano, onde ressoava ainda a estepe, há pouco desaparecida.Hernâni Cidade, sem jeito para as artes do ferro, franzino demais para as tarefas do campo, dado mais às letras e à Escola foi aceite no Seminário de Évora, onde se mostraria aluno brilhante, e onde sentiu, disse-mo várias vezes, a alegria enorme de uma grande fé.Acabada no Seminário de Évora a primeira etapa da sua formação, foi escolhido para seguir estudos na Universidade Gregoriana de Roma; mas, abalado intelectualmente na sua fé pelas leituras mais recentes (o pequeno caixote de livros que trouxe do Seminário continha Bakunine, Marx, Engels, Pesttalozzi, Gorki), dividido entre um crescente agnosticismo intelectual, uma sensibilidade religiosa que o acompanhou até à morte e uma gratidão imensa ao Seminário que gratuitamente lhe dera a possibilidade de estudar, escolheu o caminho da lealdade, expondo ao arcebispo, D. José Eduardo Nunes, o seu desejo de frequentar a Universidade e seguir a vida laica. Também aí o Seminário o respeitou como Homem e generosamente lhe concedeu que ficasse os meses necessários para obter a equivalência ao ensino secundário oficial.Foi como Prefeito do Colégio Calipolense e como explicador particular que fez o Curso Superior de Letras e obteve, com distinção, a habilitação para o Magistério Secundário.Tomou posse como professor efetivo no liceu de Leiria a 9 de novembro de 1914. Durante os anos que permaneceu neste liceu, foi professor de língua e de literatura portuguesas e os apontamentos minuciosos de então revelam tanto o aprofundamento meticuloso dum estudo sério, como o entusiasmo de servir os alunos e a comunidade, na convicção de que a “obra de arte é revelação individual e colectiva”. Foi coerentemente intensa a sua participação na vida da cidade e nos seus problemas, escrevendo mesmo uma peça de teatro, A Zara, representada a favor da reconstrução do Castelo de Leiria.Em 26 de outubro de 1916, mobilizado, como cabo, porque sabia ler e escrever, participou, na Primeira Guerra Mundial, com grande firmeza e sentido do dever, distinguindo-se, sobretudo pela sua coragem ao serviço da paz e da dignidade humana: em 14 de agosto de 1917, apenas com três soldados, atravessa a terra de ninguém, debaixo de fogo, e vai às linhas alemãs buscar os soldados portugueses feitos prisioneiros num raid inimigo. Foi-lhe atribuída a Cruz de Guerra. Vai também debaixo de fogo à terra de ninguém buscar um alemão ferido que traz para o abrigo português; em sinal de gratidão o soldado moribundo ofereceu-lhe o cinturão e o sabre, que toda a vida conservou pendurado na estante por detrás da sua mesa de trabalho. Esse troféu da Paz pertence hoje ao seu bisneto mais velho, Miguel Moura. Preso pelos alemães, depois da batalha de 9 de abril de 1918, continua a sua catequese cívica, no campo dos oficiais prisioneiros. Não só prossegue o estudo do alemão, como organiza aos Domingos conferências sobre literatura portuguesa, lutando contra a degradação humana provocada pelo cativeiro. A primeira Conferência chama-se “Camões, Poeta Europeu”, visa a “ampliação moral e intelectual” da civilização europeia e situa Camões e Portugal. «Ao Domingo prega o Cidade…», diziam os colegas.Foi neste esforço solidário que encontrou a sua vocação de professor universitário. Em 1919 inicia, por convite, a sua docência na Faculdade de Letras do Porto, aí se mantendo até 1930, data em que Salazar resolveu apagar esse foco de inovação, onde a liberdade de pensamento resistia.Convidado a ingressar na Faculdade de Letras de Lisboa, pede a abertura de concurso, a que concorre, sendo aprovado por unanimidade. Para trás, ficava vincada uma forte experiência de grupo, de camaradagem e de ideal, expressa na sua colaboração na revista Águia e no movimento da Renascença Portuguesa. O seu livro Ensaio sobre a Crise Mental do Séc. XVIII - editado pela Imprensa da Universidade da Coimbra, em 1929, fruto, como todos os seus livros, das aulas dadas - testemunha a dialética do quotidiano transportada para o século XVIII onde se debatia uma “atitude intelectual da Idade Média que teimava em aqui persistir e a atitude intelectual do mundo contemporâneo de quem não podia deixar de ver o triunfo definitivo”. Hernâni Cidade considerava este, o seu «livro mais interessante».Neste período, a correspondência assídua com Joaquim de Carvalho, António Sérgio, Newton de Macedo, Câmara Reis, e a amizade íntima com o Dr. Santos Silva, seu padrinho de casamento, marcaram uma fase de luta contra a implantação do regime, luta que profundas divisões foram enfraquecendo. A vinda para Lisboa, apesar dos contactos com o grupo da Seara Nova, mas também com Fidelino de Figueiredo, António Sérgio, o Padre Joaquim Alves Correia (que vinha ao Domingo ler o Evangelho a sua casa), Augusto Casimiro, Alberto Candeias, marca um afastamento da luta política. Em 1934, a condenação do Diário Liberal, em ação movida pelo jornal O Século, marcou uma época de expressiva solidariedade. Conhecida a sentença condenatória, a sua casa encheu-se de flores, de amigos e de alunos que aproveitaram o ensejo para a publicação do livro Homenagem a Azevedo Gomes, Hernâni Cidade, Joaquim de Carvalho, editado pelos alunos da Universidade de Coimbra, Faculdade de Letras de Lisboa e Instituto Superior de Agronomia. No manifesto se entende que esta é uma primeira tentativa de organizar e dar expressão ao descontentamento dos jovens universitários portugueses. Tendo sido em 1935 retirado da lista dos professores universitários demitidos, por intervenção direta, junto de Salazar, do Prof. Cordeiro Ramos, consagra-se inteiramente à vida universitária, mantendo, porém, uma forte solidariedade cívica, ora discreta ora pública, quando necessária. Foi agraciado pela França em 1956 com a Legião de Honra. Já no fim da vida aceitou a condecoração da Ordem da Santiago, tendo as insígnias sido oferecidas pelo Povo do Redondo, por subscrição pública, onde o donativo máximo de cada um era de 50 centavos.Para além da soma imensa de trabalho, de estudo e de reflexão que constrói a sua obra, o que de mais relevante ela trouxe é a sua modernidade intrínseca, o seu contexto sociológico, o aspeto vivo e global da sua comunicação, mais evidente em Tendências do Lirismo Contemporâneo (1939) Conceito de Poesia como Expressão de Cultura (1945) Portugal Histórico-Cultural (1947) Literatura Autonomista sobre os Filipes (1948), mas sempre presente numa dialogante e dialética forma de viver a expressão artística. António Sérgio e Hernâni Cidade trouxeram, por vias diferentes, Luís de Camões, para o mundo comum e ainda hoje as obras Camões Lírico e Camões Épico são das mais vendidas. À Marquesa de Alorna, a Bocage, ao Padre António Vieira e à sua Defesa perante o Tribunal do Santo Ofício devemos imagens literárias e humanas que prolongaram o seu diálogo com a vida porque, como ele afirmava: “Primeiro está a aula e depois o capítulo”.Esta sua responsabilidade cívica, de exatidão e cumprimento do dever, socialmente entendido, marcou a clareza da sua inteligência e o exemplo raro da sua profunda honestidade intelectual e afetiva. Em 1972, quando se comemorou mais um centenário da publicação de Os Lusíadas, Hernâni Cidade entendeu fazer uma edição reduzida para as escolas, em que os resumos em Apêndice foram feitos por ele próprio; a edição era também da Imprensa Nacional. Em 1975, tanto eu como minha irmã prescindimos dos Direitos de Autor, para que a obra tivesse uma edição escolar. Nada foi possível. Estávamos todos unidos no Ideal da Liberdade, mas os caminhos para lá chegarmos revelavam experiências de vida muito diferentes.Hoje que a iliteracia rói a nossa Liberdade, nos diminui como Povo e afeta profundamente a nossa Democracia e a nossa rentabilidade, será altura de repensarmos na dinâmica cultural que a resistência ao Fascismo, nos legou.BIBLIOGRAFIA PRINCIPAL:ATIVA:Ensaio sobre a Crise Mental do Século XVIII (1929)A Obra Poética do Dr. José Anastácio da Cunha (1930)Lições de Cultura e Literatura Portuguesas (2 vol.; 1933, 1959)Luís de Camões. I - O Lírico (1936)Bocage (1936)Poesias da Marquesa de Alorna (pref. e notas; 1941)Padre António Vieira, Estudo Biográfico e Crítico, seguido de 3 vol. de sermões (1941)A Literatura Portuguesa e a Expansão Ultramarina (1943)O Conceito de Cultura como Expressão de Cultura - Sua Evolução através da Literatura Portuguesa e Brasileira (1945)Luís de Camões. II - O Épico (1950)A Defesa do Pe. António Vieira perante a Inquisição (pref. e notas; 2 vol.; 1952)Luís de Camões. III - Os Autos e o Teatro do seu Tempo. As Cartas e o seu Conteúdo Biográfico (1956)Portugal Histórico-Cultural (1957)Lições de Cultura Luso-Brasileira. Épocas e Estilos, na Literatura e nas Artes Plásticas (1960)Antero de Quental. A Obra e o Homem (s/d)Luís de Camões. A Obra e o Homem (1957)Padre António Vieira. A Obra e o Homem (1964)Bocage. A Obra e o Homem (1965)PASSIVA:Miscelânia de Estudos, em honra do Prof. Hernâni Cidade (1957)Colóquio/Letras, nº 96, (Março-Abril de 1987), com artigos de Cleonice Berardinelli e Maria de Lourdes Belchior no centenário de Hernâni Cidade.

Jacinto Prado Coelho

Jacinto Prado Coelho
Jacinto Prado Coelho, por Maria de Lourdes A. FerrazJacinto Almeida do Prado Coelho nasceu (1-9-1920) e morreu (19-5-1984) em Lisboa onde sempre viveu. Licenciou-se em Filologia Românica na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa e aí exerceu, durante quarenta anos, a sua principal tarefa de Professor. Filho de um Professor de Liceu, António do Prado Coelho, que publicou ensaios de crítica literária, pode bem dizer-se que a literatura foi a casa (e a Causa) vital de J.P.C. Com efeito, entre os 15 e os 16 anos tinha já uma produção poética, narrativa e até ensaística muito ativa, como Luís Amaro refere na Bibliografia detalhada que preparou para o volume de Homenagem a J.P.C., Afecto às Letras.Mas é o seu intenso percurso universitário que revela desde cedo uma plena maturidade difícil de atingir no campo das humanidades. O seu doutoramento antes dos 27 anos mostra-o já muito seguro do caminho a percorrer quando, ao propor-se estudar a obra de Camilo Castelo Branco, no que designa apenas uma Introdução, desenvolve um amplo conhecimento de “como nasce e cresce e se transforma a novela camiliana” nas suas “vicissitudes biográficas”, “ambiente cultural”, considerando, também, a história do “género novelístico antes de Camilo e as possíveis influências directas de autores estrangeiros e nacionais”. Tendo em conta, quanto mais não seja, a quantiosa produção especificamente camiliana e não só, pode avaliar-se as capacidades que este trabalho exigiu. Poucos anos depois (1951), no concurso para Professor Extraordinário, apresentou, pela primeira vez na Universidade, um estudo sobre Fernando Pessoa, onde, mais uma vez, para além da obra de Pessoa (inédita então em grande parte), se percebe, apesar da contenção que o poder de síntese requeria, o seu amplo domínio da literatura em sentido lato, sem em nada perder a clareza da exposição. Com pouco mais de 30 anos (1953) ascende a Professor Catedrático e já nessa altura a sua bibliografia se apresenta muito promissora no que à Literatura Portuguesa diz respeito, com estudos e antologias de autores do Romantismo, de Fialho de Almeida e de Pascoaes, por exemplo.Até 1984 não deixou nunca de se dedicar a tarefas que demonstraram sempre a sua placidez e tolerância aliadas a uma exigência de trabalho aturado e rigoroso, um lúcido e visível escrúpulo no dar a conhecer uma investigação variada que tanto privilegiava autores maiores (Camões, Garrett, Cesário, por exemplo) como autores ditos menores (João Xavier de Matos em particular e o sec. XVIII português em geral), tanto quanto autores quase desconhecidos (Matias Aires, Francisco Dias Gomes). Não há, pode dizer-se, autor ou época da Literatura Portuguesa que desconhecesse. Por isso ninguém mais capaz de harmoniosamente aliar o ensino na Universidade com atividades congéneres. Publicou textos, pouco acessíveis ao grande público, de autores do sec. XVIII, XIX e XX (cf. Bibliografia) que antecedia de cuidadosa apresentação e estudo.Pertenceu à Sociedade Portuguesa de Escritores, de que foi Presidente até ao seu encerramento em 1965; foi codirector, primeiro, e diretor, depois, da Revista Colóquio/ Letras, da Fundação Calouste Gulbenkian, membro de várias Academias como a Academia das Ciências de que foi presidente e vice-presidente, Academia Brasileira de Letras, a Real Academia Galega, e Sociedades como a Hispanic Society, a Associação Internacional de Críticos Literários de que foi vice-presidente (e presidente do Centro Português da mesma Associação). Estas atividades não foram incompatíveis com o ingente trabalho de execução (encarregou-se de inúmeras e múltiplas entradas), coordenação e publicação do Dicionário das Literaturas Portuguesa, Galega e Brasileira, com reedições várias entre 1960 e 83, trabalho sempre em aberto, pois título e número de volumes foram, o primeiro, ligeiramente alterado e os segundos substancialmente aumentados. Não admira que, com tão intenso e constante labor, tivesse assumido desde muito cedo a existência e necessidade da literatura como uma realidade imperiosa na sua evidência estética, ainda que multímoda e complexa. Se começou com um trabalho intitulado A Educação do Sentimento Poético (1944), o ensino da literatura não deu explicitamente azo a muitos trabalhos, mas condicionou, como pressuposto, todos os seus estudos. Privilegiou uma escrita que demonstrava, pela sua clareza, uma preocupação didática e mostrou assim que a pertinente atenção ao valor da literatura, era não só um serviço de justiça à arte a que se dedicava, mas uma função pedagógica em vista ao equilíbrio que lhe competia desenvolver. Com efeito, no capítulo de Ao Contrário de Penélope, intitulado “Como Ensinar Literatura”, desenvolve um pensamento que não deixa lugar a dúvidas quanto à sua conceção de literatura e ao modo como sempre encarou a sua responsabilidade docente: “Ler colectivamente (em diálogo com a obra literária, em diálogo de leitor com outros leitores) é, com efeito, além de prazer estético, um modo apaixonante de conhecimento [...] Não há, suponho, disciplina mais formativa que a do ensino da literatura [...] Saber idiomático, experiência prática e vital, sensibilidade, gosto, capacidade de ver, fantasia, espírito crítico – a tudo isto faz apelo a obra literária, tudo isto o seu estudo mobiliza. [...] A literatura não se faz para ensinar: é a reflexão sobre a literatura que nos ensina”. Elucidativos excertos que vêm coroar conceitos e práticas desenvolvidas durante toda uma vida.Apesar de o sec. XX ter sido atravessado por inúmeras controvérsias acerca da literatura e das metodologias mais convenientes ao seu estudo, de posse desse conhecimento, J.P.C. manteve princípos e conceitos que orientaram o seu trabalho: a literatura como produção estética em forma de linguagem (sem que isso implicasse aderir a meros formalismos); a literatura como organismo desenvolvido em sistemas - os géneros, por exemplo - sem que isso implicasse a redução da leitura a esquemas sistemáticos; a possibilidade de múltiplas aproximações à literatura e portanto a aceitação de metodologias diversas não exclusivas.Classificava a sua leitura crítica do texto literário como “leitura imanente” (termo comum no sec. XX em teorias advogadas quer pela Estilística, quer pelo, assim designado, New Criticism, quer pelo Formalismo Russo) o que correspondia a uma consideração da obra literária enquanto tal, e não enquanto documento social ou biográfico, embora considerasse que o conhecimento do autor, da sua biografia, do seu enquadramento cultural, ajudava a essa leitura. Na apreciação e análise dos textos literários reconhecia (como quase inevitável) a qualidade de constituirem um todo coerente e uno. A propósito de Fernando Pessoa, por exemplo, afirmava no prefácio que antecede o estudo que lhe dedicou: “a própria diversidade [...] vale como expressão dramática de identidade”.[...] “expressão dramática” é já em si uma forma de expressão, implica uma representação cénica, a certeza de que a expressão literária (ou poesia) não existe senão em forma de”. Por outras palavras, a coerência e unidade da obra com valor estético não se opõe a uma ambiguidade e fluidez significativa. Ou ainda, a complexidade da literatura é inerente à sua própria condição estética de ser linguagem; sem que, no entanto, essa condição obrigue a um absoluto caráter intransitivo da literatura – o seu ensimesmamento – ou se torne o caminho para uma leitura desconstrutiva que o seu tempo não chegou a conhecer como prática metodológica.Situado metodologicamente entre a História Literária, tal como o Romantismo e sucedâneos do fim do sec. XIX e primeira metade do sec. XX a foram entendendo, e a reação a essa metodologia, corporizada em todas as teorias do sec. XX que enfatizavam o estudo da literatura em si, J.P.C. esclareceu, mais do que uma vez, mas claramente em ensaio sobremaneira dedicado ao assunto, a importância que dava à questão e o modo como a entendia. Corrigiu qualquer apreço por um biografismo feito de petits faits, bem assim como a utilização pura e simples da literatura como documento de época ou autor. No entanto nunca desligou o conhecimento da literatura do conhecimento da história que a enquadrava.Interrogando-se sobre a “actualidade” de um poeta do passado – no caso exemplar Camões – admite que a sua qualidade estética lhe permite ascender ao estatuto de ser temporal e intemporal. Digamos que a questão envolve dois atores principais: o autor- texto na sua qualidade estética e o leitor como recetor atual que recria o que recebe. Esta consideração dialogal (no ser bifronte que é a literatura, segundo o seu ponto de vista) levou-o a enquadrar progressivamente a atividade da leitura na perspetiva de uma estética da receção, o que metodologicamente foi colher aos estudos de receção da Escola alemã de Constança, nomeadamente aos trabalhos de Hans Robert Jauss. Esta conceção metodológica levou-o a sublinhar progressivamente a questão do leitor e da leitura ao ponto de ter organizado durante alguns anos um projeto sob o signo da sociologia da literatura (cf. Problemática da Leitura – aspetos sociológicos e pedagógicos).A última recolha de ensaios, publicada sob o título Camões e Pessoa, Poetas da Utopia, é bem reveladora da atenção que deu aos trabalhos de Jauss, sem contudo aplicar ipsis verbis a sua metodologia. Neste livro, recolha de ensaios vários sob o signo de dois poetas maiores da Literatura Portuguesa, J.P.C. assume a utopia como “categoria mental” e aposta no futuro da literatura tanto quanto nos valores do seu passado. “A literatura é o espaço da utopia” diz, e continua, “Com efeito tal como a utopia, o lugar da poesia ou da ficção é o lugar inexistente em que, de modo implícito ou direto, o lugar-aqui se projeta”.Quanto à sua Causa, sempre inacabada e também ela utópica, declara nesse mesmo último livro de uma forma quase inédita no seu percurso de recatado estudioso: “Escrevo por necessidade de evasão, para ver mais claro, para prolongar o exercício da leitura, para me aproximar dos outros, para os influenciar, para substituir a vida, para me sentir vivo. [...] Se alguma coisa aprendi (julguei aprender) ao longo dos anos foi a importância do irracional em mim e nos outros, quanto há de imprevisível nos comportamentos, como é problemática toda a possível verdade – e recordei que em mim a tolerância se antecipou a esse aprendizado, em vez de logicamente ir resultando dele. O perspectivismo, o jogo de espelhos ganharam a minha simpatia”.Morreu muito cedo J.P.Coelho, ele que sentia não ter passado “dos vinte”. Numa interrogação retórica, deixa como herança de juventude uma inextinguível paixão pela literatura e pela vida: “Como é que por fora me podem ver diferente da minha verdade inalterável, tecido que sou de incompletude e esperança, de inquietude e ânsia de mais? Terei construído no subconsciente, para meu próprio uso, uma intemporal imagem utópica? Ou será na chamada utopia que a minha verdade mais autêntica se afirma, contra as ilusórias evidências em que os outros se fundamentam?”a.Bibliografia das obras principais, por ordem cronológica:A Educação do Sentimento Poético, Coimbra: Coimbra Editora, 1944. A Poesia de Teixeira de Pascoaes, Ensaio e Antologia, Coimbra: Atlântida, 1945Introdução ao Estudo da Novela Camiliana, Coimbra:Col.Atlântida,1946; 2ªed., 2vols., Lisboa: INCM, 1982 e 1983.Diversidade e Unidade em Fernando Pessoa, Lisboa: Revista Ocidente, 1951; 2ªed., Lisboa: Editorial Verbo, 1963; ... 7ª edição, 1982.Dicionário das Literaturas Portuguesa, Galega e Brasileira, (Direção J.P.C.), Porto: Liv. Figueirinhas, 1960; 2ªed., Dicionário de Literatura. Literatura Portuguesa, Literatura Brasileira e Literatura Galega, Estilística Literária, 2vols, 1971; 5vols, 1973; 7ª reimp., 1983.Camilo Castelo Branco, Obra Seleta, 2 vols., Rio de Janeiro: Editora José Aguilar, 1960.Poetas Pré-Românticos, Coimbra: Atlântida, 1961.Problemática da História Literária, Lisboa: Edições Ática, 1961; 2ª ed., s.d.[1972].Contos de Camilo Castelo Branco, Seleção, prefácio e notas, Lisboa: Editorial Verbo, 1961.Poetas do Romantismo, Seleção, introdução e notas, 2vols., Lisboa: Liv. Clássica Editora, 1965.Teixeira de Pascoaes, Obras Completas, Lisboa: Liv. Bertrand, 7 vols – [1965-1975]Fernando Pessoa, Páginas de Estética e de Teoria e Crítica Literárias, (com Georg Rudolf Lind), Lisboa: Ed. Ática, s.d. [1967]A Letra e o Leitor, Lisboa: Portugália Editora, 1969; 2ªed., Lisboa: Moraes Editores, 1977.Ao Contrário de Penélope, Lisboa: Livraria Bertrand, 1976.Matias Aires, Reflexões sobre a Vaidade dos Homens, (com Violeta Crespo Figueiredo), Lisboa: INCM, 1980.Problemática da Leitura – aspetos sociológicos e pedagógicos, [com AAVV], Lisboa:INIC [InstitutoNacional de Investigação Científica], 1980.Fernando Pessoa, Livro do Desassossego por Bernardo Soares. Recolha e transcrição dos textos: Maria Aliete Galhoz, Teresa Sobral Cunha, 2vols., Lisboa: Ática, 1982.Originalidade da Literatura Portuguesa, Lisboa: Instituto de Cultura e Língua Portuguesa, 1977; 2ª ed., 1983.Camões e Pessoa, Poetas da Utopia, Lisboa: Publicações Europa-América, 1984.Nota: Para uma consulta exaustiva, ver Afeto às Letras. Homenagem da Literatura Portuguesa Contemporânea a Jacinto do Prado Coelho, Lisboa, INCM, 1984.

João Gaspar Simões

João Gaspar Simões
João Gaspar Simões, por Eugénio LisboaConsiderado por Mário Sacramento como “o primeiro grande crítico da nossa história das letras” e por José Cardoso Pires como aquele que “abriu o capítulo da Crítica numa literatura onde apenas se assinalavam rasgos de polémica ocasional, desde José Agostinho de Macedo ao republicano Alexandre da Conceição, com desgarradas passagens por Eça, Camilo, Ramalho, etc.”, para depois, “pegar no exemplo de Moniz Barreto com vista a uma actividade regular da crítica; e nobilitá-la; e persistir nela ao longo de cerca de quarenta anos”, João Gaspar Simões (n. Figueira da Foz, 25. 2.1903 – m. Lisboa, 6.1.1987) foi, de facto, em que pese o ressabiamento mal escondido de tantos que nunca lhe perdoaram os arranhões (quiçá injustos) neles deixados pelo autor de Liberdade de Espírito (1948), a mais substancial e persistente figura de crítico de toda a nossa história literária.Na Figueira da Foz, recebe a instrução primária num colégio dirigido por Eloy do Amaral, que lhe dará os primeiros estímulos para a leitura de obras literárias. O pai manda-o depois para Coimbra, onde, no Liceu José Falcão, completa a educação secundária, tendo, como condiscípulo, Branquinho da Fonseca. A ideia do pai, João Simões, comerciante, é atrair o filho, completada a sua educação liceal, para uma carreira comercial, mas J.G.S. procura esquivar-se, indo cursar Direito, com mira numa eventual “carreira diplomática” (a qual seduzirá outros como Albano Nogueira e Guilherme de Castilho). Em 1921 matricula-se, pois, em Direito, curso que abomina, desleixa e interrompe, vindo só a concluí-lo em 1932. Dá-se sobretudo à boémia estudantil de cariz intelectual, frequenta tertúlias e, com Afonso Duarte, António de Sousa, Branquinho da Fonseca, Campos de Figueiredo e Vitorino Nemésio funda a revista Tríptico, em 1924, na qual colaborará, lado a lado com, além dos escritores citados, Aquilino Ribeiro, Augusto Casimiro, José Régio, Alberto de Serpa, Raul Brandão e Teixeira de Pascoaes, entre outros.Em 1926, com 23 anos, e ainda estudante, casa, em Coimbra, com Mécia de Vasconcelos Gonçalves, com quem, mais tarde (1941) traduzirá o romance Jane Eyre, de Charlotte Brontë.Em 1927, com José Régio e Branquinho da Fonseca – e residindo, nessa altura, na Figueira da Foz, mas encontrando-se todas as semanas com Régio, no Café Central, em Coimbra – J.G.S. funda a revista presença, subintitulada “Folha de Arte e Crítica”, cujo primeiro número verá a luz em 10 de março de 1927 e durará até 1940. Com Régio, João Gaspar Simões constituirá o núcleo que estará com a revista, desde o primeiro ao último número. Estudando com inteligência e articulação os grandes nomes do primeiro modernismo (Fernando Pessoa, Mário de Sá-Carneiro e Almada Negreiros), divulgando-os e promovendo, de caminho, um leque de novos valores, além de dedicar atenção crítica ao cinema, às artes plásticas e à filosofia, a presença afirmou-se, sobretudo devido à ação de Régio, Simões e Casais Monteiro (este, a partir de 1930, quando sai da direção Branquinho da Fonseca) um dos mais sólidos veículos de cultura da primeira metade do século XX.Crítico intuitivo, sem os poderes de análise e de teorização do seu camarada mais velho (Régio), João Gaspar Simões afirmar-se-á, contudo, sobretudo a partir da sua contribuição regular (semanal) no Diário de Lisboa e, depois, no Mundo Literário, no Átomo, no Diário de Notícias, como o mais empenhado e assíduo “reviewer” de toda a nossa história literária. Tem-lhe sido assacado, com frequência, todo um leque de inapetências: teórica, filosófica, etc. E a “tarte à la crême” dos seus críticos foi atirarem-lhe à cara as contradições em que por vezes caía. A este propósito, já tivemos ocasião de lembrar o aviso de Pascal, segundo o qual, “a contradição não é um sinal de falsidade, do mesmo modo que a ausência de contradição não é um sinal de verdade.”Leitor omnívoro e espírito independente, a sua frontalidade e o seu gosto certeiro fizeram-lhe uma profusão de amigos e admiradores e uma não menor profusão de inimigos e detratores. Mas a afirmação de David Mourão-Ferreira, segundo o qual o autor de Novos Temas (1938) se teria evidenciado, “com isenção e independência exemplares, a própria consciência da literatura”, ainda hoje se tem de pé.João Gaspar Simões, ao contrário de todos os outros codiretores da presença, nunca fez qualquer incursão pelo território da poesia. E o seu teatro – O Vestido de Noiva (1952) e Marcha Nupcial (s.d., 1964) – não tem condições de perdurabilidade. Mas já, no domínio do romance, do conto e da novela, deixou obras significativas, que são, provavelmente, marcos duradouros: Elói ou Romance numa Cabeça (1932); Pântano (1940); Amigos Sinceros (1941); A Unha Quebrada (1941) e Internato (1946). Dando à psicologia – com José Régio –, na ficção, uma importância que ela até aí não tivera, isto mesmo lhe (lhes) valeu a incompreensível acusação de “excesso de psicologismo”...No setor da biografia, em que pesem as reservas que se lhe possam pôr, deixou-nos duas obras que são, ainda hoje, de referência obrigatória: Eça de Queirós, o Homem e o Artista (1945) e Vida e Obra de Fernando Pessoa (1950). __________________________________ Obras principais (além das já citadas):Ficção:Uma História de Província, I – Os Amores Infelizes (romance), 1934.; Uma História de Província, II – Vida Conjugal (romance), 1936.; A Unha Quebrada (novelas), 1941; O Marido Fiel, (romance) 1942; As Mãos e as Luvas (Retrato em Corpo Inteiro) – romance – 1942. Teatro:Teatro (Jantar de Família, Tem a palavra o Diabo, Uma Mulher sem Passado), 1953.Ensaio e Crítica:Temas,1929; O Mistério da Poesia, 1931; Tendências do Romance Contemporâneo, 1933; António Nobre, Precursor da Poesia Moderna (Com uma breve antologia),1939; Crítica I – A Prosa e o Romance Contemporâneos, 1942; Caderno de um Romancista, 1942; Perspectiva da Literatura Portuguesa do século XIX( Direção, Prefácio e Notas Bibiográficas de J.G.S.) – Vol. I, 1947; Vol II, 1948; A Arte de Escrever Romances, 1947; Liberdade do Espírito, 1948; Natureza e Função da Literatura, 1948; Garrett (Homenagem do Ateneu Comercial do Porto, contendo quatro conferências de João Gaspar Simões) 1954; Garrett - Biografia, exame crítico e antologia (na colecção «Poetas de Ontem e de Hoje», 1954; História da Poesia Portuguesa (das Origens aos nossos Dias), acompanhada de uma Antologia, Volume I, 1955; Volume II, 1956; Volume III, 1959; História do Movimento da «Presença» (seguida de uma Antologia), 1958; Interpretações Literárias (seis ensaios acerca de Balzac, Tolstoi, Jorge de Lima, Júlio Dinis, Afonso Duarte e James Joyce), 1961; Crítica II – Poetas Contemporâneos (1938 – 1961) – Vol. I, s/d [1961]; Crítica II – Poetas Contemporâneos (1946 – 1961) – Vol. II, s/d, [1962?]; Antero de Quental, col. «Biografia de Bolso», Lisboa, 1962; Júlio Dinis, na colecção «A Obra e o Homem», s/d [1963?]; Literatura, Literatura, Literatura... (de Sá de Miranda ao Concretismo Brasileiro)., 1964; Itinerário Histórico da Poesia Portuguesa de 1189 a 1964, 1964; 50 Anos de Poesia Portuguesa: do Simbolismo ao Surrealismo, 1967; História do Romance Português – Volume I: 1969; Vol. II: 1972; Vol. III: 1978; Camilo Pessanha, Colecção «A Obra e o Homem», 1967; Novos Temas, Velhos Temas (Ensaios de Literatura e estética Literária), 1967; Crítica III – Romancistas Contemporâneos (1942 – 1961), s/d [1969?]; A Geração de 70 (Alguns Tópicos para a sua História, s/d [1971?]; Heteropisicografia de Fernando Pessoa, 1973; Retratos de Poetas que Conheci, 1974; Perspectiva Histórica da Poesia Portuguesa (Dos simbolistas aos Novíssimos), 1976; José Régio e a História do Movimento da «Presença», 1977; Crítica IV – Contistas, Novelistas e Outros Prosadores Contemporâneos (1942 – 1979), 1981; Crítica V – Críticos e Ensaístas Contemporâneos (1942 – 1979), 1983; Crítica VI – O Teatro Contemporâneo (1942 – 1982), 1985.

Jorge de Sena

Jorge de Sena
Jorge de Sena, por Jorge Fazenda Lourenço Jorge de Sena - San Diego, 1972 Jorge de Sena nasceu em Lisboa, a 2 de novembro de 1919, e faleceu em Santa Barbara, na Califórnia, a 4 de junho de 1978. É hoje considerado um dos grandes poetas de língua portuguesa e uma das figuras centrais da cultura do nosso século XX.A sua infância de filho único é marcada pelas expectativas que o pai, comandante da marinha mercante, alimenta para ele como futuro oficial da Armada, em confronto com a educação musical que a mãe procura proporcionar-lhe. Em setembro de 1937 ingressa na Escola Naval como primeiro cadete do “Curso do Condestável”, mas vicissitudes diversas da viagem de instrução no navio-escola Sagres ditam a sua exclusão da Marinha em março de 1938. Parte importante destas vicissitudes tem que ver com o endurecimento das normas que regem a instrução dos cadetes, em consonância com a fascização do Estado Novo por ocasião da Guerra Civil de Espanha. A passagem pela Armada no preciso momento da luta pela liberdade em Espanha constitui uma experiência traumática da sua adolescência que será matéria de diversos poemas e ficções, como “A Grã-Canária” e, no caso da Guerra Civil, Sinais de fogo. Jorge de Sena, que começara a escrever em 1936, estreando-se em 1942 com Perseguição, acaba por se licenciar em Engenharia Civil (1944) pela Universidade do Porto, trabalhando na Junta Autónoma de Estradas de 1948 a 1959, ano em que se exila no Brasil, receando as perseguições políticas resultantes de uma falhada tentativa de golpe de estado, a 11 de março desse ano, em que está envolvido. A mudança para o Brasil permite-lhe uma reconversão profissional que vai ao encontro da sua vocação, dedicando-se ao ensino da literatura, acabando por se doutorar em Letras na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Araraquara (São Paulo), em 1964, obtendo também o diploma de Livre-Docência, para o que teve que naturalizar-se brasileiro (1963).Os anos de Brasil (1959-65), os primeiros vividos, como adulto, em liberdade, são talvez o seu período mais criativo: completa a sequência de poemas sobre obras de arte visual, Metamorfoses (uma das obras que mais influência teve na poesia portuguesa), escreve os experimentais Quatro sonetos a Afrodite Anadiómena, as metamorfoses de Arte de música e a novela O físico prodigioso, inicia o romance Sinais de fogo, investiga e publica sobre Luís de Camões e o Maneirismo, trabalha na edição do Livro do Desassossego, de Fernando Pessoa, retoma a escrita para o teatro, etc. A alteração da situação democrática no Brasil, com o golpe militar de 1964, faz temer um regresso ao passado, quer em termos políticos quer em termos de dificuldades económicas, mas em 1965 surge a oportunidade de se mudar para os Estados Unidos, com Mécia de Sena e os seus agora nove filhos. Em outubro desse ano passa a integrar o corpo docente da University of Wisconsin, Madison, onde é nomeado professor catedrático efetivo (1967), transitando, em 1970, para a University of California, Santa Barbara (UCSB). Durante a sua permanência na UCSB, até ao final da vida, ocupa os cargos de diretor do Departamento de Espanhol e Português e do Programa (interdepartamental) de Literatura Comparada. Foi ainda membro da Hispanic Society of America, da Modern Languages Association of America e da Renaissance Society of America.A obra de Jorge de Sena, vasta e multifacetada, compreende mais de vinte coletâneas de poesia, uma tragédia em verso, uma dezena de peças em um ato, mais de trinta contos, uma novela e um romance, e cerca de quarenta volumes dedicados à crítica e ao ensaio (com destaque para os estudos sobre Camões e Pessoa, poetas com os quais a sua poesia estabelece um importante diálogo), à história e à teoria literária e cultural (os seus trabalhos sobre o Maneirismo foram pioneiros, tal como a sua história da literatura inglesa, e a sua visão comparatista e interdisciplinar das literaturas e das culturas foi extremamente fecunda), ao teatro, ao cinema e às artes plásticas, de Portugal, do Brasil, da Espanha, da Itália, da França, da Alemanha, da Inglaterra ou dos Estados Unidos, sem esquecer as traduções de poesia (duas antologias gerais, da Antiguidade Clássica aos Modernismos do século XX, num total de 225 poetas e 985 poemas, e antologias de Kavafis e Emily Dickinson, dois poetas que deu a conhecer em Portugal), as traduções de ficção (Faulkner, Hemingway, Graham Greene, entre 18 autores), de teatro (com destaque para Eugene O’Neill) e ensaio (Chestov).A criação poética de Jorge de Sena foi desde cedo acompanhada por uma intensa atividade intelectual e cultural, como conferencista, como crítico de teatro e de literatura, em diversos jornais e revistas, como comentador de cinema, nas “Terças-feiras Clássicas” do Jardim Universitário de Belas-Artes, no cinema Tivoli, como diretor de publicações, com destaque para os Cadernos de Poesia, como coordenador editorial, na revista Mundo Literário, como consultor literário, na Edição “Livros do Brasil” Lisboa ou na Editora Agir (Rio de Janeiro), tendo sido ainda cofundador de um grupo de teatro, “Os Companheiros do Páteo das Comédias”, em 1948, e colaborador, nesse mesmo ano, de António Pedro, no programa de teatro radiofónico Romance Policial (Rádio Clube Português, Lisboa), adaptando contos de Chesterton, Hammett, Maupassant, Poe e outros.A intervenção do intelectual nos domínios da cultura ganha novos horizontes com a atividade de docente e investigador universitário no Brasil, onde reforça também a sua ação cívica como opositor ao Estado Novo. É cofundador da Unidade Democrática Portuguesa, de cuja direção se demite em 1961, e integra o conselho de redação do jornal Portugal Democrático, até 1962, participando ainda em atividades do Centro Republicano Português, de São Paulo. Uma vez nos Estados Unidos, a atividade cultural de Jorge de Sena fica restringida aos círculos académicos e da emigração (no período californiano, desempenha um importante papel no esclarecimento das comunidades portuguesas sobre o 25 de Abril de 1974), apenas compensada por uma enorme e rica correspondência com outros escritores e intelectuais portugueses e brasileiros, e pelas suas viagens de trabalho à Europa e, em 1972, a Moçambique e Angola, falando de Camões, no IV Centenário de Os Lusíadas.É com toda esta vasta experiência, longamente marcada pelo exílio, que Jorge de Sena vai construindo a sua obra. Daí que ele sempre tenha entendido a sua poesia (o seu teatro, a sua ficção) como uma forma de dar testemunho de si mesmo e das suas circunstâncias, sem com isso menosprezar, antes pelo contrário, o trabalho de organização estética das emoções e dos sentimentos, ancorados na observação, na meditação e na rememoração de uma experiência de mundo concreta, no plano individual e coletivo. E dessa experiência fazem parte as visões de mundo que as obras de arte (literária, visual, musical) vão cristalizando, codificando, no decurso da história humana, entendida esta como uma peregrinação secular. O que, por sua vez, faz dessas obras de arte (dessas metamorfoses) objeto de uma experiência poeticamente meditada. Assim, a poesia (a obra) de Jorge de Sena, em que a ética e a estética se confundem, e em que o lirismo se mescla com um forte pendor especulativo e narrativo, deve ser lida, nas suas palavras, como uma “meditação sobre o destino humano e sobre o próprio facto de criar linguagem”.Como possível e breve introdução a Jorge de Sena, excluindo de antemão a crítica, a história e o ensaio, bem como poemas e contos individuais, proponho aqui sete títulos, exiguamente comentados: As evidências (1955), Metamorfoses (1963), Peregrinatio ad loca infecta (1969), O Indesejado (António, rei) (1951), Os Grão-Capitães (1976), O físico prodigioso (1977) e Sinais de fogo (1979).As evidências, um “poema em vinte e um sonetos” escrito entre fevereiro e abril de 1954, é a sua primeira grande sequência, forma que favorece uma espécie de pressão associativa, permitindo a configuração de um enredo de temas e motivos, aqui de natureza ético-política e teológico-divina, que, sob um fundo de erotismo, cria a ilusão narrativa de um “novo génesis”, de um presente caótico que precede um novo advento dos deuses, deuses esses que restabeleceriam o reino da humana divindade. Tema este que está na base de obras como Metamorfoses, O físico prodigioso ou a sequência Sobre esta praia… Oito meditações à beira do Pacífico (1977), que é, de algum modo, a verificação da impossibilidade desse advento.Metamorfoses, seguidas de Quatro sonetos a Afrodite Anadiómena (o título completo da coletânea), é também uma sequência de poemas, no caso motivada pela meditação sucessiva de objetos de arte visual (pintura, escultura, arquitetura), cuja ordenação, no volume, segue um critério cronológico dos referentes, assim se encenando um percurso épico da humanidade, mediado pela arte, pautado pela reflexão sobre a condição humana, a recusa da morte pela criação estética e a possibilidade de recuperação, em termos simbólicos, daquele “tudo / o que de deuses palpita e ressuscita em nós”, do poema “Artemidoro”.O físico prodigioso – primeiro incluído em Novas andanças do demónio (1966) – é a possibilidade alegórica dessa humana divindade. A divisão simbólica em doze capítulos (seis de ascensão e seis de queda), a ficção medieval, a ambiguidade do nome (médico, corpo), o jogo de identidades entre as personagens (cavaleiro, diabo, Senhora, donzelas, frades), as alusões a mitos clássicos (Adónis, Bacantes) e ritos tradicionais, as referências cristológicas e pagãs, os códigos do amor cortês e do amor místico, tudo se congrega numa sagração do amor e da liberdade, da vida para além da morte, da redenção da condição humana nas metamorfoses de um corpo glorioso.Peregrinatio ad loca infecta é considerado pelo poeta como um “esparso diário” dos seus exílios americanos, mas abrange também o lugar de exílio que lhe foi a pátria portuguesa. A obra está dividida em quatro blocos espacio-temporais que correspondem às quatro estações da sua peregrinação existencial: Portugal (1950-59), Brasil (1959-65), Estados Unidos da América (1965-69) e Notas de um Regresso à Europa (1968-69). Esta espiral dos tempos e espaços da biografia dá uma visão do modo como o eu biográfico possui uma historicidade que se constrói como errância e destino, como peregrinação pelos lugares inacabados ou imperfeitos do mundo que lhe foi dado viver.A tragédia em verso O Indesejado é, a esta distância, uma premonição dessa errância e desse destino de mundo, da perspetiva de um reexame da identidade nacional, em rutura declarada com o mito do sebastianismo, a que se sobrepõe a situação existencial de um exilado no interior do seu próprio país, quer no plano político da História (António, prior do Crato), quer no plano das condições políticas do momento de escrita da peça (1944-45). O poeta fala a propósito de “tragédias sobrepostas”, a menor das quais não terá sido aquele momento traumático da sua passagem pela marinha de guerra.Este episódio biográfico, transposto parcialmente para o conto “A Grã-Canária”, de Os Grão-Capitães, recorda este entrelaçar entre a existência do poeta e a história pátria. Estes “contos cruéis”, diz Jorge de Sena, “devem ser lidos como crónica amarga e violenta dessa era de decomposição do mundo ocidental e desse tempo de uma tirania que castrava Portugal”. Nesta “sequência de contos”, é uma vez mais a matéria biográfica que serve de enquadramento ao testemunho duma época. A obra estrutura-se segundo uma cronologia das ações narrativas, de 1928 a 1958, localizadas no espaço, independentemente da ordem por que foram escritos (a exemplo de Metamorfoses e Arte de música), com exceção para o conto citado.Nesta mesma linha de “corresponsabilidade do tempo e nossa” se situa o romance Sinais de fogo, parte de um ciclo romanesco que pretendia “cobrir, através das experiências de um narrador, a vida portuguesa desde 1936 a 1959”. Nesta narrativa, centrada no verão de 1936, a eclosão da Guerra Civil de Espanha é o acontecimento que, como observou Mécia de Sena, catalisa “o despertar do protagonista para a realidade política e social, para o amor e até para o acto da criação poética”. Este romance de formação (ou Bildungsroman), seja qual for a relação entre o Jorge protagonista e o Jorge autor, é a obra-prima de um poeta que nos dá a ver o tempo e o modo de fazer-se um poeta.Bibliografia de Jorge de SenaPoesiaPerseguição (1942); Coroa da Terra (1946); Pedra Filosofal (1950); As Evidências (1955); Fidelidade (1958); Poesia-I (Perseguição, Coroa da Terra, Pedra Filosofal, As Evidências, e o inédito Post-Scriptum) (1961; 3.ª ed., 1988); Metamorfoses, seguidas de Quatro Sonetos a Afrodite Anadiómena (1963); Arte de Música (1968); Peregrinatio ad Loca Infecta (1969); 90 e Mais Quatro Poemas de Constantino Cavafy (1970; 3.ª ed., 2003); Poesia de 26 Séculos: De Arquíloco a Nietzsche (1971-72; 3.ª ed., 2001); Exorcismos (1972); Trinta Anos de Poesia (antologia, 1972; 2.ª ed., 1984); Camões Dirige-se aos Seus Contemporâneos e Outros Textos (1973); Conheço o Sal... e Outros Poemas (1974); Sobre Esta Praia... Oito Meditações à beira do Pacífico (1977); Poesia-II (Fidelidade, Metamorfoses, Arte de Música) (1978; 2.ª ed., 1988); Poesia-III (Peregrinatio ad Loca Infecta, Exorcismos, Camões Dirige-se aos Seus Contemporâneos, Conheço o Sal... e Outros Poemas, Sobre Esta Praia...) (1978; 2.ª ed., 1989); Poesia do Século XX: De Thomas Hardy a C. V. Cattaneo (1978; 3.ª ed., 2003); 40 Anos de Servidão (1979; 3.ª ed., 1989); 80 Poemas de Emily Dickinson (1979); Sequências (1980); Visão Perpétua (1982; 2.ª ed., 1989); Post-Scriptum-II (1985); Dedicácias (1999). TeatroO Indesejado (António, Rei) (1951; 3.ª ed., 1986); Amparo de Mãe e Mais 5 Peças em 1 Acto (1974); Mater Imperialis: Amparo de Mãe e Mais 5 Peças em 1 Acto seguido de um Apêndice (1990). FicçãoAndanças do Demónio (1960); A Noite que Fora de Natal (1961); Novas Andanças do Demónio (1966); Os Grão-Capitães: Uma Sequência de Contos (1976; 5.ª ed., 1989); O Físico Prodigioso (1977; 8.ª ed., 2001); Antigas e Novas Andanças do Demónio (1978; 6.ª ed., 2000); Sinais de Fogo (1979; 9.ª ed., 2003); Génesis (1983; 2.ª ed., 1986); Monte Cativo e Outros Projectos de Ficção (1994). Obras Críticas, de História Geral, Cultural ou LiteráriaPáginas de Doutrina Estética, de Fernando Pessoa (1946; 2.ª ed., [1964]); Florbela Espanca ou a Expressão do Feminino na Poesia Portuguesa (1947; ed. fac-similada, 1995); Líricas Portuguesas: 3ª Série (1958; 2.ª ed., rev. e aum., em 2 vols.: I, 1975; II, 1983; 3.ª ed. do vol. I, 1984); Da Poesia Portuguesa (1959); História da Literatura Inglesa, de A. C. Ward (1960); «O Poeta é um Fingidor» (1961); O Reino da Estupidez-I (1961; 3.ª ed., 1984); A Literatura Inglesa: Ensaio de Interpretação e de História (1963; 2.ª ed., 1989); Teixeira de Pascoaes: Poesia (1965; 3.ª ed., aum., como A Poesia de Teixeira de Pascoaes, 1982); Uma Canção de Camões (1966; 2.ª ed., 1984); Estudos de História e de Cultura (1967); Os Sonetos de Camões e o Soneto Quinhentista Peninsular (1969; 2.ª ed., 1981); A Estrutura de Os Lusíadas e Outros Estudos Camonianos e de Poesia Peninsular do Século XVI (1970; 2.ª ed., 1980); Dialécticas da Literatura (1973; 2.ª ed., rev. e aum.: Dialécticas Teóricas da Literatura, 1978); Maquiavel e Outros Estudos (1974; 2.ª ed.: Maquiavel, Marx e Outros Estudos, 1991); Francisco de la Torre e D. João de Almeida (1974); Poemas Ingleses, de Fernando Pessoa (1974; 4.ª ed., 1994); Régio, Casais, a presença e Outros Afins (1977); Dialécticas Aplicadas da Literatura (1978); O Reino da Estupidez-II (1978); Trinta Anos de Camões, 1948-1978 (Estudos Camonianos e Correlatos) (1980); Estudos de Literatura Portuguesa-I (1982; 2.ª ed., aum., 1999); Fernando Pessoa & Cª Heterónima (Estudos Coligidos 1940-1978) (1982; 2.ª ed., 1984); Estudos sobre o Vocabulário de Os Lusíadas: Com Notas sobre o Humanismo e o Exoterismo de Camões (1982); Inglaterra Revisitada (Duas Palestras e Seis Cartas de Londres) (1986); Sobre o Romance (Ingleses, Norte-Americanos e Outros) (1986); Estudos de Literatura Portuguesa-II (1988); Estudos de Literatura Portuguesa-III (1988); Estudos de Cultura e Literatura Brasileira (1988); Sobre Cinema (1988); Do Teatro em Portugal (1989); Amor e Outros Verbetes (1992); O Dogma da Trindade Poética (Rimbaud) e Outros Ensaios (1994); Diários (2004); Sobre Literatura e Cultura Britânicas (2005); Poesia e Cultura (2005). NO PRELO: Sobre Teoria e Crítica Literária; Textos de Intervenção Política; Entrevistas e Inquéritos.CorrespondênciaJorge de Sena / Guilherme de Castilho (1981); Mécia de Sena / Jorge de Sena: Isto Tudo Que Nos Rodeia (Cartas de Amor) (1982); Jorge de Sena / José Régio (1986); Jorge de Sena / Vergílio Ferreira (1987) Cartas a Taborda de Vasconcelos: Correspondência Arquivada (1987); Eduardo Lourenço / Jorge de Sena (1991); Jorge de Sena / Edith Sitwell (1994); Dante Moreira Leite / Jorge de Sena: Registros de uma convivência intelectual (1996).Antologias (seleção)Poesia de Jorge de Sena, de Fátima Freitas Morna (1985); Antologia Poética de Jorge de Sena, de Jorge Fazenda Lourenço (1999); A Arte de Jorge de Sena: Uma Antologia, de Jorge Fazenda Lourenço (2004).Algumas obras sobre Jorge de SenaStudies on Jorge de Sena, org. Frederick G. Williams e Harvey L. Sharrer (1981); Estudos sobre Jorge de Sena, org. Eugénio Lisboa (1984); Jorge de Sena (n.º esp. Quaderni portoghesi), org. Luciana Stegagno Picchio (1983); A Poet’s Way with Music: Humanism in Jorge de Sena’s Poetry, de Francisco Cota Fagundes (1988); Homenagem a Jorge de Sena (n.º esp. Nova Renascença), org. José Augusto Seabra (1989); O Corpo e os Signos: Ensaios sobre O Físico Prodigioso, de Jorge de Sena, coord. Maria Alzira Seixo (1990); In the Beginning There Was Jorge de Sena’s Genesis: The Birth of a Writer, de Francisco Cota Fagundes (1991); Jorge de Sena: O Homem que Sempre Foi (Colóquio Internacional sobre Jorge de Sena, Universidade de Massachusetts, em Amherst, 1988), org. Francisco Cota Fagundes e José N. Ornelas (1992); Jorge de Sena: Una teoría del testimonio poético (n.º esp. Anthropos), coord. Antonio Sanchez-Romeralo (1993); Evocação de Jorge de Sena (n.º esp. Boletim do SEPESP), org. Gilda Santos (1995); O Físico Prodigioso, a novela poética de Jorge de Sena, de Orlando Nunes de Amorim (1996); A Poesia de Jorge de Sena: Testemunho, Metamorfose, Peregrinação, de Jorge Fazenda Lourenço (1998); Jorge de Sena: Uma Ideia de Teatro (1938-71), de Eugénia Vasques (1998); Metamorfoses do Amor: Estudos sobre a Ficção Breve de Jorge de Sena, de Francisco Cota Fagundes (1999); Jorge de Sena em Rotas Entrecruzadas, org. Gilda Santos (1999); Fenomenologia do Discurso Poético. Ensaio sobre Jorge de Sena, de Luís Adriano Carlos (1999); «Para emergir nascemos»: Estudos em Rememoração de Jorge de Sena, org. Francisco Cota Fagundes e Paula Gândara (2000); Jorge de Sena Vinte Anos Depois (O Colóquio de Lisboa, 1998) (2001); O Brilho dos Sinais. Estudos sobre Jorge de Sena, de Jorge Fazenda Lourenço (2001); Jorge de Sena: Uma Leitura da Tradição, de Ana Maria Gottardi (2002); Tudo Isto Que Nos Rodeia: An International Colloquium, org. Francisco Cota Fagundes e Paula Gândara (2003); A Correspondência de Jorge de Sena: Um Outro Espaço da Sua Escrita, de José Francisco Costa (2003); As Metamorfoses do Corpo e a Problematização da Identidade em O Físico Prodigioso, de Jorge de Sena, e Orlando, de Virginia Woolf, de Orlanda de Azevedo (2003).BibliografiasÍndices da Poesia de Jorge de Sena (por Primeiros Versos, Título, Data e Nomes Citados), de Mécia de Sena (1990); Uma Bibliografia sobre Jorge de Sena, de Jorge Fazenda Lourenço (1991); Uma Bibliografia Cronológica de Jorge de Sena (1939-1994), de Jorge Fazenda Lourenço e Frederick G. Williams, com Mécia de Sena (1994); «Bibliografia sobre Jorge de Sena (1942-1997)», de Jorge Fazenda Lourenço (Boletim do Centro de Estudos Portugueses Jorge de Sena, Araraquara, n.º 13, 1998).

José Augusto Seabra

José Augusto Seabra
José Augusto Seabra, por Arnaldo de Pinho José Augusto Seabra, poeta, ensaísta e crítico, exerceu também notável ação política, diplomática e cívicaNascido a 1937 em Vilarouco (Alto-Douro), viveu a infância em Peroselo (Penafiel), tendo a seguir frequentado as Universidades de Coimbra e Lisboa, onde se licenciou em Direito em 1961.Preso pela primeira vez aos 17 anos, foi torturado, julgado e preso no Forte de Peniche. Parte mais tarde para Paris, onde se exila a partir de 1961, só regressando a Portugal em 1974, com o movimento do 25 de Abril. É em Paris que morre, em 27 de maio de 2004.A sua primeira obra, A Vida Toda, data de 1961. Lá constam poemas escritos desde 1955, isto é, desde os seus 18 anos. Em Paris, assiste à polémica entre Camus, Sartre e Merlau-Ponty sobre a natureza do Comunismo e perde a tentação que nunca fora forte de seguir a estética neorrealista. Desenvolve a sua curiosidade literária e estética, por autores como Mallarmè e Rimbaud, e o seu interesse pelo seu Simbolismo e Modernismo portugueses, de Pessanha a Pessoa, acabando por escrever uma tese de doutoramento com Roland Barthes sobre Fernando Pessoa, intitulada Analyse structurale des Hétéronymes de Fernando Pessoa: du Poémodrame au Poétodrame.Docente universitário em Paris, Nanterre e Vincennes, passou também pela Escola Normal Superior. Entra a fundo no ensaísmo e na crítica, colaborando assiduamente por essa altura no suplemento literário de O Comércio do Porto e do Diário de Lisboa. Em 1972 publica Tempo Táctil, sob a influência dos comentários de Heidegger a Hölderlin e Rilke. Regressado a Portugal em 1974, é eleito deputado à Assembleia Constituinte, assumindo também os seus cursos na Faculdade de Letras do Porto. Aí cria o Centro de Estudos Pessoanos e colabora na revista Persona. Desta época de grande fecundidade intelectual, data também o projeto do movimento “Nova Renascença”, a que se entrega, recriando noutro contexto o movimento portuense “Renascença Portuguesa”. Data de 1980, o aparecimento do primeiro número da revista Nova Renascença.Recolha de poemas desta época, sob o signo de Mallarmé e na “experiência do Amor reencontrado de uma companheira que comigo os (transes) partilhou”, é a obra Desmemória, publicada em 1977. Confessa José Augusto Seabra a influência de S. João da Cruz, “retomando o rasto da minha fé abalada da infância”.Data também desta época, O Anjo, um conjunto de 25 poemas, mistico-esotérico. O Anjo reenvia certamente a Rilke e Pessoa, enquanto busca dum signo entre imanência e transcendência.Em 1985, aparece a Gramática grega, escrito em Creta, na altura em que era Ministro da Educação no governo do bloco central, presidido por Mário Soares. O fascínio da cultura grega, aparece em todos os poemas. Este deslumbramento aparece, sob outros sóis, em Poemas do nome de Deus, publicados em 1980, em português e chinês, onde, sob o signo de Macau, o poeta evoca o Oriente e «o Oriente, a oriente do Oriente».Colocado como diplomata na UNESCO, publica nesse mesmo ano Fragmentos do Delírio, um texto subtil e atento à descontinuidade, com influência do seu encontro com Vieira da Silva. Eleito para o Conselho Executivo da UNESCO, viu-se forçado pelo então Governo português a abandonar este cargo, tendo sido colocado na Índia como Embaixador, lugar que recusa, voltando ao seu lugar de Professor em Paris.Publica com sua esposa Norma Tasca, em 1993, a obra Enlace, no dia do seu casamento católico, obra escrita a duas mãos, em enlace, dedicada à mãe Anísia, para que ela o consagrasse “para além da morte”. Amar a Sul, aparecido em Porto Alegre, em 1997, representa o alargamento a sul, após a experiência grega e a experiência do Oriente, um novo signo, cheio de figurações luso-brasileiras. Como se a experiência da errância encontrasse um novo ancoradouro.Significativa desta busca e achamento, é a sua obra as Sombras do Nada, aparecida em 1996, diálogos entre o poeta e a sombra, entre o haurido e o indefinido, ainda sob o signo de Pessoa e Pascoaes.Sempre atento à encarnação dialogal da cultura portuguesa e sensível aos lugares de passagem, publica Seabra, como recordação da Roménia Conspiração da Neve e da Argentina, com a autoria de J. Luís Borges, Destino e obra de Camões.Reconsiderando o conjunto da obra do Professor Embaixador na sua totalidade e a vida que por ela perpassa, vem-nos à mente o verso de Hölderlin que reza assim: “Nós somos um signo vazio de sentido / Insensível e longe da Pátria / Nós quase perdemos a palavra”.Efetivamente as palavras errância, exílio, itinerância, oriente, aparecem constantemente na sua obra que se alarga, metonimicamente, como escreveu em Amar a Sul, a outros espaços, como a Grécia, Macau, Porto Alegre, Roménia, Argentina, como se cada pessoa e cada lugar levassem em si a possibilidade de abrir os signos, de os prolongar ou de os transmutar. “Tudo se passa, escreveu magistralmente na introdução a sua autobiografia intitulada De Exílio em Exílio (Porto, 2004), no sentido agónico do termo, como se uma carência absoluta atravessasse a trama do acontecer e do narrar”. Ir a Oriente ou a Ocidente, aqui ou ali, entre tópico e utópico, atravessa a vida e põe irremediavelmente a questão colocada por Pessoa: “Para que fui à Índia que há / Se não há Índia senão na minha alma?”Na sua obra, de facto, perpassa, como confessou no Prefácio à Antologia Pessoal (Brasília, 2001) “o constante contraponto de duas vocações, cuja tendencial coincidência não foi por vezes sem tensões extremas: a da palavra escrita que no poema cristaliza, irradia ou se refracta e a da palavra agida a todos os níveis, uma e outra movendo-se em tempos entrelaçados. Mas em primeira e última instância só a palavra salva”.Bibliografia de José Augusto SeabraA Vida Toda (Porto 1961), edição do autor.Os Sinais e a Origem (Lisboa 1972), Portugália Editora.Tempo Táctil (Lisboa 1972), Portugália Editora.Desmemória (Porto 1977), Brasília Editora.O Anjo (Porto 1980), Ed. Nova Renascença.Gramática Grega (Porto 1985), Ed. Nova Renascença.Do Nome de Deus (Macau 1990), Instituto Internacional de Macau.Fragmentos do Delírio (Ponta Delgada 1990), Ed. Signum.Epígrafes (Málaga 1991), Ed. Angel Caffarena.Enlace, em col. com Norma Tasca (Porto 1993), Fundação Eng. António de Almeida.Sombras de Nada (Lisboa 1996), Quetzal Editores.Amar a Sul (Porto Alegre 1997), Ed. Movimento.O Caminho Íntimo para a Índia (Macau 1999), Lello e Instituto Cultural de Macau.Conspiração da Neve (Coimbra, 1999), Ed. Minerva. Vários livros de Poemas estão traduzidos. Incluído em diferentes Antologias estrangeiras. EnsaiosFernando Pessoa ou o poetodrama (1.ª ed. S. Paulo 1974; 3.ª ed.. revista Lisboa 1988)Poiética de Barthes (Porto 1980), Brasília EditoraO Heterodoxo pessoano (1.ª ed. Lisboa 1985;: 2.ª ed. S. Paulo), Ed. Perspectiva.Poligrafais Poéticas (Porto 1984), Lello Editores. Edição CríticaMensagem e Poemas Esotéricos de Fernando Pessoa, col. “Archivos”, Madrid 1993.

Fernando Pessoa

Fernando Pessoa
Fernando Pessoa, por Fernando Cabral Martins Nasce a 13 de junho, dia de Santo António, num prédio em frente do teatro de S. Carlos, filho de Maria Madalena Nogueira e de Joaquim Pessoa. A família do pai é oriunda de Tavira – lugar escolhido mais tarde para berço de Álvaro de Campos – e a família da mãe tem raízes nos Açores.O pai morre de tuberculose em 1893, aos 43 anos. Dois anos mais tarde, a mãe volta a casar com João Miguel Rosa, que será cônsul português em Durban, na que é então a colónia inglesa de Natal. Em 1896 viaja com a mãe para Durban, onde fará toda a sua instrução primária e secundária. Aí se matricula em 1902 numa Escola Comercial, onde aprende os elementos da sua futura profissão. Por essa altura começa a escrever, em inglês e já sob o nome de outro – Alexander Search, o que continuará a fazer até 1910: é uma poesia de índole tradicional, muito à maneira dos românticos ingleses, e nela afloram todos os grandes temas futuros.Faz exame de admissão à Universidade do Cabo, recebendo, pelo ensaio que é parte da prova, e entre 899 candidatos, o Queen Victoria Memorial Prize, e no ano seguinte, 1904, matricula-se no liceu de Durban. Aí se prepara para o exame do primeiro ano da Universidade, em que vem a obter a melhor nota, pelo que deveria ter acesso a uma bolsa conferida pela Colónia do Natal para ir para Inglaterra fazer um curso superior. No entanto, a bolsa é entregue ao segundo classificado (aparentemente pelo facto de ser inglês). Em 1905 volta sozinho para Lisboa e matricula-se no Curso Superior de Letras, com tão pouco entusiasmo que não chega a passar do primeiro ano.Começa em 1907 a trabalhar como correspondente estrangeiro de casas comerciais. E, em 1908, começa a escrever poesia em português.Publica em A Águia, durante o ano de 1912, uma série de três artigos sobre «A Nova Poesia Portuguesa», em que o «próximo aparecer do supra-Camões» é o tema-chave. Nesse mesmo ano conhece Mário de Sá-Carneiro, que pouco depois parte para Paris, e inicia com ele uma correspondência (publicada em 1951) através da qual se trocam ideias literárias e artísticas que hão de estar na base dos «ismos» de referência da geração de Orpheu – Paulismo, Intersecionismo, Sensacionismo – na movência contemporânea das Vanguardas europeias, Futurismo, Expressionismo e Cubismo.Uma carta a Adolfo Casais Monteiro de 1935 situará o aparecimento dos heterónimos – Alberto Caeiro, o camponês sensacionista, Ricardo Reis, o médico neo-clássico, e Álvaro de Campos, o engenheiro extrovertido – com precisão excessiva, no dia 8 de março de 1914. O que só de certo modo (simbólico, ficcional) corresponde à verdade, pois a consulta dos manuscritos revela que os primeiros poemas de Caeiro datam de março, e os de Campos e Reis de junho. Será esta, porém, a fase mais produtiva de Pessoa e de todo o Modernismo. No ano seguinte, saem em março e junho os dois números da revista Orpheu, que na altura provocam escândalo e gargalhada mas hão de transformar o século XX português. Aí apresenta Pessoa a peça O Marinheiro e os poemas de Chuva Oblíqua assinados com o seu nome, e principalmente, Opiário, Ode Triunfal e Ode Marítima de Álvaro de Campos. Começa por essa época, igualmente, a interessar-se por teosofia, o que marca a sua atração de toda a vida pelos caminhos ocultos do conhecimento.Em 1917 colabora no Portugal Futurista, outra revista central do Modernismo português, com Ultimatum de Álvaro de Campos - também publicado em separata. Envia The Mad Fiddler a uma editora inglesa, que recusa a sua publicação. Chega a estar em adiantada preparação o n.º 3 do Orpheu, de que se conhecem provas tipográficas, incluindo sete poemas de Pessoa e um longo poema, Para Além Doutro Oceano, assinado por C. Pacheco, singular personagem parecida com Álvaro de Campos que tem aí a sua única aparição.Em 1918 publica dois opúsculos de poemas em inglês, 35 Sonnets e Antinous. No ano seguinte conhece Ofélia Queirós, e inicia em 1920 o primeiro período do seu namoro com ela: são nove meses, documentados por uma correspondência amorosa publicada em 1978. Em 1921 cria a editora Olisipo, onde publica English Poems I-II (um Antinous reescrito mais Inscriptions) e English Poems III (que contém Epithalamium), e, como escreverá mais tarde numa carta a Rogelio Buendía, só Inscriptions «são consentâneas com a decência normal». A Olisipo edita ainda A Invenção do Dia Claro, de Almada Negreiros e a 2ª edição das Canções de António Botto.Dirige em 1924 Athena. Revista de Arte mensal, que chega aos cinco números, e onde aparece pela primeira vez a poesia dos dois outros heterónimos maiores, Ricardo Reis e Alberto Caeiro.Em 1925 morre a sua mãe: em 1926 publica O Menino da sua Mãe na revista modernista Contemporânea. Colabora com doze textos de técnica e teoria do comércio nos seis números da Revista de Comércio e Contabilidade, dirigida pelo seu cunhado Francisco Caetano Dias em 1926. Bernardo Soares aparece pela primeira vez publicamente em 1929, e, pelo menos no seu desenho de personagem, é uma espécie de resultado literário da experiência de correspondente comercial de Pessoa, usando um registo que aproxima o seu Livro do Desassossego de uma espécie de diário, o de um homem só entregue à deambulação lisboeta e ao devaneio lírico. Nesse mesmo ano se reacende o amor e a correspondência com Ofélia Queirós, ao longo de quatro meses.O seu único livro de poemas em português, Mensagem, sai a 1 de dezembro de 1934, e ganha um dos prémios nacionais instituídos por António Ferro.Em janeiro de 1935 envia a Adolfo Casais Monteiro a célebre e já citada carta sobre a génese dos heterónimos. Aí fixa, para além dos detalhes do mítico «dia triunfal» em que os heterónimos aparecem todos de seguida, a encenação daquilo a que chama o «drama em gente», e que virá organizar devidamente as relações que as personagens de poetas estabelecem entre si – e se estabelecem entre as suas obras. Assim, Alberto Caeiro surge como o Mestre, aquele que traz a verdade – a verdade da sensação. Os outros dois são os seus discípulos, um de educação clássica estrita e outro de educação moderna científica: Ricardo Reis e Álvaro de Campos. O próprio Fernando Pessoa afirma considerar-se discípulo de Alberto Caeiro, acedendo então a um convívio quotidiano com os heterónimos num universo alternativo, e, dentre todos, estabelecendo uma relação privilegiada com Álvaro de Campos, seu verdadeiro alter ego. Outro membro do clã imaginário é Bernardo Soares, um semi-heterónimo por não ser inteiramente um outro como cada um dos outros é. E, é claro, a heteronímia é uma máquina de fantasias complexa e variada, tecido de relações e de contradições à volta de certos temas centrais, o sentir e o pensar, o ver e o imaginar, o saber e o sonhar, o poder criador das palavras e a verdade como contradição essencial.É internado no Hospital de S. Luís dos Franceses. Escreve aí o seu último verso, imitado mais uma vez de Horácio, mas onde se lê, além de inquietação, a terrível e insaciável curiosidade do esotérico: «I know not what tomorrow will bring». Morre no dia seguinte, a 30 de novembro.A sua obra começará a ser publicada sistematicamente, em livro, só a partir de 1942, e a primeira versão de O Livro do Desassossego apenas chegará a sair em 1982. Assim atravessa todo o século XX, de que fica a ser um dos nomes maiores.Bibliografia SumáriaJacinto do Prado Coelho, Diversidade e Unidade em Fernando Pessoa, 6ª ed., Lisboa, Verbo, 1980.Teresa Rita Lopes, Fernando Pessoa et le Drame Symboliste: Héritage e Création, 2ª ed., Paris, Fundação Calouste Gulbenkian, 1985.Eduardo Lourenço, Fernando Pessoa Revisitado. Leitura Estruturante do Drama em Gente, 2ª ed., Lisboa, Moraes, 1981.David Mourão-Ferreira, Nos Passos de Pessoa, Lisboa, Presença, 1988.Georg Rudolf Lind, Estudos sobre Fernando Pessoa, Lisboa, IN-CM, 1981.José Augusto Seabra, Fernando Pessoa ou o Poetodrama, São Paulo, Perspectiva, 1974.Jorge de Sena, Fernando Pessoa e Cª Heterónima, 2 vol., Lisboa, Edições 70, 1982.João Gaspar Simões, Vida e Obra de Fernando Pessoa. História de uma Geração, 3ª ed., Lisboa, Bertrand, 1973João Rui de Sousa, Fernando Pessoa Empregado de Escritório, Lisboa, Sitese, 1985.

Florbela Espanca

Florbela Espanca
Florbela Espanca, por Cecília Barreira Nascida em 1894 [1], escreve os primeiros poemas por volta de 1915. A sua poesia por um lado liga-se a ambivalências finisseculares, por outro dramatiza a problemática do eu de um modo muito particular.O Livro das Mágoas abre com um soneto decadentista por excelência, onde a mágoa, a dor e a saudade participam no mesmo universo convivencial de tortura e decadentismo. A tónica finissecular é-nos conferida pela propensão para o choro: Irmãos na Dor, os olhos rasos de água,Chorai comigo a minha imensa mágoa,Lendo o meu livro só de mágoas cheio! [2] No entanto, não menos importância do que a assumpção de uma tristeza intrínseca, é a definição de um espaço poético original e único, um espaço de eleição diríamos melhor. Esse espaço é definido pela própria poetisa: Sonho que sou a Poetisa eleita,Aquela que diz tudo e tudo sabe, [3] E neste entrecho surge-nos uma primeira contradição. A poesia recém-eleita a uma área de primazia é também e sobretudo a poesia do nada: Acordo do meu sonho… E não sou nada!… [4] A relação do poeta com a sua escrita é dolorida, chorada: Calaram-se os poetas, tristemente…E é desde então que eu choro amargamenteNa minha Torre esguia junto ao Céu!… [5] Aliás, é porque se é poeta que se alcança a Dor. A poesia é base de definição de uma atitude de sofrimento.Há um certo deslumbramento por uma sorte não alcançada que é ainda e sobretudo a sugestão de um local de eleição: Eu sou a que no mundo anda perdida,sou a irmã do Sonho, e desta sorteSou a crucificada… a dolorida… [6] Um pessimismo tão fundo enleia-se na capacidade de sofrimento único, desde a alusão à vivência sozinha no “Castelo da Dor”, até à categoria de Castelã da tristeza a que se alcandora.Problematizemos a relação que existe entre a poetisa e a escrita. Por um lado, existe a noção de que o Poeta é um sonhador, um criador de ilusões. Por outro, a de que poesia é a palavra iniciática, mas inaudível para a maior parte das pessoas. O poeta é um ser solitário por excelência. É aquele que fala da sua Dor e a transporta para um infinito. Quanto maior é o génio, mais pode transportá-lo a uma outra cultura, a uma maior capacidade de divinização. A vida é uma desgraça que se assume com imensa dor, uma infinita capacidade de a chorar. Há uma tomada de consciência de caráter trágico: Poeta, eu sou um cardo desprezado,A urze que se pisa sob os pés.Sou como tu, um riso desgraçado! [7] Um constante conceber da vida como uma antecâmara da morte: esta não escolhe idades. Preexiste a um estádio de vida. Encontra-se sempre latente. A morte é a permanente temática em Florbela Espanca: É tão triste morrer na minha idade! [8] E aqui remetemo-nos para a poesia finissecular de um António Nobre, cujos constantes apelos à morte produzem uma espécie de elegia dos comportamentos, suicídio antecipado, morte desejada. Penitência que se arranja na soturnidade das ambiências: E os meus vinte e três anos… (Sou tão nova!)Dizem baixinho a rir: “Que linda a vida!…Responde a minha Dor: “Que linda a cova! [9] Morte física ou onde se quebra o elo com a morte religiosa. Em Florbela, se existem laivos de religiosidade é mais num sentido místico, na procura de uma infinitude, de algo que escape a uma visão perplexa e inquieta.Mas descodifiquemos o caráter profundamente sensual desta poesia, onde as mãos e os beijos adquirem uma forte conotação erótica. É uma sensualidade que tanto pode tocar as raias de uma entronização de eros, como pode diluir-se numa tristeza de um amor perdido ou não correspondido: Beija-me bem!… Que fantasia loucaGuardar assim, fechados, nestas mãos,Os beijos que sonhei prà minha boca!… [10] Os estados excessivos de aniquilamento que caracterizam a sua poesia são eles próprios denunciadores de uma vida tumultuosa. Assim as paixões e o modo como são vividas. Benditos sejam todos que te amarem!Os que em volta de ti ajoelharemNuma grande paixão, fervente, louca! [11] A paixão é um estádio que tem de ser vivido num arrebatamento místico, mesmo que não haja qualquer correspondência com o real. De pathos se trata na ânsia de se chegar a uma perfeição, limbo existencial que toca um lirismo profundo.Mas como é vivido o quotidiano? Sob o tédio que remete não ocasionalmente para um “lago plácido dormente”. Essa tristezaÉ menos dor intensa que frieza,É um tédio profundo de viver!E é tudo sempre o mesmo, eternamente:o mesmo lago plácido dormente…E os dias, sempre os mesmos, a correr… [12] Daí se nota a mesma imperiosa atitude de radicalismo. Entre a morte que se projeta num elanguescimento dos sentidos, num torpor algo mediúnico e a vida do eros, enlouquecimento do ser. Gosto da noite imensa, triste, preta,Como esta estranha e doida borboletaQue eu sinto sempre a voltejar em mim!… [13] O pendor noturno revela-se nas tonalidades escolhidas, desde os tons de roxos até aos soturnos negros. A propensão para a morte, a noite, o negrume, a tristeza relva desse desequilíbrio entre os thanatos e o eros.No Livro de Soror Saudade prolongam-se as grandes temáticas que entrevíramos no Livro de Mágoas.O eros é mais forte que o thanatos, porventura: Amo-te tanto! E nunca te beijei…E, nesse beijo, Amor, que eu não te deiGuardo os versos mais lindos que te fiz! [14] E é em torno do eros que se encontra no labirinto das palavras uma chave para esse eu tão problemático. Talvez um dos sonetos mais labirínticos se condense em a noite que desce sobre os olhos cansados, adormecendo o ser. Para além desta ideia encontra-se um poema de grande sensualidade: A noite vai descendo, sempre calma…Meu doce Amor tu beijas a minh’almaBeijando nesta hora a minha boca [15] Neste poema encontram-se alguns dos traços mais interessantes da poesia de Florbela. Por um lado, o pendor radical e afetivo pela noite, pelo crepúsculo. Por outro, a noite, triste e pessimista que se avizinha, transforma-se em embriaguez e loucura, em algo que se plasma no genesíaco, na embriaguez dos sentidos. A noite calma pressente o enlace dos amantes. Este poema radicaliza de um modo muito original a simbólica da noite, na sua proximidade da morte, abeirando-se calma e dramaticamente e transmudando-se numa apoteose de corpos que se amam.Em “O Nosso Mundo”, Florbela erege um autêntico hino à vida e ao eros, original na sua poesia, tendo em conta o pessimismo que a caracteriza vulgarmente: A vida, meu Amor, quero vivê-la!Na mesma taça erguida em tuas mãos,Bocas unidas hemos de bebê-la!Que importa o mundo e as ilusões defuntas?…Que importa o mundo e seus orgulhos vãos?…O mundo, Amor?… As nossas bocas juntas!… [16] A Vida é uma taça que se deve beber com sofreguidão. De tal modo que em “Prince Charmant” são já os velhos fantasmas que retornam, desde as tardes que se morrem voluptuosas até à procura do ser eleito que se não encontra nunca. Essa procura do príncipe encantado dilui-se na “Charneca Alentejana” e a poetisa é a esfinge que olha “a planície enorme”. Embalo em mim um sonho vão, miragem:Que tu e eu, em beijos e carinhos,Eu a Charneca e tu o Sol, sozinhos,Fôssemos um pedaço de paisagem! [17] Os amantes fundem-se na paisagem, fazem parte intrínseca dela, ou então, como no poema “Tarde Demais”, quando finalmente o ser adorado regressa, já a poetisa se encontra morta: E há cem anos que eu fui nova e linda!…E a minha boca morta grita ainda:“Porque chegaste tarde, ó meu Amor?… [18] Mas este Livro de Soror Saudade apresenta outros traços igualmente interessantes. Imagens de um Alentejo que se prende à voz dos “sinos e das noras”. As “verbenas” que se morrem silenciosamente e um franciscanismo muito angélico desde o simples apelo aos poetas e aos irmãos até ao chamamento mais forte da vida, do vento e do sol: Trago na boca o coração dos cravos!Boémios, vagabundos, e poetas,Como eu sou vossa Irmã, ó meus Irmãos! [19] Charneca em Flor é o livro publicado postumamente onde se concentram os poemas mais complexos de Florbela. Iniciemos um percurso por “Versos de Orgulho”: O mundo quer-me mal porque ninguémTem asas como eu tenho! Porque DeusMe fez nascer Princesa entre plebeusNuma torre de orgulho e de desdém!Porque o meu reino fica para Além!Porque trago no olhar os vastos céus,E os oiros e os clarões são todos meus!Porque Eu sou Eu e porque Eu sou alguém! [20] Neste entrecho o eu é um território inexpugnável, imenso, mediúnico, solitário porque único. Voltamos ao ego como centro de todas as problemáticas, de todos os dilemas. A insistência no Infinito, num horizonte sem fim, é o rasgar de limites para um eu que se pretende ilimitado.Também a interrogação sobre a morte é de uma grande lucidez: O que há depois? Depois?… O azul dos céus?Um outro mundo? O eterno nada? Deus?Um abismo? Um castigo? Uma guarida? [21] A resposta é de um pessimismo muito florbeliano: tudo será melhor para além da morte.Mas o erotismo é outro dos traços permanentes da poesia de Florbela. Charneca em Flor representa a consagração do eros subtil e suave, onde as mãos, a boca e o estreitar dos corpos se arriscam e se ousam: Meu Amor! Meu Amante! Meu Amigo!Colhe a hora que passa, hora divina,Bebe-a dentro de mim, bebe-a comigo!Sinto-me alegre e forte! Sou menina! [22] Ou então de um modo mais incisivo: As tuas mãos tacteiam-se a tremer...Meu corpo de âmbar, harmonioso e moçoÉ como um jasmineiro em alvoroçoÉ o brio de sol, de aroma, de prazer! [23] Em Florbela a marca do amor é também a de um donjuanismo onde a influência de um Mário de Sá-Carneiro se faz sentir, um pouco na ambiência do poeta de Orpheu: Eu quero amar, amar perdidamente!Amar só por amar: Aqui... Além...Mais Este e Aquele, o Outro e toda a gente...Amar! Amar! E não amar ninguém!Recordar? Esquecer? Indiferente?...Prender ou desprender? É mal? É bem?Quem disser que se pode amar alguémDurante a vida inteira é porque mente! [24] Neste entrecho o amor torna-se ele próprio subversor. Não interessa o objeto amado, mas o ato de amar. De um franciscanismo ingénuo passa-se a uma atitude radical onde se torna indiferente quem se ama, mas o ato de amar. Num outro poema, “Ambiciosa”, reverte-se para o homem/ Deus: O amor dum homem? - Terra tão pisada!Gota de chuva ao vento baloiçada...Um homem! - Quando eu sonho o amor dum deus! [25] Se era indiferente o objeto amado num soneto anterior, neste excerto o amor não pode ser mais humano, mais divino. Esta divinização prende-se com o enaltecimento do próprio eu. O ego é uma entidade complexa que tanto se deixa envolver, segundo a expressão de José Régio, num donjuanismo psicológico – amar este, aquele ou aqueloutro – num cortejar sem fim, como passa por uma sensualidade muito à flor da pele.Se em Livro de Mágoas ainda se notava a nítida filiação em António Nobre, num apelo à Mágoa, à Dor, à atitude chorada, à medida que caminhamos na sua poesia, esta torna-se mais natural e pessoal, com uma carga erótica impressiva, num paganismo onde se mistura religiosismo e amor eterno. Como por exemplo: Ó meu Deus, ó meu dono, ó meu senhor,Eu te saúdo, olhar do meu olhar,Fala da minha boca a palpitar,Gosto das minhas mãos tontas de amor! [26] Sensualidade que é o grande traço desta poesia. Se não observemos ainda este excerto: Ah, fixar o efémero! Esse instanteEm que o teu beijo sôfrego de amanteQueima o meu corpo frágil de âmbar loiro [27] A poesia de Florbela é de uma grande expressividade dramática, possui uma carga emocional que a torna diferente da poesia sua contemporânea.Daí que tenhamos escolhido esta poesia como paradigma de um tempo e de uma ambiência mental feminina, embora perdêssemos de vista porventura outras expressões literárias não tão perfeitas, mas mais triviais na sua resolução.Contudo, as linhas gerais estão traçadas. Os anos 30 e 40 seriam anos mais frutuosos: Maria Archer, Irene Lisboa, Maria Lamas na prosa. E outros tantos nomes na poesia. Mas dificilmente com a qualidade de Florbela. ________________________[1] Florbela Espanca nasce a 8 de dezembro de 1894 em Vila Viçosa. Com a idade de oito anos, Florbela escreve a sua primeira poesia conhecida “A Vida e a Morte”. No dia do seu décimo nono aniversário, faz o seu primeiro casamento civil com Alberto de Jesus Silva Moutinho. Vai viver para o Redondo, onde ensina línguas numa espécie de colégio.Colabora literariamente no Notícias de Évora. Em 1916, Raul Proença corrige e emenda um caderno de Florbela chamado Primeiros Passos, onde escrevera onze poesias. Em 1919, publica-se o primeiro livro de poesia de Florbela, O Livro de Mágoas. Inscreve-se também na Faculdade de Direito de Lisboa. Em 1920, passa a viver com António Guimarães, realizando-se o casamento a 29 de junho de 1921.Em 1923 é editado o Livro de Soror Saudade, por Francisco Lage. Divorciada de António Guimarães, a poetisa casa-se com Mário Pereira Lage. Em 1927, morre de acidente de hidroavião Apeles Espanca, irmão de Florbela. Suicida-se no dia 8 de dezembro de 1930. Em 1931, é publicado postumamente o livro Charneca em Flor, editado por Guido Batelli e também o livro de contos As Máscaras do Destino.[2] Obras Completas de Florbela Espanca, Volume II, Poesia 1918-1930, Lisboa, Publicações Dom Quixote, 1986, p. 59.[3] Idem, op. cit., p. 60[4] Idem[5] Idem, op. cit., p. 66[6] Idem, op. cit., p. 61[7] Idem, op. Cit., p. 73[8] Idem.[9] Idem.[10] Idem, op. Cit., p. 77[11] Idem, op. cit., p. 84[12] Idem, op. cit., p. 89[13] Idem, op. cit., p. 91[14] Idem, op. cit., p. 123.[15] Idem, op. cit., p. 126[16] Idem, op. cit., p. 129[17] Idem, op. cit., p. 132[18] Idem, op. cit., p. 133[19] Idem, op. cit., p. 157[20] Idem, op. Cit., p. 167[21] Idem, op. Cit.,p. 171[22] Idem, op. Cit., p. 173[23] Idem, op. Cit., p. 184[24] Idem, op. Cit., p. 189[25] Idem, op. Cit., p. 191[26] Idem, op. Cit., p. 246[27] Idem, op. Cit., p. 247

Helena Vaz da Silva

Helena Vaz da Silva
Helena Vaz da Silva, por Guilherme d’Oliveira Martins Um dia Helena Vaz da Silva disse que os seus escritos eram como “pequenas pedras que vou semeando”. Assim foi fazendo ao longo de uma vida velozmente vivida. Acreditava na força das palavras e das ideias. E sabia os riscos que corria quando abria um grande debate. Mas estava sempre disposta a correr esses riscos, por entre propostas arrojadas e uma inesgotável capacidade de espanto e para assumir perplexidades. Foi sempre semeando as pequenas pedras. “Pedras como a do Polegarzinho – do conto da nossa infância – que se deitam para ajudar a reconhecer o caminho; pedras como a que se lança quando se começa a fazer uma casa; pedras brancas e de cor para dar brilho ao nosso dia a dia ou para lhe acentuar os contornos” (Incitações para o Novo Milénio). E o que preocupava essencialmente Helena? Era o facto de hoje se viver “e portas e coração trancado, assestado para o êxito, a imagem, o agradável, o curto prazo”. Para ela importaria, ao invés, perscrutar os “espaços outros”, os “sinais” e os “profetas de hoje” e criar uma “corrente de resistência” – única forma de resistir à “desintegração, que flui por debaixo do ruidoso tumulto da vulgaridade”. Se lermos o que escreveu, se nos debruçarmos sobre a sua ação, como jornalista, como animadora cultural, como escritora, depressa descobrimos que há uma constante indelével, a da procura de sinais dos tempos, de alternativas e de novas tendências, abrindo novos espaços de criatividade, mas também de descoberta das virtualidades do encontro entre a memória, o património e a inovação. Helena Maria da Costa de Sousa de Macedo Gentil Vaz da Silva nasceu em Lisboa a 3 de julho de 1939, filha de D. Isabel Maria da Costa de Sousa de Macedo (Vila Franca) e do Dr. Francisco de Mascarenhas Gentil. Seu Pai, brilhante advogado, morreria precocemente quando Helena tinha apenas 9 anos, mas marcá-la-ia profundamente, como homem culto e sensível. Aprendeu a ler com a mãe nas letras de forma dos jornais, frequentou o Colégio de St. Augustin, de freiras belgas, bem como as escolas das irmãs Escravas e Oblatas, sempre com excecional aproveitamento. Quando terminou o ensino secundário lecionou Francês e Religião no Colégio das Oblatas, tendo frequentado ainda o Instituto de Serviço Social. Com 17 anos começou a sua vida profissional na agência de publicidade de Martins da Hora, na mesma secretária em que trabalhou Fernando Pessoa. Em 1959, casa com Alberto Vaz da Silva e insere-se no influente circulo cultural, em que se integram António Alçada Batista, Nuno Bragança, João Bénard da Costa, Pedro Tamen, José Escada, Luís Sousa Costa, Nuno Cardoso Peres e Cristovam Pavia. Sobre esse grupo disse Helena: “Para lá do trabalho em comum que tínhamos (no projecto editorial da Livraria Moraes), chegámos a planear constituir uma comunidade segundo um projecto só nosso, a que chamámos O Pacto”. Esse projeto não se concretizou, mas realizou-se um outro, o da criação de uma revista “de pensamento e acção”, que nasceu em 1963 e que se chamou “O Tempo e o Modo” – iniciativa marcante, pela abertura de novos horizontes políticos, culturais, literários e artísticos. A revista congregaria personalidades de diversas sensibilidades, empenhadas na renovação da vida portuguesa no sentido da democracia: Mário Soares, Salgado Zenha, Jorge Sampaio, Sottomayor Cardia, Vasco Pulido Valente, Manuel de Lucena, Sophia de Mello Breyner, Jorge de Sena, Agustina Bessa-Luís, Ruy Belo, M.S. Lourenço, Eduardo Lourenço, António Ramos Rosa, José Cardoso Pires, Vergílio Ferreira… Em 1965, Helena Vaz da Silva assume a responsabilidade da edição portuguesa da revista “Concilium”, empenhada na difusão do espírito do Concílio Vaticano II. Em 1968, parte para Paris, para estudar Jornalismo e Sociologia, na Universidade de Vincennes e frequentar o Seminário de Lacan – e assiste aos acontecimentos de maio. “Foi muito bom que eu tivesse ido, quando vim trazia outra visão, outra calma”. No regresso, organiza dois números temáticos de “O Tempo e o Modo”, com grande sucesso – “Deus, O Que É?” e “O Casamento”. Depois de ter responsabilidades na empresa turística da Quinta da Balaia (Algarve), ingressa no quadro do “Expresso”, onde se impõe pelo caráter inovador e aberto dos temas que propõe e das pessoas que entrevista. É o tempo da jornalista motivada pelos ventos de liberdade e pela necessidade de abrir novas alternativas. Dirige os programas políticos e sociais da RTP, colabora como “free lancer” nos principais órgãos de informação, entra em 1977 na ANOP (Agência Noticiosa Portuguesa), para chefiar a área da cultura. Em 1978, assume a direção e a propriedade da revista “Raiz e Utopia”, fundada por António José Saraiva, Carlos Medeiros e José Batista, e imprime uma orientação inconformista virada para os grandes debates europeus do momento, bem simbolizada na secção “Abriu em Portugal”. Em 1979, assume a Presidência do Centro Nacional de Cultura (CNC), iniciando e desenvolvendo uma ação incansável em prol da divulgação, do estudo e da preservação da língua e da cultura portuguesas, lançando os “passeios de Domingo”, debates, colóquios, cursos livres, a base de dados Patrimatic, diversas publicações e o ciclo “Os Portugueses ao Encontro da Sua História”. Como disse Maria Calado: “ao lançar os passeios de Domingo introduziu-se em Portugal a prática dos itinerários culturais como forma de conhecimento e valorização do património histórico e da criação artística e cultural contemporânea”. Mas Helena não para. Em 1980 é Vice-Presidente do Instituto Português de Cinema e conhece Marguerite Yourcenar, de quem se torna amiga e tradutora das suas obras. Edgar Morin e Yehudi Menuhin, Yourcenar são, aliás, referências fundamentais do círculo de afetos e de referência intelectuais e éticas de Helena Vaz da Silva. Em 1987, integra o Conselho Consultivo da Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses e de 1989 a 1994 é Presidente da Comissão Nacional da UNESCO, mandato que coincide com o de Federico Mayor como diretor geral da organização, o que permitiu a Portugal exercer um papel decisivo no Ano Internacional dos Oceanos, na Expo 98 e realizar em Lisboa a Reunião Inter-Regional sob o tema “A UNESCO para o Século XXI”. Em 1992, é membro do Conselho de Orientação para os Itinerários Culturais do Conselho da Europa e em 1994 foi eleita deputada ao Parlamento Europeu pelo PSD, exercendo um mandato muito marcante: “consegui pôr Portugal na agenda dos agentes culturais europeus e pôr a cultura na agenda da Europa”. Em 1996 integrou a Comissão para o Futuro da Televisão em Portugal e em 2002 toma posse como Presidente do Grupo de Trabalho sobre o Serviço Público de Televisão. Desde 2000 era académica da Academia Nacional de Belas Artes. A 12 de agosto de 2002 morre em Lisboa quando muito se esperava da sua inteligência, do seu entusiasmo e da sua força criadora. Compreendeu bem o seu tempo e procurou descobrir novas tendências e sinais capazes de ligar tradição e modernidade, liberdade e sentidos de pertença – eis a sua marca inesquecível. Foi autora de várias obras, entre as quais: Helena Vaz da Silva com Júlio Pomar, 1979; Portugal, o Último Descobrimento, 1987; Qual Europa?, I, 1996; Qual Europa?, II, 1997; Qual Europa?, III, 1999; Incitações para o Milénio, 2001. Foi agraciada com a Ordem de Mérito de França (1982) e com a Ordem do Infante D. Henrique, Grande Oficial (2000).

Irene Lisboa

Irene Lisboa
Irene Lisboa, por Paula Morão Irene Lisboa (n. Casal da Murzinheira, Arruda dos Vinhos, 1892; m. Lisboa, 1958), formada pela Escola Normal Primária de Lisboa, fez estudos de especialização na Bélgica, em França e na Suíça; foi professora do Ensino Infantil e depois Inspetora Orientadora desse grau de ensino, até ser afastada, primeiro para funções burocráticas, e depois definitivamente, por recusar um lugar em Braga (na prática, uma forma de exílio para uma pedagoga incómoda pelas suas ideias avançadas). Usou, entre outros de menor importância, o pseudónimo João Falco, que abandonou no início da década de quarenta. Ao longo da sua vasta obra, escreveu literatura para crianças e jovens, textos de pedagogia, crónicas e novelas centradas na descrição de quadros e personagens da vida comum, mas sempre dando passagem para o núcleo intimista e autobiográfico que unifica toda a obra, a começar pelos dois livros de poemas, de 36 e 37. Com as variações que os diferentes géneros implicam, pode dizer-se que o seu estilo é marcado pela oralidade e pela naturalidade, construídas como efeito retórico que rasura um aturado trabalho de escrita. Isto é desde logo visível nos livros para crianças e jovens, em que a oralidade, muito trabalhada, não se compadece com facilidades nem infantilismos, abordando as mais variadas temáticas de modo a que subjaz profunda informação pedagógica.O estilo da autora de Solidão caracteriza-se por frases em geral curtas, apresentadas como fragmentos de diálogo ou de monólogo interior, ou então os textos parecem ser o registo imediatista de cenas vistas, mas a que as subtis intervenções críticas ou explicativas da voz narradora dão contornos de anotações fazendo-se ao ritmo da consciência. O próprio sistema de títulos e subtítulos dá indicações nesse sentido, ao usar termos como "apontamentos" e "notas", ou ao remeter para a matéria banal e insignificante; é o que sucede com o oxímoro o pouco e o muito, usado como título em 1956, ou com o verso de uma quadra popular que titula em 55 o livro para crianças Uma mão cheia de nada outra de coisa nenhuma. Junte-se a isto o uso do ritmo sincopado de um discurso cantabile, oralizante e próximo da corrente de consciência, em que o ato de contar é charneira entre o mundo e o eu; não lhe interessa definir exatamente o que escreve nem apresentar obra acabada, e por isso optou, primeiro, por provocatoriamente não distinguir verso e prosa ("Ao que vos parecer verso chamai verso e ao resto chamai prosa" é a abertura programática do livro de 1937), e mais tarde por publicar apenas crónica, conto ou novela – ou seja, géneros de cariz inacabado.Nos volumes Esta cidade!, O pouco e o muito - Crónica urbana, Título qualquer serve para novelas e noveletas, Crónicas da Serra está patente a opção pelo tom e pelos géneros menores, com destaque para a crónica e para a narrativa curta, correspondendo a uma conceção muito atenta e pormenorizada do mundo, captado sobretudo pela perceção visual, aquela que melhor permite o distanciamento e o recolhimento do sujeito, revertendo o que observa e anota sobre o íntimo que progride e se ajusta. O efeito de naturalidade assim obtido constitui-se pela recusa dos traços de "composição" próprios do romance, que para Irene implica "deformação e teatralização do pequeno nó da realidade" de que parte, ao que contrapõe a intenção de apenas contar "casos que conheci, que me pus a desfiar tranquilamente" (cf. «Introdução» a Esta cidade!); nestes textos, concordes com certo verismo seu contemporâneo, pratica afinal a composição, mas não a do romance canónico: narrar "casos" ou instantâneos pressupõe seletividade, que o "desfiar tranquilamente" transforma em texto por operações de memória e agenciamento dos episódios subordinados ao regresso à intimidade do sujeito; Irene, aliás, acrescentou "Conto, exercito-me a analisar os casos e as criaturas", mostrando como, ao contar o real exterior, a narradora se exercita (tal como em certas práticas da espiritualidade), procurando as raízes e expansões do seu próprio eu. No núcleo mais intimista tudo isto ganha maior evidência, a começar pelo hibridismo já referenciado de Um dia e outro dia – Diário de uma mulher e de Outono havias de vir...; em ambos assistimos já a uma tematização do tempo (frequentes vezes metaforizado pela água correndo e escoando-se), a uma reflexão sobre a própria escrita decorrendo da autoreflexividade e correspondendo a pausas nas atividades quotidianas da sobrevivência, e à prática de um estilo fragmentário, estruturado sobre um ritmo predominantemente curto; os poemas ordenam-se pela suspensão dos dias iguais num efeito de acumulação que, partindo do diário, o concebe de forma heterodoxa, sendo afinal o lugar de interrogação sobre a própria consciência de quem escreve. A mesma temática intimista e reflexiva é central em Solidão – Notas do punho de uma mulher, em Apontamentos e em Solidão - II, livros autobiográficos em que um sujeito mulher fala de si no vaivém entre o mundo dos outros e o eu íntimo, numa ductilidade que vai do lirismo de matriz bucólica de «Pastoral» à carta nunca enviada, às notações ou esboços de paisagens e de personagens (algumas delas desenvolvidas nos volumes de crónicas). A solidão traz como corolários o tom elegíaco, sobretudo ao tematizar a queixa e a ausência do amor, mas não impede nunca o olhar desapiedado sobre o mundo e sobre o eu, que se critica quando ocasionalmente cai na autocomplacência.As novelas autobiográficas Começa uma vida e Voltar atrás para quê? contam os episódios fundadores da infância e da adolescência, nos quais radica este universo. À distância do tempo e da memória, eles narram a história de uma rapariguinha crescendo entre mistérios que rodeiam a sua origem, envolvendo-a na matriz disfórica de afetos desajustados: separada da mãe cerca dos três anos, vive com o pai e uma madrinha na quinta desta, estigmatizada por uma bastardia que o crescimento vem agudizar, não só pelas suas sequelas no imaginário da protagonista, mas pelas consequências práticas sobre a sua vida, vendo-se desprovida de bens materiais e sobretudo simbólicos (nunca reconhecida pelo pai e espoliada dos seus direitos por ação de gente ambiciosa e sem escrúpulos). Sendo uma história pessoal, um "caso", ela é também exemplar de um certo tempo português do começo do século XX, caracterizado pela decadência dos terratenentes e da burguesia promovida pelo dinheiro à custa do sacrifício dos mais fracos. Estas narrativas, de técnica fragmentária como todos os livros intimistas da autora, são exemplares do modo de representar uma consciência dilacerada que, mesmo por ser absolutamente moderno, é um dos fatores da estranheza e do fascínio que Irene Lisboa vem causando em quem a lê.O nome da autora de Solidão, na variedade e versatilidade de questões que aqui se apresentam sumariamente, constitui uma referência inegável para a compreensão da obra de outros escritores que podem filiar-se no seu pendor intimista e na sua atenção ao real das coisas pequenas e banais, com destaque para algumas escritoras - embora para Irene não haja uma distinção clara entre escrita feminina ou masculina (em Solidão, sumariza a questão definindo-a em termos de sensibilidade e não de distinção entre os géneros); ao mesmo tempo, o que escreveu permite, na linhagem (de que Irene está consciente) de Cesário Verde, Camilo Pessanha ou Fernando Pessoa, pensar uma tradição da literatura portuguesa que problematiza as relações entre consciência e mundo. Solidão é, nesse domínio, um marco indispensável. ______________ BIBLIOGRAFIAObra literária de Irene Lisboa:Um dia e outro dia - Diário de uma mulher, 1936, Outono havias de vir latente triste, 1937 (ambos reeditados em Poesia - I, 1991); Solidão - Notas do punho de uma mulher, 1939, 4ªed. 1992; Começa uma vida, 1940, 2ª ed. 1993; Esta cidade!, 1942, 2ªed. 1995; Apontamentos, 1943, 2ª ed. 1998; Uma mão cheia de nada outra de coisa nenhuma, 1955, 3ªed. 1993; O pouco e o muito - Crónica urbana, s/d (1956), 2ªed.1997; Voltar atrás para quê?, s/d (1956), 3ªed. 1994; Título qualquer serve para novelas e noveletas, 1958; Queres ouvir? Eu conto - Histórias para maiores e mais pequenos se entreterem, 1958, 3ªed. 1993; Crónicas da serra, s/d (1958), 2ªed. 1997; Solidão - II, s/d (1974), 2ª ed. 1999. Antologia: Folhas soltas da Seara Nova (1929 -1955), antologia, prefácio e notas de Paula Morão, 1985. [N.B. – todas as reedições aqui referidas, acompanhadas de prefácios de Paula Morão, se encontram na coleção Obras de Irene Lisboa, Editorial Presença]Bibliografia essencial:Paula Morão. O essencial sobre Irene Lisboa, 1985; Paula Morão, Irene Lisboa - Vida e escrita, Presença, 1989; Violante Florêncio, A literatura para crianças e jovens em Irene Lisboa, Asa, 1995; Irene Lisboa - 1892-1958, catálogo, Instituto da Biblioteca Nacional e do Livro, 1992; AA.VV. Colóquio -Letras, nº 131 - “Voltar a Irene Lisboa”, Janeiro -Março 1994.

Jaime Cortesão

Jaime Cortesão
Jaime Cortesão, por Elisa Neves Travessa Jaime Cortesão (Ançã/Cantanhede, 29-4-1884 – Lisboa, 14-8-1960) foi um intelectual que, privilegiando concomitantemente a investigação, a reflexão e a ação, ocupou um lugar proeminente na cultura política e na cultura histórica do seu tempo, sobretudo pela afirmação de um duplo combate – político e de reavivar a consciência histórica e cívica – presente na produção escrita e na ação cultural e cívica. O impulso dinamizador e o sentido da convergência foram os traços mais característicos da sua personalidade. Foi sobretudo um «polarizador de doutrina», um «catalisador» de ideias, como o definiu Aquilino Ribeiro, mais «congraçador» do que «hostilizador dos homens», como o considerou José Rodrigues Miguéis.A partir da compreensão do universo mental e moral do autor e das múltiplas facetas da sua obra e da sua ação – enquanto poeta, dramaturgo, ficcionista, pedagogo, político e historiador – percebemos que compatibilizou a reflexão com a intervenção crítica ativa, no contexto convulsionado do Portugal da I República, da Ditadura Militar e do Estado Novo. Desde o início da sua vida pública definiu uma linha de orientação e ação que permaneceu, no essencial, como matriz medular estruturante, ao longo do seu itinerário: a consciência indelével das responsabilidades inerentes ao seu estatuto social e intelectual de intervenção no curso dos acontecimentos, pela palavra e pela ação, com o propósito inviolável de estimular a formação de cidadãos ativos, conscientes, críticos e intervenientes, ou seja, sem descurar o exercício de uma pedagogia cívica responsável e pertinente.A indecisão na escolha da sua formação académica, que se manifesta no longo percurso pelo ensino superior (de 1898 a 1910) e pela frequência de diversos cursos (em Coimbra, Porto e Lisboa), não se define por uma ausência de convicções, antes como uma procura incessante de intervir no real e um prenúncio claro do seu percurso multiforme e da assumpção do polígrafo. Após a frequência do curso de Medicina, na Escola Médico-Cirúrgica do Porto, conclui a sua formação em Lisboa com a apresentação da tese licenciatura – A Arte e a Medicina. Antero de Quental e Sousa Martins (1910) – em que contesta, no essencial, a teoria de Sousa Martins sobre Antero. As reflexões que esboça nesta obra remetem para a crítica ao cientismo naturalista, à visão determinista dos fenómenos sociais e humanos, ao materialismo, ao determinismo fatalista, ao positivismo, e, por outro lado, expressam a empatia e a admiração pelo «divino Antero», a elevação vitalista e heroica da Arte, fundamentalmente da Poesia, a crença no «idealismo», na «livre metafísica» e numa «vasta e individualizada religiosidade». Cortesão exerceu durante muito pouco tempo Medicina, talvez porque o recurso à vida clínica, diria a Pascoaes em 1913, importaria a «morte moral» e a anulação das suas mais íntimas ambições: as «ambições de Artista».O sentimento poético e a vocação para a escrita da poesia emergem durante os conturbados tempos de estudante em Coimbra e no Porto e, embora a sua produção seja mais intensa nos primeiros anos da República, a presença do Poeta será uma constante na produção literária e histórica, bem como na intensa atividade cívica. Antes do seu primeiro, e mais conhecido, livro de poesia – A Morte da Águia (1910), poema heroico – Cortesão publica algumas composições poéticas em periódicos de Coimbra e do Porto, sendo destacar a sua colaboração na Nova Silva (1907), revista que evidencia tendências anarquistas, libertárias e anticlericais e da qual foi fundador com Leonardo Coimbra, Álvaro Pinto e Cláudio Basto. As suas poesias surgem, na generalidade, imbuídas de panteísmo, romantismo, religiosidade, misticismo naturalista e de espiritualismo, inserem-se no movimento literário do Saudosismo, pela confluência de contrastes, sentimentos e ideais, forma de expressão e de estilo, mas integram um elemento que as singulariza, como assinalou Fernando Pessoa: o impulso/dinamismo heroico. A mesma tendência se esboça na escrita dos seus dramas históricos – O Infante de Sagres (1916) e Egas Moniz (1918) – e em Adão e Eva (1921), que ilustra o ambiente convulsionado do Portugal do pós-guerra. Neles se encontra subjacente o objetivo pragmático que atribui à produção dramática, como «instrumento de educação popular», moral e cívica colocado «ao serviço do ressurgimento heroico de Portugal». O ambiente de pessimismo finissecular, a consciência da decadência do presente, a necessidade do exercício de uma pedagogia cívica ativa e moralizadora, determinam o envolvimento de Cortesão em projetos de intervenção cívica, educativa e cultural: a Renascença Portuguesa (1912) e, em moldes diferentes e noutro contexto, a Seara Nova (1921), com Raul Proença e Câmara Reis, entre outros. No primeiro deles, o «profeta dessa ideia» procurava, em conjunto com uma plêiade de intelectuais e artistas, despertar a vontade adormecida ou paralisada pelo ceticismo e por sentimentos decadentistas, num esforço coletivo que pudesse dar à revolução republicana um «conteúdo renovador e fecundo», possibilitasse a revivescência da Pátria e a revelação do caráter nacional. No seio deste projeto, que fez d’A Águia o seu órgão (dando-lhe «uma feição orientadora, educativa e crítica»), manifestavam-se as divergências e a comunhão com António Sérgio e Raul Proença que recusavam a filiação exclusiva do movimento no Saudosismo, como pretendia Teixeira de Pascoaes. A intransigência deste último determinou o afastamento de ambos do movimento. Cortesão adota uma atitude conciliadora, para que as posições dos representantes de uma «ala de renascentes» – Proença e Sérgio – não inviabilizassem a concretização do ideal supremo de congregação e consensualização de vontades, com vista à renovação cultural e moral da nação. Ainda que filiando-se no «saudosismo prospetivo» de Pascoaes, Cortesão define-se como «poeta da ação» e procura dinamizar no movimento projetos pedagógicos, numa ação idealista, voluntarista, altruísta e educativa, fundando as Universidades Populares e a revista A Vida Portuguesa (1912-1915), da qual foi diretor e onde mantém uma acesa polémica com António Sérgio, vislumbrando o que os separava em relação à ideia de história e à própria função da Renascença. A Seara Nova, embora considerada por Cortesão como «a renascença da Renascença», pressupunha uma orientação muito mais interveniente na vida política, alicerçada na consciência da crise moral vigente. Propunha-se «renovar a mentalidade da elite portuguesa», capaz de auxiliar na formação de «uma opinião pública consciente, clamorosa, insofismavelmente imperativa»; promover o desenvolvimento de um vasto e completo plano de reformas da sociedade e das mentalidades que, para Cortesão, deveriam concomitantemente partir da resolução de dois problemas básicos: o educativo e o económico, apresentando como solução imediata a formação de um governo de competências nessas áreas fundamentais. Nos anos da Seara Nova o valor do estudo do heroico passado nacional mantém-se, mas surge vinculado à disciplina interior e crítica, à reflexão e introspeção, ativando a inata capacidade do homem para ascender à perfeição, de herança iluminista, como concretiza nas Cartas à Mocidade (1921-1940). Já não considera, como nos tempos da Renascença (então em confronto com Sérgio), que o estrangeirismo fosse causa da decadência, capaz de desvirtuar a identidade portuguesa. Privilegia agora a urgência de educar «para e pelo trabalho» e, ainda, a necessidade da reforma da educação considerar a assimilação de ideias do exterior, para que Portugal reintegrasse a «elite da Humanidade, à qual durante os séculos XV e XVI pertenceu».O pensamento político de Jaime Cortesão parte da simpatia pelas ideias anarquistas, libertárias e altruístas, tal como eram defendidas por outros académicos e publicistas, e que se vislumbra pela colaboração em revistas como a Nova Silva (1907) e A Vida (1909), pela dinamização do grupo dos Amigos do ABC e pela participação ativa no movimento académico de forte contestação às práticas de ensino vigentes, despoletado em Coimbra em 1907. Defensor incondicional do republicanismo democrático, do igualitarismo reformista e idealista, em que a missão das elites surge continuamente afirmada, Cortesão, que ingressou na Maçonaria em 1911, participou ativamente na propaganda republicana e, uma vez consumada a mudança política, empenhou-se na efetiva democratização do regime e das consciências. Este combate fez-se no seio dos movimentos e projetos de ação cívica e educativa mas não excluiu a intervenção política direta: no movimento revolucionário de 14 de maio de 1915; na propaganda intervencionista [dirigindo o diário democrático O Norte (1914-15), redigindo A Cartilha do Povo (1916) e participando na I Grande Guerra, como capitão-médico voluntário (Memórias da Grande Guerra, 1919)]; na eleição como deputado pelo Partido Democrático de Afonso Costa, em 1915, do qual se afasta, em 1917, propondo a formação de um governo nacional com representação de todas as forças políticas (mais tarde, na Seara Nova, sugere a formação de um governo de competências e, em conjunto com outros seareiros, o recurso a uma «governação excecional», de caráter transitório e reformador); na luta contra o Sidonismo e as sublevações monárquicas (Escalada de Monsanto – 1919).Embora no final da Grande Guerra adote um posicionamento apartidário, próximo de Sérgio e Proença, nunca deixou de assumir uma postura crítica, de vigilância e exigência, face ao poder político, como se pode entrever pelos artigos que publica na Seara Nova, pela sua intervenção no Grupo de Propaganda e Ação Republicana (1922) e na União Cívica (1923). A atividade política, tendo com esteio fundamental a imperiosa e indelével revolução cultural, moral e espiritual, na linha de Antero (veja-se o seu drama Adão e Eva e a polémica com Rodrigues Miguéis, nos inícios dos anos 30, em conjunto com Proença e Sérgio), prossegue com a participação ativa na tentativa revolucionária de fevereiro de 1927, que lhe valeu a demissão do cargo de diretor da Biblioteca Nacional, que exercia desde 1919 em estreita colaboração com Raul Proença, e a partida forçada para o exílio.Em França e em Espanha até 1940 (ano em que regressa a Portugal, tendo sido preso em Peniche e no Aljube), e depois no Brasil até 1957, Cortesão empenha-se em dois combates, nunca relegando a responsabilidade cívica, moral e intelectual: 1º– a luta pelo restabelecimento da democracia em Portugal, lutando veementemente contra a Ditadura Militar e o Estado Novo [assim foi em França, com a ativa participação na Liga de Paris, 1927-1930; em Espanha, a partir de 1931, com a dinamização do grupo de emigrados republicanos oposicionistas – Grupo dos Budas; e no Brasil com outras figuras da oposição democrática: Jaime de Morais, Moura Pinto e Sarmento Pimentel]; 2º– a prossecução da investigação e produção histórica, que já havia iniciado em Portugal, publicando estudos autónomos, colaborando em diversas publicações periódicas e em importantes empreendimentos coletivos (História do Regime Republicano em Portugal, 1929; História de Portugal, 1931-1934; História da Expansão Portuguesa no Mundo, 1940). A liberdade de ação e as afinidades históricas, culturais e linguísticas com o Brasil, permitem-lhe, a par da atividade conspirativa e oposicionista, um aprofundamento e alargamento dos estudos relacionados com a história da expansão portuguesa, com destaque para o Brasil colonial. O interesse pela história, que se radica nos inícios da sua vida pública, corresponde a uma exigência cívica, alicerçada na ideia de história enquanto lição de moral, mestra da vida (Cícero), adquirindo um propósito moralizante e pragmático; enquanto arte (Oliveira Martins e Fidelino Figueiredo), procurando e realizando «a verdade por meio da imaginação construtiva»; e, ainda, enquanto «escola de formação moral», capaz de, pelos exemplos cívicos e morais a vulgarizar, «extrair do passado as premissas do futuro, transformando-as numa regra de vida». Na escrita da história, sobretudo a partir do final da segunda década do século XX, revela-se um progressivo esforço reflexivo de interrogação e crítica, encarando a história como uma exigência de pesquisa fundamentada, que supera (embora não anule) o universo de divulgação com intencionalidade doutrinária e pragmática. A vinculação inicial à teoria do romantismo heroico de Carlyle, que mais tarde reformulará, bem como o recurso ao lendário, a necessidade de regeneração pela educação, a partir de uma «ensimesmação na história», no heroico passado nacional, conferindo ao ensino uma orientação nacionalizadora, percorrem a obra do pedagogo e do historiador, sem que comprometa a sua fidelidade à verdade e ao rigor em história, a sua «irrepreensível seriedade intelectual» (Jacinto Batista). Da sua vasta produção histórica, com enfoque nos Descobrimentos Portugueses, cuja fase mais produtiva ocorre no exílio, destacam-se como contributos inovadores: a abrangência de uma diversidade de fatores no estudo da formação de Portugal e no início da expansão; a abordagem pluridisciplinar dos fenómenos históricos; a síntese crítica e a visão de conjunto que apresentou da expansão e da colonização portuguesas; as teses que formulou e as hipóteses que levantou, retomando alguns dos tópicos mais polémicos da historiografia portuguesa oitocentista sobre os Descobrimentos, permitindo o relançamento do debate e por ele a contestação, mas também a reformulação, ampliação e renovação dos estudos históricos sobre este período.No Brasil colabora em diversos periódicos, realiza inúmeras conferências, rege cursos em algumas universidades brasileiras e é encarregue da organização da Exposição Histórica comemorativa do IV Centenário da cidade de São Paulo (1954). Aquando do seu regresso definitivo a Portugal, em 1957, prossegue o combate cívico pelo restabelecimento da legalidade democrática, colabora no Diretório Democrático-Social, tendo o seu nome sido indigitado para candidato da oposição à Presidência da República, convite que declinou (como antes havia recusado assumir outros cargos políticos, num curioso jogo de sugestão mútua com António Sérgio), envolve-se na campanha de Humberto Delgado, é preso pela última vez em 1958 (com António Sérgio, Vieira de Almeida e Azevedo Gomes), ano em que foi eleito presidente da Sociedade Portuguesa de Escritores.A exigência de cultivar e elevar o sentimento patriótico e a necessidade de alimentar a memória histórica e a consciência nacional percorrem o espírito de Cortesão, fundamentam o seu discurso pedagógico e moral e constituem uma exigência cívica. A coerência do seu percurso é marcada pela constante incorporação destes sentimentos e ideias. O que o singulariza? É a forma como a consciência histórica, o conhecimento do passado, determinou a sua conduta cívica e a forma como se integrou na sociedade do seu tempo.O que permanece, ao longo da sua vivência pública, é uma exigência e um ideal de cidadania ativa e imperativamente interveniente que o levaram a «militar e participar da luta em todos os campos, não excluindo o político». Esta consciência moral e histórica revê-se na prática de uma pedagogia cívica, imbuída de um imperativo ético e de exigência moral e altruísta, empenhada na formação moral e cívica dos cidadãos, como condição essencial da revitalização da identidade nacional e da democratização efetiva do regime republicano.1. Bibliografia Ativa (de indispensável consulta os inventários de Neves Águas)A Morte da Águia, Lisboa, 1910.A Arte e a Medicina. Antero de Quental e Sousa Martins, Coimbra, 1910.«O Poeta Teixeira de Pascoaes», A Águia, 1ª série, Porto, nº8, 1/IV/1911; nº9, 1/V/1911.«A Renascença Portuguesa e o ensino da História Pátria», A Águia, 1ª série, nº9, Porto, Set. 1912.«Da “Renascença Portuguesa” e seus intuitos», A Águia, 2ª série, nº10, Porto, Out. 1912.«As Universidades Populares», artigos publicados em A Vida Portuguesa, Porto, 1912-1914....Daquém e Dalém Morte [Contos], Porto, 1913.Glória Humilde [Poesia], Porto, 1914.Cancioneiro Popular. Antologia, Porto, 1914.Cantigas do Povo para as Escolas, Porto, 1914.«O parasitismo e o anti-historismo. Carta a António Sérgio», A Vida Portuguesa, nº18, Porto, 2/X/1914.«Teatro de Guerra», artigos publicados em O Norte, Porto, 1914.O Infante de Sagres [drama], Porto, 1916.Cartilha do Povo. 1º Encontro. Portugal e a Guerra, Porto, 1916.«As afirmações da consciência nacional», artigos publicados em Atlântida, Lisboa, 1916.Egas Moniz [drama], Porto, 1918.Memórias da Grande Guerra (1916-1919), Porto, 1919.«A Crise Nacional», Seara Nova, nº2, Lisboa, 5/XI/1921.Adão e Eva [drama], Lisboa, 1921.A Expedição de Pedro Álvares Cabral e o Descobrimento do Brasil, Lisboa, 1922.Itália Azul, Rio de Janeiro/Porto, 1922.O Teatro e a Educação Popular, Lisboa, 1922.Divina Voluptuosidade [poesia], Lisboa, 1923.«Intuitos da União Cívica», União Cívica. Conferências de Propaganda, Porto, 1923.«A Reforma da Educação», Seara Nova, nº25, Lisboa, Jul. 1923.Do sigilo nacional sobre os Descobrimentos, Lisboa, 1924.A Tomada e Ocupação de Ceuta, Lisboa, 1925.Le Traité de Tordesillas et la Découvert de L’Amérique, Lisboa, 1926.A Expansão dos Portugueses na História da Civilização, Lisboa, 1983 (1ª ed., 1930).Os Factores Democráticos na Formação de Portugal, Lisboa, 1964 (1ª ed., 1930).História da expansão portuguesa, Lisboa, 1993 [colaboração na História de Portugal dirigida por Damião Peres, 1931-1934].Influência dos Descobrimentos Portugueses na História da Civilização, Lisboa, 1993 [colaboração no vol. IV da História de Portugal dirigida por Damião Peres, 1932].Cartas à Mocidade, Lisboa, Seara Nova, 1940.Missa da Meia-noite e Outros Poemas, [sob o pseudónimo de António Froes], Lisboa, 1940.13 Cartas do cativeiro e do exílio (1940), Lisboa, 1987.«Relações entre a Geografia e a História do Brasil» e «Expansão territorial e povoamento do Brasil», História da Expansão Portuguesa no Mundo, dirigida por António Baião, Hernâni Cidade e Manuel Múrias, vol. III, Lisboa, 1940.O carácter lusitano do descobrimento do Brasil, Lisboa, 1941.Teoria Geral dos Descobrimentos Portugueses – A Geografia e a Economia da Restauração, Lisboa, 1940.O que o povo canta em Portugal. Trovas, Romances, Orações e Selecção Musical, Rio de Janeiro, 1942.Cabral e as Origens do Brasil, Rio de Janeiro, 1944.Os Descobrimentos pré-colombinos dos Portugueses, Lisboa, 1997 (1ª ed., 1947).Eça de Queiroz e a Questão Social, Lisboa, 1949.Os Portugueses no Descobrimento dos Estados Unidos, Lisboa, 1949.Alexandre de Gusmão e o Tratado de Madrid, Lisboa, 1950.Parábola Franciscana [poesia], Lisboa, 1953.O Sentido da Cultura em Portugal no século XIV, Lisboa, 1956.Raposo Tavares e a Formação Territorial do Brasil, Rio de Janeiro, 1958.A Política de Sigilo nos Descobrimentos nos Tempos do Infante D. Henrique e de D. João II, Lisboa, 1960.«Prefácio a modo de memórias», O Infante de Sagres, 4ª ed., Porto, 1960.Os Descobrimentos Portugueses, 2 vols., Lisboa, 1960-62.Introdução à História das Bandeiras, 2 vols., Lisboa, 1964.O Humanismo Universalista dos Portugueses, Lisboa, 1965.História do Brasil nos Velhos Mapas, Rio de Janeiro, 1965-1971.Portugal – A Terra e o Homem, Lisboa, 1966.(Veja-se ainda a publicação das Obras Completas de Jaime Cortesão: entre 1964 e 1984, pelas editoras Portugália e Livros Horizonte, contando com mais de três dezenas de volumes; desde 1990, e ainda em publicação, pela Imprensa Nacional Casa da Moeda) 2. Bibliografia PassivaNeves ÁGUAS, Bibliografia de Jaime Cortesão, contribuição para um inventário completo, Lisboa, imp.1962 [revisto e aumentado em Bibliografia de Jaime Cortesão, Lisboa, 1985]Id., «Bibliografia sobre a vida e a personalidade de Jaime Cortesão», Revista da Biblioteca Nacional, série 2, vol.1, Lisboa, Jan./Dez. 1986.Id., «Novos subsídios para a bibliografia de Jaime Cortesão», Revista da Biblioteca Nacional, série 2, vol.2, nº 2, Lisboa, Jul./Dez. 1986.Jacinto BAPTISTA, Jaime Cortesão/Raul Proença: Idealistas no mundo real, Lisboa, 1990.Id. «Jaime Cortesão, príncipe (republicano) da sonhada Renascença», João Medina (dir. de) História de Portugal dos tempos pré-históricos aos nossos dias, vol. XI, Alfragide, 1993.Cadernos das Revista de História Económica e Social, números 6-7: Cidadania e história em homenagem a Jaime Cortesão, Lisboa, 1985 [colaboração diversa].José Manuel GARCIA, O essencial sobre Jaime Cortesão, Lisboa, 1987.Vitorino Magalhães GODINHO, «Presença de Jaime Cortesão na Historiografia Portuguesa», Jaime Cortesão, Os Factores Democráticos na Formação de Portugal, Lisboa, 1964.Homenagem a Jaime Cortesão, separata da revista Ocidente, vol. LXI, Lisboa, 1961 [colaboração de diversa].Jaime Cortesão/Raul Proença. Catálogo da exposição comemorativa do primeiro centenário (1884-1984), Lisboa, 1985.Óscar LOPES, Jaime Cortesão, Lisboa, s.d. [1962].Nova Renascença, vol. 5, nº17, Porto, Jan./Mar. 1985 [nº de homenagem a Cortesão com estudos diversos].Prelo, n.º especial em homenagem a Jaime Cortesão, Lisboa, Dez.1984 [artigos diversos].República, números de homenagem a Jaime Cortesão, na secção República das Letras, Lisboa, 11 e 18/VI/1960.República, artigos diversos de homenagem a Jaime Cortesão aquando do seu falecimento, Lisboa, 15 a 30/VIII/1960.Revista da Biblioteca Nacional, série 2, vol. 1, Lisboa, Jan./Dez 1986 [artigos diversos].Alfredo Ribeiro dos SANTOS, Jaime de Cortesão. Um dos grandes de Portugal, Porto, 1993.Ricardo SARAIVA [David Ferreira], Jaime Cortesão. Subsídios para a sua biografia, Lisboa, 1953.Seara Nova, número de homenagem a Jaime Cortesão (nº1266-69), Lisboa, 27/12/1952.António José da SILVA, Naturalismo e Religiosidade em Jaime Cortesão, Lisboa, 2000.Elisa Neves TRAVESSA, «Pedagogia Cívica em Jaime Cortesão», CLIO – Revista do Centro de História da Universidade de Lisboa, Nova Série, nº8, 1º semestre de 2003.Id., Jaime Cortesão. Política, História e Cidadania (1884-1940), Lisboa, 2004.

Joaquim de Carvalho

Joaquim de Carvalho
Joaquim de Carvalho, por Carlos Leone Joaquim de Carvalho (Figueira da Foz, 1892 – Coimbra, 1958) Joaquim de Carvalho representa na cultura portuguesa contemporânea uma das primeiras figuras do século XX a optar pela especialização universitária enquanto modo de intervenção no espaço público. Apesar de a maior parte do seu trabalho, e da sua vida, ter decorrido na primeira metade do século, a sua Obra é bem representativa de uma transição crucial ocorrida em meados do século, sobretudo entre meados dos anos 1940 e meados da década de 1960, a especialização do discurso crítico que, no seu caso, foi feita pela história da filosofia.Formado na Universidade de Coimbra, primeiro em Direito (1914), depois em Filosofia (1915), começou a sua carreira universitária como assistente em Filosofia (1916) e doutorou-se em Filosofia na Faculdade de Letras de Coimbra em 1917, com uma dissertação sobre António de Gouveia. Rapidamente se destacou e sem surpresa sabemos da sua oposição pública ao projeto de Leonardo Coimbra, então ministro da Educação (estava-se em 1919) de mudar a Faculdade de letras da Universidade de Coimbra para a Universidade do porto, com o pretexto de assim desenclausurar um saber superior a bem da então jovem República. Joaquim de Carvalho, liberal e maçónico, foi um de muitos a contrariar esta ideia e, como sempre fez na sua vida, opôs-se a interferências religiosas e políticas na vida académica. Nesse mesmo ano, aliás, contribuiu para o projeto da Universidade Livre de Coimbra, instituição de um novo tipo que à altura se procurava implantar por todo o país com o fito de difundir saber sem cauções políticas e religiosas. Mas a sua fidelidade esteve sempre com a Universidade e Coimbra, onde foi catedrático de História da Filosofia desde 1919 até à sua morte, e na qual Joaquim de Carvalho deixou um legado ainda hoje inigualado.Pouco depois tem início o período de maior atividade de Joaquim de Carvalho na Imprensa, quer a nível editorial quer como colaborador de revistas influentes. Entre estas, destaque para a Seara Nova, com a qual colaborou embora não seja possível qualificá-lo como ‘seareiro’, tendo sido particularmente ativo na década entre 1926 e 1936. Esta atividade pública trouxe-lhe vários dissabores, quer com os mais novos (por exemplo numa polémica no final da década de 1920 com José Régio, a respeito do caráter da revista presença, que Joaquim de Carvalho descreveu como sendo destrutivo) quer com o regime instalado em 1926. Com efeito, na sua conceção de democracia, esta era inseparável de liberalismo (o que lhe foi contestado por alguns autores relevantes, como Domingos Monteiro) e a sua defesa destes ideais, bem como a sua ligação à Maçonaria, não deixaram de ser penalizados pelo Estado Novo.Como já referimos, a sua atividade pública teve também como palco de grande notoriedade a administração da Imprensa da Universidade de Coimbra entre 1921 e 1935. Esta atividade só cessou por ordem direta do governo, isto é, de Oliveira Salazar, seu colega de cátedra coimbrã, quando, no mesmo ano em que fez a primeira grande perseguição aos universitários e outros professores não alinhas com o regime, ordenou o encerramento da editora cuja atividade era reconhecida inclusivamente por aqueles que se encontravam nos antípodas políticos de Joaquim de Carvalho (Alfredo Pimenta escreveu-o então). À frente da editora apoiou (encomendando traduções) António Sérgio no exílio deste em Paris, publicou jovens autores como Adolfo Casais Monteiro (Considerações Pessoais, 1933) e exercera sempre a sua atividade com a mesma independência que reclamava para a sua Universidade. Essa purga, que afastou entre muitos outros um dos seus assistentes (Sílvio Lima), marcou um momento de viragem na sua atividade, no sentido de maior isolamento e fechamento no trabalho intelectual. Se que isso, contudo, o fizesse deixar de se referir a Salazar nos termos mais críticos, que estendia ao apoio que a Igreja dava ao Estado Novo, “ressentido e frustrado” seminarista que nunca deixou de o ser, “chefe do nacional-seminarismo”. Mas o mal estava feito e apesar de, coisa incomum em Portugal, imediatamente se ter feito sentir a solidariedade de todos, o panorama não se alteraria ater à sua morte. Registe-se no entanto o volume de homenagem, a si e a Hernâni Cidade e Azevedo Gomes, publicado em 1935, com textos de, entre outros, Rodrigues Lapa, Flausino Torres e Vitorino Nemésio (v. referências). Depois disso, mesmo dinamizando publicações universitárias de Filosofia, Joaquim de Carvalho não voltou a ter a preponderância pública que tivera até finais da década de 1930.Da sua vasta Obra destaque para os estudos sobre figuras da cultura portuguesa, com grande destaque para a literatura. Apesar de não ser essa a sua área de formação, o neokantismo que o animara na juventude marcou-o com um interesse permanente pelos métodos de pesquisa e hermenêutica raro em Portugal, reconhecendo sempre a especificidade da estética mesmo quando a enquadrava e contextualizava (faceta constante dos seus textos, sempre muito pedagógicos). Apesar de algumas dessas abordagens se encontrarem hoje integradas no sistema de ensino (a sua análise fenomenológica da saudade foi integrada nas leituras dos estudantes de Filosofia do ensino secundário), a sua originalidade mantém-se, pois apesar de algo datados, o trabalho posto nos seus textos salva-os do esquecimento. Para melhor se compreender a extensão do seu labor, fica o registo temático dos nove volumes da sua Obra Completa: volumes I e II, Filosofia e História da Filosofia; volumes III e IV, História da Cultura; V, História e Crítica Literárias e História da Ciência; VI, História das Instituições e pensamento politico; VII, Escritos sobre a Universidade de Coimbra; VIII, Ensaio e Fragmentos filosóficos e bibliográficos; IX, índices. Para abarcar toda esta diversidade, consulte-se o estudo introdutório do organizador, J. V. Pina Martins.Referências bibliográficas:Pina Martins, J. V., org., Obra Completa de Joaquim de Carvalho, 9 vols, FCG, Lisboa, 1978-1997.VVAA, Homenagem aos professores Azevedo Gomes, Hernâni Cidade e Joaquim de Carvalho, ed. alunos da Univ. Coimbra, Fac. Letras Lisboa, Instituto Superior de Agronomia, Lisboa, 1935.

Jorge Peixinho

Jorge Peixinho
Jorge Peixinho, por Manuel Pedro Ferreira Jorge Peixinho (1940-1995) foi um dos mais importantes compositores portugueses do século XX, tendo tido um papel fundamental na atualização do panorama musical do país entre 1961 e meados da década de 1980, não apenas através da sua atividade criativa, mas também enquanto incansável divulgador, ensaísta e intérprete. A sua obra, em que se deteta uma progressiva evolução estilística, conjuga com uma crescente originalidade a flexibilidade da ideia ou da execução musical e o rigor da escrita.Nasceu no Montijo, onde iniciou os estudos de piano com sua tia Judite Rosado. Estudou Composição no Conservatório Nacional, em Lisboa, com Artur Santos (1948-1954) e Jorge Croner de Vasconcellos (1954-1956). Terminou em 1958 o Curso Superior de Piano no Conservatório Nacional, onde trabalhou com Fernando Laires, tendo também frequentado brevemente a Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Como bolseiro da Fundação Gulbenkian, aperfeiçoou-se em Composição em Roma entre 1959 e 1961 com Boris Porena e Goffredo Petrassi, adotando então o cromatismo integral e o atonalismo serial como base para a assimilação de novas técnicas criativas. Na Holanda, em 1960, familiarizou-se com as possibilidades oferecidas pelos estúdios de música eletrónica. Trabalhou ainda com Luigi Nono em Veneza e com Pierre Boulez e Karlheinz Stockhausen em Basileia, tendo frequentado, na década de1960, os cursos internacionais de composição de Darmstadt, onde participou em obras coletivas orientadas por Stockhausen.Em Lisboa, Peixinho divulgou, com grande escândalo, a música de John Cage (1961, 1964); dirigiu cursos de música contemporânea em colaboração com Louis Saguer e Pierre Mariettan (1962-1964): desdobrou-se como pianista, crítico musical, conferencista e ensaísta; e participou ainda em estrepitosos "happenings" multimedia (1965, 1967). Em 1970, fundou o influente Grupo de Música Contemporânea de Lisboa, que dirigiu até à sua morte, tendo-se apresentado com ele em diversos países da Europa e da América do Sul; o GMCL abriu uma janela sobre a criação contemporânea internacional e permitiu que nomes como Constança Capdeville e Emmanuel Nunes, entre outros, se fizessem ouvir.Na obra de Peixinho, a crescente influência de Stockhausen é detetável a partir de 1963, culminando na acentuada componente aleatória de "Eurídice Re-amada" (1968). De 1969 em diante, a música de Peixinho ganhou um lirismo particular, facilmente reconhecível, baseado no entretecer de citações, na distensão temporal e no refinamento tímbrico. No início dos anos oitenta, o compositor passou a privilegiar a falsa citação e a autocitação e a explorar universos sonoros estilisticamente "impuros", que testemunham a influência pontual da sensibilidade pós-moderna, com a qual teve uma relação ambígua. A sua influência foi grande no meio nacional; compositores como Clotilde Rosa, Paulo Brandão ou Isabel Soveral devem-lhe um impulso decisivo para a sua evolução artística.Jorge Peixinho recebeu vários prémios nacionais de composição: o Prémio do Conservatório Nacional em 1958, o Sassetti em 1959, o da Casa da Imprensa em 1972, o Gulbenkian em 1974, o da S.P.A. em 1976 (duas categorias), o do Conselho Português da Música em 1984, o da S.P.A. em 1985 (categoria de música de câmara) e, finalmente, o Prémio Joly Braga Santos em 1988. Foi professor no Conservatório de Música do Porto (1965-1966) e na Escola de Música do Conservatório Nacional em Lisboa (1985-1995). Politicamente ativo desde finais dos anos sessenta, conotado com uma esquerda próxima do P.C.P. (de 1993 a 1995 chegou a presidir, pela CDU, à Assembleia Municipal do Montijo), soube conjugar na sua obra musical o empenhamento moral e a integridade artística.Manuel Pedro FerreiraBIBLIOGRAFIA Selecionada1) De Jorge Peixinho:"Música e Notação" (separata de Poesia Experimental-2, Lisboa: Cadernos de Hoje, 1966)«Canto de amor e de morte. Introdução a um ensaio de interpretação morfológica» in III Ciclo de Cultura Musical: Fernando Lopes-Graça. Associação Académica da Faculdade de Direito de Lisboa/ Agência da J.M.P., 1966."Música sem fantástico ou música arte-fantástica?", in O Fantástico na Arte Contemporânea, Lisboa: Gulbenkian, 1992, pp. 219-22«Lopes-Graça: nova luz sobre uma figura ímpar da cultura portuguesa» in Uma homenagem a Fernando Lopes-Graça, Matosinhos, Edições Afrontamento/Câmara Municipal de Matosinhos, 1995, pp. 6-152) Sobre Jorge Peixinho:Mário Vieira de Carvalho, Estes sons, esta linguagem, Lisboa: Estampa, 1978Sérgio Azevedo, A invenção dos sons. Uma panorâmica da composição em Portugal, hoje, Lisboa: Caminho, 1998José Machado (coord.), Jorge Peixinho in memoriam, Lisboa: Caminho, 2002Manuel Pedro Ferreira (coord.), Dez compositores portugueses do século XX, Lisboa: Dom Quixote, 2006Cristina Teixeira, Música, Estética e Sociedade nos escritos de Jorge Peixinho, Lisboa: Colibri, 2006DISCOGRAFIA DA OBRA DE PEIXINHOMúsica I (Cinco pequenas peças, Collage I, Estudo I, Harmónicos, Sucessões Simétricas I). Jorge Peixinho e Filipe de Sousa, pianos. LP: Tecla, 1972 (reed. CD: Jorsom, 1994)CDE,. Grupo de Música Contemporânea de Lisboa, dir. Jorge Peixinho. LP: Sassetti, 1974 (reed. CD: Strauss, 1995)Elegia a Amílcar Cabral, música electrónica. LP: Sassetti, 1978 (reed. CD: Strauss-PortugalSom, 1997)As Quatro Estações. Grupo de Música Contemporânea de Lisboa, dir. Carlos Franco. LP: Sassetti, 1982 (reed. CD: PortugalSom, 1991)Music of Portugal, series of 20 LPs, 2nd subset of 5, LPs 4106, 4109 (inclui Sucessões Simétricas I, Episódios). Fernando Laires, piano; Manhattan String Quartet. Educo (USA), [1984]Koellreutter (inclui Greetings für Koellreutter), Grupo Juntos Música Nova. LP: Fundação Nacional de Arte/ Memória Musical Brasileira, 1985.Música Portuguesa Contemporânea – Obras para guitarra (inclui L'Oiseau-Lyre). José Lopes e Silva. LP: PortugalSom, 1985 (reed. CD, 1995)Daniel Kientzy (inclui Sax-Blue). Daniel Kientzy, saxofone. LP: Poly, 1988.Jorge Peixinho: Sobreposições, Políptico 1960, Sucessões Simétricas II, As Quatro Estações. Orquestra Sinfónica de Budapeste/ GMCL. CD: PortugalSom, 1991.Música Portuguesa Contemporânea – Obras para clarinete (inclui O novo canto da Sibila). António Saiote, clarinete. CD Strauss-PortugalSom, 1995.Jorge Peixinho: Concerto para saxofone alto e orquestra, Sax-blue, Passage intérieur, Fantasia-Impromptu. Daniel Kientzy, saxofones /Filarmonica Transilvania et al., CD: Nova Musica, 1996Música Portuguesa – Séc. XX (inclui À flor das águas verdes e Nocturno no Cabo do Mundo), Grupo de Música Vocal Contemporânea, dir. Mário Mateus /Jorge Peixinho, Francisco Monteiro e Jaime Mota, pianos, CD duplo: Numérica, 1996Lov (inclui Lov II). Trio Lov. CD: AM&M, 2002Jorge Peixinho – Música para piano. Miguel Borges Coelho, piano. CD duplo: Numérica, 2005

José Cardoso Pires

José Cardoso Pires
José Cardoso Pires, por Eunice Cabral José Augusto Neves Cardoso Pires nasce a 2 de outubro de 1925, na aldeia de Peso, no distrito de Castelo Branco, mas vem para Lisboa com poucos meses de idade. Fixa residência nesta cidade, onde morre a 26 de outubro de 1998. É reconhecido como um dos mais importantes escritores portugueses da segunda metade de século XX.O seu trajeto pessoal e a sua carreira de escritor são marcados pela inquietação e pela deambulação. Não se identifica com nenhum grupo, nem se fixa em nenhum género literário, apesar de ser considerado sobretudo como um romancista. A característica mais evidente da sua não muito vasta obra (são ao todo dezoito os seus livros publicados em quase cinquenta anos de vida literária) é o facto de cada livro seu inaugurar e completar um ciclo de criação literária. Nenhuma das suas obras se tornou uma fórmula que viesse a repetir, apesar de ser possível reconhecer linhas de evolução da sua escrita literária. O seu primeiro livro foi publicado em 1949 e o último em 1997. A relação mais consistente e duradoura, no campo literário, deu-se com o movimento neorrealista português até ao 25 de Abril de 1974, não tanto por razões de defesa ou de prática de um tipo canónico de estética empenhada, mas, sobretudo, pela adesão a uma política de resistência ao regime autoritário português. A inserção da sua obra no Neorrealismo literário português é, por estas razões, complexa e eivada de contradições. O traço distintivo, que mantém até às últimas obras, é o respeitante ao compromisso da literatura com a realidade sua contemporânea. No entanto, este escritor aprendeu outras lições – entre elas, a lição dos surrealistas, cujo grupo frequentou temporariamente nos inícios da década de 40 – que levaram a que entenda que essa relação (literatura /realidade contemporânea) é fatalmente sujeita a uma interpretação individualizada.Os seus primeiros contos demonstram quer preocupações de cariz social (vetor afeto ao cânone neorrealista), quer outras influências, tais como a escrita esteticamente documental de Hemingway, a narrativa cinematográfica, o que resulta em narrativas de discurso contido, com diálogos concisos, cuja focalização produz um estranhamento, um deslocamento, sempre reconhecíveis na sua obra até finais de 60.Cada livro deste autor recomeça tudo de novo. Apesar da filiação e dos caminhos para os quais cada obra aponta serem indicativos de um rumo de modo muito relativo na medida em que muda de direção no livro seguinte, é, mesmo assim, possível perceber que as obras de finais de 50 e as de 60 concentram o auge da sua criatividade pelas afinidades que exibem entre si e em diálogo com a literatura europeia. São elas: O Anjo Ancorado (1958), Cartilha do Marialva (1960), Jogos de Azar (1963), O Hóspede de Job (1963) e O Delfim (!968). Se três são romances, já Cartilha do Marialva é um ensaio sobre a via errada, seguida por Portugal, que optou pelo irracionalismo e pelo imobilismo, atualizados e enaltecidos pelo regime salazarista. A figura do marialva, privilegiado em nome da sua família e dos seus haveres patrimoniais, encarna a espécie de provincianismo português que o autor caracteriza em traços negros e caricaturais de modo a fustigá-lo para melhor o erradicar do país. Jogos de Azar é uma recolha de entre os primeiros contos (publicados nos dois primeiros livros), escolhidos pelo autor sob a égide da figura do “desocupado”, sinónimo, na gramática do autor, do cidadão português, destituído de meios para viver.Neste período de intensa e feliz criatividade, Cardoso Pires mede a sua escrita pela de vários autores europeus com os quais vai dialogando regularmente, como é o caso de Elio Vittorini. A nova literatura parece, para os dois autores, ser a que fixa a essência da realidade industrial. O Anjo Ancorado dá conta dessa realidade modernizada, inscrita na sociedade portuguesa, mesmo no tempo de um regime opressor, mas é vivida apenas por um burguesia muito restrita numericamente, letrada, com intenções políticas democráticas mas inerte, amorfa e envergonhadamente privilegiada em contraste com a maioria da população, que sobrevive numa pobreza no limite da sobrevivência mais primária. O Hóspede de Job, romance que representa também esta divisão nítida, já surgida no romance anterior, narra a história de uma deambulação de um Job que alberga involuntariamente em sua casa o hóspede que o irá mutilar, reduzindo-o a um pedinte de feira. Embora recebidos como neorrealistas no período em que foram publicados, são dois romances acentuadamente pessimistas, destituídos de dimensão futurante, característica principal das narrativas do movimento referido. O Delfim é o romance, geralmente considerado a sua obra-prima. Apesar de não ter semelhanças com os livros anteriores, o autor foi aprimorando a narrativa focalizada a partir de um olhar “forasteiro”, aparentemente descomprometido com uma realidade percebida como anacrónica. A Gafeira, aldeia inexistente, inventada a partir de tantas outras portuguesas, é o local de eleição e objeto de um determinado modo de ver e de interpretar o Portugal marcelista, a seis anos de uma mudança drástica. O centro do relato diz respeito a um crime, que consubstancia o estilhaçar de um mundo que se apresenta como perfeito e imóvel, mas que começa a ser infiltrado do exterior por mudanças modernas que o irão alterar para sempre. Esta tensão é narrada por um discurso perspetivístico, distanciado, sendo, então, impossível o registo narrativo de tipo realista. Mesmo sendo um romance profundamente experimentalista, em articulação com as vanguardas europeias desta década, mantém, na sua urdidura, a noção de “documento humano” pela necessidade de traçar, com um rigor irónico, paródico, por vezes “hiper-realista”, as coordenadas portuguesas num período de profundas mudanças. Tendo sido recebido até 1974 como romance neorrealista, tem despertado um interesse crescente como narrativa pós-modernista. Pode efetivamente ser lido como o primeiro romance português no qual confluem as principais linguagens estéticas norteadoras do futuro pós-modernismo português devido à mistura de géneros, à polifonia, à fragmentação narrativa e à metaficção. Publica, ainda, mais dois romances singulares, que não dão continuidade ao de 1968. São Balada da Praia dos Câes (1982), tornado best seller à época e Alexandra Alpha (1987). O primeiro reconstitui, de forma inovadora e plurifacetada, o crime da Praia do Guincho, ocorrido na realidade em 1960 mas perspetivado, neste romance, como fazendo parte de um passado social e político. O segundo é o único, nesta obra, que representa o Portugal pós-1974, vendo nele toda a violência do conflito político e económico dos primeiros tempos da revolução, sem possuir, no entanto, o grau de simbolização inscrito em O Delfim. É um romance desencantado, inesperado e o último desta obra romanesca. O autor vai continuando fiel à sua primeira vocação, a de contista, cuja publicação vai acompanhando a dos romances. Para além de Jogos de Azar, tem duas coletâneas de contos, O Burro-em-Pé (1979) e A República dos Corvos (1988). Tem duas peças de teatro, O Render dos Heróis (1960) e Corpo-Delito na Sala de Espelhos (1980). O fenómeno da crónica da autoria de um romancista voltou a tornar-se popular na década de 90, o que fez com que reunisse as crónicas surgidas no jornal “Público” em A cavalo no Diabo (1994).A sua última obra mais importante é, de novo, uma exceção. Trata-se de De profundis, Valsa Lenta (1997), relato do acidente vascular cerebral que o atingiu em 1995 e que é apresentado pelo autor como uma “viagem à desmemória”. É a única narrativa da sua obra que pode ser considerada autobiográfica. A vertente autobiográfica é, no entanto, peculiar na medida em que é um relato obviamente posterior ao acidente que dele fixa pormenores aleatórios, desconexos de quem veio das trevas de uma doença muito grave para a luz da memória. O principal interesse desta narrativa reside na figuração de um eu como “o outro de mim”, feito de traços desarticulados aos quais é impossível atribuir uma caracterização completa, aspeto que é igualmente reconhecível na fragmentação de muitas das suas vozes narrativas dos romances.BIBLIOGRAFIAAtivaOs Caminheiros e Outros Contos (1949).Histórias de Amor (1952).O Anjo Ancorado (1958). O Render dos Heróis (1960).Cartilha do Marialva (1960).Jogos de Azar (1963).O Hóspede de Job (1963).O Delfim (1968).Dinossauro Excelentíssimo (1972).E agora, José? (1977).O Burro-em-Pé (1979).Corpo-Delito na Sala de Espelhos (1980).Balada da Praia dos Cães (1982).Alexandra Alpha (1987).A República dos Corvos (1988).A cavalo no Diabo (1994).De profundis, Valsa Lenta (1997).Lisboa – Livro de Bordo (1997). PassivaCABRAL, Eunice, José Cardoso Pires – Representações do Mundo Social na Ficção (1958-82), Edições Cosmos, Lisboa, 1999.COELHO, Eduardo Prado, “Cardoso Pires: o círculo dos círculos”, in A Noite do Mundo, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, Lisboa, 1986.CRUZ, Liberto, José Cardoso Pires, Arcádia, Lisboa, 1972.FOKKEMA, Douwe W., “Empirical questions about symbolic worlds: a reflection on potencial interpretations of José Cardoso Pires, “Ballad of Dogs’ Beach” (1982)”, in Dedalus, nº 2, 1992, pp. 59-66.LEPECKI, Maria Lúcia, Ideologia e Imaginário. 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