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Século XX

Paulo Quintela

Paulo Quintela
Paulo Quintela, por Maria Manuela Gouveia Delille Professor da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra e tradutor literário (Bragança, 24.12.1905 – Coimbra, 09.03.1987). Nascido de uma família transmontana de origem humilde, origem essa que sempre assumiu com manifesto orgulho, estudou Filologia Germânica, entre 1922 e 1927, na Universidade de Coimbra e, de abril de 1927 ao verão de 1929, como bolseiro da Fundação de Alexandre de Humboldt, frequentou a Universidade de Frederico Guilherme (atual Universidade de Humboldt) em Berlim, onde, entre outros, foram seus mestres os germanistas Julius Petersen e Max Herrmann, o anglista Alois Brand e o filósofo Max Dessoir. Veio concluir a licenciatura a Coimbra em outubro de 1929, apresentando uma dissertação intitulada Do Elemento Social no Drama Alemão a partir de Lessing. Como bolseiro da Junta de Educação Nacional voltou nesse mesmo ano à universidade berlinense, na qual prosseguiu os estudos de Germanística e Filosofia e exerceu, de 1931 a 1933, as funções de leitor de Português no Seminário de Línguas Românicas. Em outubro de 1933, já regressado a Portugal, tomou posse, na Faculdade de Letras de Coimbra, do lugar de professor auxiliar de Filologia Germânica, tendo sido encarregado de cursos de Literatura Inglesa e de Literatura Alemã. Em fevereiro de 1942 foi contratado como professor extraordinário (vindo o contrato a ser renovado sucessivamente até abril de 1969), e em maio de 1947 submeteu-se a provas de doutoramento, tendo apresentado a dissertação A Vida e a Poesia de Hölderlin (2.ª edição em 1971, sob o título Hölderlin). Entretanto iniciara, desde 1938 – ano em que deu a lume nas páginas da Revista de Portugal, dirigida pelo seu antigo colega e amigo Vitorino Nemésio, as primeiras versões portuguesas de poemas de Rainer Maria Rilke –, uma intensa atividade como tradutor e divulgador de importantes obras literárias em língua alemã, da qual destacamos como principais marcos as seguintes traduções: R. M. Rilke, Poemas (1942) e A Balada do Amor e da Morte do Alferes Cristóvão Rilke (1943), Gerhart Hauptmann, A Ascensão de Joaninha. Sonho Dramático em Dois Atos (1944), Friedrich Hölderlin, Poemas (1945), Johann Wolfgang Goethe, Poemas (1949), Rainer Maria Rilke, Os Cadernos de Malte Laurids Brigge (1955), Friedrich Nietzsche, Poemas (1960), Bertolt Brecht, Poemas e Fragmentos. Sep. da Vértice (1962), R. M. Rilke, Poemas II. Dispersos e Inéditos de 1906 a 1926 (1967), Nelly Sachs, Poemas (1967), R. M. Rilke, As “Elegias de Duíno” e “Sonetos a Orfeu” (1969), B. Brecht, Poemas e Canções (1975) e Georg Trakl, Poemas (1981). “Almocreve da cultura”, era com este topos modestiae que Paulo Quintela gostava de designar a ação notável que desenvolveu ao longo da vida como mediador entre culturas, muito particularmente entre a cultura alemã e a portuguesa, ação essa que lhe valeu o reconhecimento não só do Instituto Goethe de Munique, o qual lhe atribuiu em 1960 a Medalha de Goethe em prata e, em 1973, a Medalha de Goethe em ouro, mas também da Fundação F.V.S. de Hamburgo, que lhe concedeu em 1985 o Prémio Europeu de Tradutores. Plenas de rigor e ao mesmo tempo de criatividade poética, as traduções acima referidas deram um impulso decisivo à divulgação em Portugal da literatura e da cultura alemãs, contribuindo muito para dinamizar e europeizar o meio literário da época. Menção especial é devida às versões admiráveis que nos deixou de poemas de Goethe, Hölderlin e sobretudo de Rainer Maria Rilke, as quais foram objeto de intensa receção na lírica portuguesa da segunda metade do século XX. Cidadão empenhado e defensor convicto da liberdade de pensamento e expressão, colocou-se abertamente ao lado dos estudantes nas crises académicas de 1962 e 1969, tendo sido eleito em 1964 sócio honorário da Associação Académica de Coimbra. Em abril de 1969, tomou posse de professor contratado além do quadro da Faculdade de Letras de Coimbra e, em outubro de 1970, foi contratado como professor além do quadro, equiparado a catedrático. A 19 de abril de 1975, a poucos meses da jubilação, veio finalmente a obter a nomeação definitiva, tão longa e justamente ansiada, de professor catedrático por distinção. Dada a sua conhecida posição de discordância crítica, quando não de declarada rebeldia, em relação ao sistema ditatorial vigente no país até à Revolução de abril, não é de estranhar que os governos de Salazar e de Caetano se houvessem recusado de forma obstinada a conceder-lhe uma nomeação que fora prática universitária relativamente frequente no tempo do Antigo Regime.Sócio Correspondente da Classe de Letras da Academia das Ciências desde 1971, foi laureado com o título de Grande Oficial da Ordem de Instrução Pública em 1982, com o grau de Comendador da Ordem da Liberdade em 1983, e, no ano de 1986, com o grau de Comendador da Ordem do Infante D. Henrique. O perfil de Paulo Quintela não poderia ficar completo sem uma referência à ação desenvolvida como diretor artístico e encenador do Teatro dos Estudantes da Universidade de Coimbra (TEUC), de que aliás foi um dos fundadores. Se, no campo germanístico, a atividade translatória em muito sobreleva o trabalho de caráter científico e ensaístico, como aliás a publicação das Obras Completas (1996-2001) bem documenta, o magistério cultural exercido por Paulo Quintela no TEUC sobre sucessivas gerações de estudantes de todas as Faculdades durante trinta anos – de 1938, data da fundação daquele organismo académico, até 1968 – constituiu um complemento privilegiado da docência universitária. Sob a sua direção segura e esclarecida, o TEUC soube afirmar-se no meio universitário português, durante as difíceis décadas de 40, 50 e 60, como escola ímpar de teatro e de cultura, de camaradagem fraterna e de experiência cívica. Para além de algumas representações de elevado mérito de peças de autores nacionais (Camões, Raul Brandão, José Régio, Miguel Torga) e estrangeiros (Calderón, Molière, Goethe, García Lorca), Paulo Quintela, em encenações brilhantes, em que a exigência e o saber se uniam a uma grande força inventiva e lúdica, levou o agrupamento não só a representar de um forma viva e inteiramente nova os autos vicentinos (Trilogia das Barcas, Auto da Visitação ou Monólogo do Vaqueiro, Farsa de Inês Pereira, Auto da Feira, Auto da Alma, Auto da Índia, Breve Sumário da História de Deus), como a montar três espetáculos muito raros no panorama teatral português do tempo – as tragédias clássicas Medeia de Eurípides (1955), Antígona de Sófocles (1961) e Prometeu Agrilhoado (1967) de Ésquilo, tendo o TEUC conquistado, tanto com Gil Vicente como com os trágicos gregos, merecidos prémios e louvores em todo o país e no estrangeiro, nomeadamente nos festivais internacionais organizados pelo Instituto Délfico, as chamadas Delfíadas, primeiro em Mogúncia em 1950, depois sucessivamente em Friburgo na Brisgoia, em Verona, em Genebra, em Saarbrücken, em Nancy, em Bristol e, por fim, no ano de 1961, em Coimbra, sempre numa estimulante competição com grupos congéneres europeus. A par destes espetáculos, foi também o TEUC o primeiro a apresentar ao público português coros líricos falados, através dos quais Paulo Quintela procurava, nas palavras de Deniz Jacinto, «para além das virtudes imediatas da aquisição duma técnica vocal, descobrir toda a beleza poética dum texto e as vias mais adequadas à sua exteriorização oral». Manuel Alegre resumirá assim o inestimável trabalho de formação teatral, estética, cultural e cívica levado a cabo por Paulo Quintela nos longos ensaios e nas encenações do TEUC: «Nada sabíamos da língua portuguesa / e então sílaba a sílaba ele ensinou-nos / a música secreta das vogais / a cor das consoantes a ondulação o ritmo / o marulhar das frases e o seu / sabor a sal. / E também como pisar um palco / como falar como calar e sobretudo / como sair de cena e entrar / no grande teatro deste / mundo. / Porque tudo era proibido e ele nos disse / que tudo pode ser ousado / desde que se aprenda a entrar a tempo / a colocar a voz e a não perder / a alma.» Obras: Obras Completas. Organização de Ludwig Scheidl, António Sousa Ribeiro, Carlos Guimarães, Maria Helena Simões. Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 5 volumes, 1996-2001 (I – “Hölderlin” e Outros Estudos; II – Traduções I; III – Traduções II; IV – Traduções III; V – Gil Vicente e Teatro Vário).Bibliografia: Paulo Quintela, Curriculum Vitae, Coimbra, 1970; “Perfil de Paulo Quintela”, Vértice, vol. XXXIII, número 349, Fevereiro de 1973, pp. 188-196; Deniz Jacinto, “Saudação a Paulo Quintela”, in: Homenagem a Paulo Quintela, Porto, Editorial Inova, 1974, pp. 37-41; Miscelânea de Estudos em Honra do Prof. Paulo Quintela: Biblos. Revista da Faculdade de Letras, volumes LI, 1975, e LII, 1976; Paulo Quintela. Exposição Bibliográfica. Organização e Catálogo por Maria Alice Falcão Curado e Maria Armanda de Almeida e Sousa, Coimbra, 1986; Cristóvão de Aguiar, Com Paulo Quintela à Mesa da Tertúlia. Nótulas Biográficas, Coimbra, 1986, e Gente Grada de Coimbra: Paulo Quintela (com mais detença); Miguel Torga, Vitorino Nemésio e Manuel Alegre (de relance), conferência inédita; Manuel Alegre, “Paulo Quintela”, in: M. A., Coimbra Nunca Vista, Lisboa, Dom Quixote, 1995, p. 67.

Raul Proença

Raul Proença
Raul Proença, por Pedro Calafate Raul Proença aos 18 anos, quando estudante no Instituto Comercial e Industrial Raul Proença foi dos intelectuais mais ativos e influentes durante as primeiras décadas deste século, sempre eivado de inabalável espírito democrático, mas profundamente crítico dos vícios do regime republicano e da corrupção generalizada a que se não mostrava capaz de pôr cobro.A temática central de toda a sua obra, dispersa por centenas de artigos de revista e jornal, e em múltiplas cartas e manifestos é primacialmente ético-política, encontrando a sua razão de ser no esforço a que se entregou para arrostar de frente com o que considerava a nossa debilidade moral, na qual radicava a preocupante e dramática consciência de decadência do país. Assim, a linha de fundo que dá coerência a toda a sua obra é o socialismo democrático, a par da crítica da moral burguesa e de todas as soluções ditatoriais, de que se destaca a crítica muito ativa ao integralismo lusitano e à emergência do fascismo na Europa, que viria a arrastar o continente para um totalitarismo niilista, destruindo a riqueza criadora da vida, em nome do exclusivismo.Neste contexto interveniente e reformador, foi colaborador ativo, primeiro, da Renascença Portuguesa, e depois, após a cisão que se seguiu à imposição por Pascoaes do saudosismo como essência do espírito do movimento, da Seara Nova, de que foi fundador. Como escreveu nos primeiros anos da sua atividade, atormentava-o uma atmosfera e um sentimento de mal-estar que era a primeira condição do «movimento» e do desejo de «alguma coisa». A causa já tinha sido diagnosticada pelos homens da Geração de 70: três séculos de educação jesuítica tinham matado as energias vivas e as forças íntimas que séculos antes nos colocaram a par da civilização mundial. Raul Proença, firme defensor da entrada de Portugal na Grande Guerra, alista-se no Exército e, em 1917, é alferes miliciano Daí a nossa configuração no início do século, traduzindo-se numa quase completa ausência de largueza de alma e de espírito solidário, matando à nascença a nossa capacidade de realização como povo, pois renunciando à liberdade, perderamos a dignidade nação e pátria.Filosoficamente, definiu-se como idealista e realista, sem ver contradição na confluência dos termos, pois não lhe importava tanto o lado metafísico ou gnosiológico da questão, mas sobretudo a sua vertente prática, expressa nas instâncias ética e política. Realismo era a exigência do conhecimento integral das realidades com que o homem se debate, não admitindo que se definam soluções e planos de ação «fora desse conhecimento realista e objetivo», e distantes «da verdadeira natureza do homem e dos factos sociais». Foi por não os julgar realistas neste sentido que repudiou o comunismo, o anarquismo ou o integralismo, já por não emanarem da análise dos factos sociais, já por atentarem contra a natureza e dignidade do homem. Raul Proença, à secretária do seu gabinete na Biblioteca Nacional Quanto ao idealismo era a garantia de distanciamento perante o «realismo materialista», expresso em fórmulas de determinismo que repugnavam ao seu entendimento do progresso e da liberdade, e de uma moral de criadores. O essencial era nunca encarar os modos de ser e as formas da vida social como intransformáveis e dadas de uma vez por todas, como pretendeu em França a Action Française e entre nós os integralistas, seus sequazes. Estes, apesar do seu tão propagado apego aos valores espirituais do catolicismo, defendiam o fatalismo da hereditariedade e da história, sendo estas formas de «materialismo» que os fizeram aderir à doutrina da seleção e ao darwinismo social, negadores da dignidade humana. Por aqui se explica também a sua cruzada contra o conceito de tradição como fator de estagnação, pugnando contra os espectros que teimavam em nos acorrentar a uma mentalidade passadista e sem sentido de futuro e de criação. Nada se impunha ao seu espírito pelo simples facto de ter sido.Realismo idealista porque o que melhor define a realidade é o progresso, a «criação continuada» de novos mundos portadores de sentido, negando a ditadura do Facto e afirmando que o mal não é irremediável. Realismo idealista porque não mata a esperança, e esperança não dos que esperam mas dos que agem, mas, também aí, dos que agem norteados por ideais sublimes, porque agir sem ideais nobres é aproximar o homem da animalidade, negando-o como ser cultural. Age-se em função de objetivos que o espírito idealiza como realizáveis, e assim - servindo-nos das suas palavras -, «a realidade como base, o idealismo como aperfeiçoamento e remate para uma realidade superior e melhor» definiam o conceito de uma filosofia ética e social. Proença no exílio. Paris, janeiro de 1930 Foi também por isso que se preocupou com a doutrina do eterno retorno, tendo-a estudado criteriosamente, não para a perfilhar mas para a repudiar nas suas funestas consequências, pois a encarava como o desenlace lógico de todos os determinismos, inimigos da conceção do homem como um ser livre, capaz de fixar fins que o espírito vai livremente realizando, fins que porventura se nos afigurariam utópicos, não esquecendo porém que uma das maiores provas da ingenuidade era não ter senso prático bastante para acreditar na eficácia das utopias.A obra da razão era pois progressiva e lenta, desdobrando-se a cada passo nos seus corolários, o principal dos quais era o triunfo do direito sobre a força e da justiça sobre o privilégio. E foi também por ver o mundo como obra da razão que não aceitou o primado do intuicionismo e do anti-intelectualismo que ia triunfando entre os bergsonianos portugueses de expressão saudosista, tendo o cuidado de precisar que o seu racionalismo não defendia nenhuma espécie de divórcio entre a razão e o sentimento, mas que entendia a razão como a instância que permitia escolher, ordenar e valorizar os sentimentos, não havendo assim conflito entre razão e sentimento, mas, quando muito, entre sentimento e sentimento O grupo fundador da revista «Seara Nova», reunido em abril de 1921 em casa do Sr. José Leal, no Coimbrão (Leiria). Da esquerda para a direita, de pé: pároco do Coimbrão (não pertencente ao grupo), Teixeira de Vasconcelos, Raul Proença e Câmara Reis; sentados: Jaime Cortesão, Aquilino Ribeiro e Raul Brandão Foi por isso um humanista, encarando o humanismo não como um assunto mas como uma atitude, e se elogiava o ateísmo, por ser a moral sem prémio a que maior heroísmo exige, crendo na morte definitiva para fazer da vida a nossa eternidade, nem por isso deixou de se considerar filho do personalismo cristão, mas vendo em Deus não um ser transcendente que castiga e premeia, mas a afirmação dos valores sublimes da consciência. Respeitando a liberdade de cada um e recusando-se a admitir a existência em Portugal de uma «questão religiosa», que para si ecoava a intolerância, entendia que Cristo tinha existido, mas o que nunca existira verdadeiramente, por nunca ter sido posto em prática, fora o cristianismo no seu conteúdo verdadeiramente solidário.O seu socialismo democrático fez também dele um crítico da moral burguesa, a moral do prazer e da ausência da dor que eleva e purifica, a moral da mediania onde confluiam a ferocidade egoísta dos poderosos e o desejo de estabilidade dos seus políticos, estiolando a educação e a escola pelos critérios de uma instrução prática, esquecendo que o mais prático de todos os sistemas ou modelos de educação é o que se revelar mais capaz para melhorar as almas dos homens, ensinando-lhes não a «jantar a vida» mas a «vivê-la», porque a moral por que lutou não era uma lição ascética de desprezo pela vida, fazendo-a triste e sem encanto. Caricatura de Raul Proença pelo artista espanhol Fresno (edição de 18 de dezembro de 1924 da revista madrilena ABC), por ocasião do descerramento da lápide dedicada a Camões pelo Ayuntamiento de Madrid no 4.º centenário do nascimento do poeta Quanto ao seu programa político, e depois de reabilitar o valor do «político», distinguindo-o do «técnico», por caber àquele a nobreza da capacidade sintética e coordenadora, e por se não governar um país «como quem gere uma empresa ou uma roça», preocupou-se em defender um socialismo que se realiza dentro da ordem e dos métodos democráticos, nomeadamente no seio do parlamentarismo, nunca reconhecendo ao Estado qualquer poder absoluto sobre o indivíduo, razão por que repudiou o conceito de vontade-geral de Rousseau, por se sobrepor ao juízo individual de «cada um». O seu socialismo pugnava por uma intervenção progressiva e não abrupta e violenta do Estado na regulamentação das atividades, para pôr termo à anarquia económica e estabelecer uma maior justiça distributiva, não vendo na propriedade um direito absoluto, pois que exigia uma regulamentação que lhe retirasse o caráter soberano e irresponsável, impedindo-a de colidir, como tantas vezes sucedia, com o valor ético da personalidade e, consequentemente, com o maior bem da comunidade.BIBLIOGRAFIA ATIVA «O determinismo e a apatia nacional», Alma Nacional, nº8, 1910 «O orgulho e a utopia», Alma Nacional, nº 18, 1910 «A Arte é Social?», A Águia, 1ª série, nº 2 e 3, 1910-1911 «A educação moral em Portugal», Alma Nacional, nº 6, 1910 «Ao Povo - A «Renascença Portuguesa», A Vida Portuguesa, nº 22, 1914 «A situação política», A Águia, nº 2, 2ª série, Fevereiro de 1912 «Da Ditadura à suspensão dos direitos políticos», A Águia, nº 43, 2ª série, Julho de 1915 «O fascismo e as suas repercussões em Portugal», Seara Nova, nº 77, Março de 1926 «A Ditadura - História e análise de um crime» Panfletos I, Lisboa, 1926 «Do Estado Absoluto e do Estado Liberal» Seara Nova, nº 231 «Palavras dum vencido» Alma Nacional, nº 23, 1910 «A filosofia de Epicuro e a concepção heróica da vida», Anais das Bibliotecas e Arquivos, nº 4, Out/Dez., 1920 «O problema religioso», Seara Nova, nº19, 3-11-1926 «Sobre a existência de Deus e a lealdade da consciência», Seara Nova, nº 40, 1925 «O Evangelho contra o Evangelho e o Mundo Cristão contra o Cristianismo», Seara Nova, nº 648, 1940 «O progresso e as doutrinas científicas», Seara Nova, nº 10, 1922 «Da defesa da Democracia (1ª parte)», Seara Nova, nº 182, 1929 «Os Letrados e a Democracia», Seara Nova, nº 126, 1928 «Sobre a teoria do eterno retorno», Seara Nova, nº 555, 1938 Antologia, 2 volumes, organização de António Reis, Lisboa, 1985. BIBLIOGRAFIA PASSIVAsendo muito escassa, destacam-se: Sant'Anna Dionísio, O Pensamento Especulativo e Agente de Raúl Proença, Lisboa, 1949 Joel Serrão, «Aproximação do pensamento de Raúl Proença» Seara Nova, nº 1512, 1971 Sottomayor Cardia, «Raúl Proença e a responsabilidade do intelectual», Seara Nova, nº 1428, 1964 António Reis, «O pensamento filosófico de Raúl Proença», Prelo, nº13, 1986 Jacinto Baptista, Jaime Cortesão, Raúl Proença: Idealistas no Mundo Real, Lisboa, 1990.

Sophia de Mello Breyner Andresen

Sophia de Mello Breyner Andresen
Sophia de Mello Breyner Andresen, por Clara Rocha Sophia de Mello Breyner Andresen nasceu no Porto a 6 de novembro de 1919 e faleceu em Lisboa a 2 de julho de 2004. Da infância aristocrática e feliz passada no Porto ficaram imagens e reminiscências que povoam, de forma explícita ou alusiva, a sua obra poética e ficcional, particularmente os contos para crianças: a casa do Campo Alegre, o jardim, a praia da Granja (sobre a qual escreveria, em 1944, em carta a Miguel Torga: “A Granja é o sítio do mundo de que eu mais gosto. Há aqui qualquer alimento secreto”), os Natais celebrados segundo a tradição nórdica (também evocados por Ruben A. na sua autobiografia O Mundo à Minha Procura) foram lugares e vivências que marcaram de forma determinante o imaginário da autora.Entre 1936 e 1939 frequentou o curso de Filologia Clássica na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Familiarizou-se assim com a civilização grega, que profundamente admirou e que aparece também espelhada na sua obra, seja em poemas que glosam motivos helénicos (figuras históricas, figuras mitológicas, lugares carregados de significado histórico ou mítico), seja naqueles que, dum modo mais geral, recuperam as noções clássicas de harmonia, inteireza e justiça (veja-se, por exemplo, o primeiro verso do poema “Catarina Eufémia”, no volume Dual: “O primeiro tema da reflexão grega é a justiça”). O retorno a um tempo arquetípico e primordial, anterior ao “tempo dividido” em que vivemos, é um dos veios fundamentais da obra poética de Sophia, que nele busca uma forma de religação do ser, uma aliança entre o homem e a natureza. Sucessivas viagens à Grécia, ao longo da vida, reforçaram esse veio, presente desde o livro Poesia (poemas “Dionysos”, “Apolo Musageta”) e recorrente nos volumes poéticos seguintes. O ensaio O Nu na Antiguidade Clássica (1975), ajuda-nos a compreender melhor a identificação de Sophia com o mundo clássico: embora tenha como objeto a arte grega, e em particular a representação do corpo entre os gregos, pode ser lido como mais uma das “artes poéticas” em que a autora explicita algumas noções fundadoras da sua própria poesia.Sophia colaborou na revista Cadernos de Poesia e aí fez sólidas amizades, nomeadamente com Ruy Cinatti e Jorge de Sena (foi recentemente editada a correspondência trocada com este último entre 1959 e 1978). A primeira série dos Cadernos saiu em Lisboa entre 1940 e 1942, tendo por organizadores Tomaz Kim, José Blanc de Portugal e Ruy Cinatti. Sob o lema “A Poesia é só uma”, repetido no limiar de cada número ao longo das três séries, a revista defendeu a vocação ecuménica da Poesia (com p maiúsculo), sublinhou a independência do ideal estético relativamente a escolas ou partidos e admitiu eclecticamente a colaboração de artistas provenientes dos mais diversos quadrantes.Data de 1944 o primeiro volume poético de Sophia, intitulado Poesia. Editado no ano em que autora completou vinte e cinco anos, mas incluindo alguns poemas escritos ainda no final da adolescência, Poesia é um livro inaugural a vários títulos. Antes de mais, pelas marcas de intenso e juvenil entusiasmo vital que nele encontramos (coexistindo, todavia, com um lado noturno e decetivo). Logo o poema de abertura nos fala desse entusiasmo, situando-o no plano dos sonhos e da sua força performativa: “Apesar das ruínas e da morte,/ Onde sempre acabou cada ilusão,/ A força dos meus sonhos é tão forte,/Que de tudo renasce a exaltação/ E nunca as minhas mãos ficam vazias”. Algumas páginas adiante, o poema “Pudesse eu” é igualmente a expressão duma apetência pela vida e dum desejo de disponibilidade total para a viver, expressão tanto mais intensa quanto se resume numa síntese de quatro versos: “Pudesse eu não ter laços nem limites/ Ó vida de mil faces transbordantes/ Pra poder responder aos teus convites/ Suspensos na surpresa dos instantes”.Poesia é também um livro de estreia pela forma autorreflexiva como regista a procura dum caminho poético. Se nos primeiros versos do poema “Tudo” esse caminho é ainda um tanto indefinido, nos últimos de “O jardim e a casa” ele é vislumbrado com mais nitidez: “Trago o terror e trago a claridade,/ E através de todas as presenças/ Caminho para a única unidade”. Mas no poema “As fontes”, sem dúvida um dos mais inteiros e exatos deste volume, encontramos já um rumo poético bem vincado. Há nele uma promessa de claridade e de plenitude, e, de forma projetiva, esboça-se uma conceção essencialista da poesia como desocultação ou desvelamento, como regresso a uma verdade antiga do ser, que se tornará um dos grandes eixos da obra poética de Sophia.A noite é uma presença muito forte neste primeiro livro de versos e será um motivo constante em toda a obra, inclusivamente nos contos para crianças. São reveladores títulos como “Noite”, “Luar”, “O jardim e a noite”, “Noite das coisas”, “Noites sem nome”, “Noite de abril” e “Ó noite”, sinalizando uma poesia que recupera, ainda que com modulações próprias, o tópos da vivência noturna do poeta, de larga tradição literária; em Sophia, essa vivência ora exalta a fantasmagoria e o mistério, ora se maravilha com a beleza que a noite traz consigo (sendo o adjetivo “brilhante” um dos preferidos para a qualificar), ora está ligada a um desejo de fuga ou evasão em que ecoa a ânsia mallarmeana de “fuir, là-bas fuir”, ora permite o reencontro do eu consigo mesmo no silêncio e na solidão, como no poema “O jardim e a noite”.O volume Poesia é, por último, um livro inaugural por conter, neste mesmo poema, três versos que modelarmente definem uma questão central na obra de Sophia, a saber, a relação entre poesia e magia. Esses três versos são os seguintes: “Palavras que eu despi da sua literatura,/ Para lhes dar a sua forma primitiva e pura,/ De fórmulas de magia”. Pode dizer-se que constituem a primeira arte poética de Sophia e a mais importante deixa para os livros subsequentes. De facto, a imagem do poeta possesso, com a sua componente órfica, será largamente textualizada nos catorze volumes de poesia publicados entre 1944 e 1997 (cf., em especial, as “Artes poéticas” em que a autora descreve a emergência do poema), bem como nos Contos Exemplares (veja-se o conto “Homero”, que representa de forma alegórica, através do encontro entre a criança e o vagabundo, a descoberta da poesia na sua forma mais pura e primitiva). Desenha-se, também, na obra de Sophia um retorno às conceções essencialistas da linguagem que postulam o princípio de concreção entre o verbum e a res. É na identificação do verbum com a res que reside a força mágica da linguagem, sendo a nomeação (recorde-se o título O Nome das Coisas) uma forma encantatória de restituir às coisas a sua realidade, o seu ser. A poesia regressa, assim, à sua vocação original de injunção do espírito, e projeta-se como uma religação, uma “participação no real”, uma união sagrada entre o homem e a natureza.Depois do casamento, em 1946, com Francisco Sousa Tavares – advogado, jornalista e politico - , a poesia de Sophia tornou-se mais interveniente e atenta às questões sociais do seu tempo. Em Livro Sexto e Dual, nomeadamente, surge carregada de revolta perante a tirania, a injustiça e a corrupção, com momentos de grande força apelativa, como “Pranto pelo dia de hoje”, “Exílio” e “O velho abutre”, entre outros. Idênticas preocupações estão presentes no volume Contos Exemplares (1962), em cuja dedicatória se lê: “Para o Francisco, que me ensinou a coragem e a alegria do combate desigual”, e onde a autora alia um sentido de intervenção politica à sua mundividência humanista cristã. Paralelamente, Sophia teve uma atuação cívica relevante antes e depois do 25 de Abril, na oposição ao regime de Salazar e na defesa das liberdades: foi cofundadora da Comissão Nacional de Socorro aos Presos Políticos, presidente da Assembleia Geral da Associação Portuguesa de Escritores e, após a Revolução, deputada à Assembleia Constituinte.Foi distinguida com o Prémio Camões em 1999, o Prémio Max Jacob de Poesia em 2001 e o Prémio Rainha Sofia de Poesia Ibero-Americana em 2003.A extensa obra que nos legou reparte-se pelos domínios da poesia, da ficção, do conto para crianças, do ensaio, do teatro e, last but not least, da tradução (com magníficas versões de textos de Eurípides, Shakespeare, Claudel e Dante).Bibliografia ativa:Poesia: Poesia, Coimbra, ed. Da Autora, 1944; Dia do Mar, Lisboa, Edições Ática, 1947; Coral, Porto, Livraria Simões Lopes, 1950; No Tempo Dividido, Lisboa, Guimarães Editores, 1954; Mar Novo, Lisboa, Guimarães Editores, 1958; O Cristo Cigano, Lisboa, Minotauro, 1961; Livro Sexto, Lisboa, Livraria Morais Editora, 1962; Geografia, Lisboa, Ática, 1967; Dual, Lisboa, Moraes Editores, 1972; O Nome das Coisas, Lisboa, Moraes Editores, 1977; Navegações, Lisboa, IN-CM, 1983, Ilhas, Lisboa, Texto Editora, 1989; Musa, Lisboa, Editorial Caminho, 1994; O Búzio de Cós e Outros Poemas, Lisboa, Editorial Caminho, 1997.Prosa: Contos Exemplares, Lisboa, Livraria Morais Editora, 1962; Histórias da Terra e do Mar, Lisboa, Edições Salamandra, 1984.Contos para crianças: A Menina do Mar, Lisboa, Ática, 1958; A Fada Oriana, Lisboa, Ática, 1958; A Noite de Natal, Lisboa, Ática, 1959; O Cavaleiro da Dinamarca, Porto, Figueirinhas, 1964; O Rapaz de Bronze, Lisboa, Minotauro, 1965; A Floresta, Porto, Figueirinhas, 1968; A Árvore, Porto, Figueirinhas, 1985.Teatro: O Bojador, Lisboa, 2ª ed., Editorial Caminho, 2000 (1ª ed. s/d.); O Colar, Lisboa, Editorial Caminho, 2001.Ensaio: O Nu na Antiguidade Clássica, Lisboa, 3ª ed., Editorial Caminho 1992 (1ª ed., 1975).Traduções: A Anunciação a Maria (Paul Claudel), Lisboa, Editorial Aster, 1960; O Purgatório (Dante), Lisboa, Minotauro, 1962; Muito Barulho por Nada (Shakespeare), 164 (inédito); Hamlet (Shakespeare), Porto, lello & Irmão Editores, 1987; Quatre poètes portugais – Camões, Cesário Verde, Mário de Sá-Carneiro, Fernando Pessoa, Paris, P.U.F. e Fundação Calouste Gulbenkian – Centre Culturel Portugais, 1970; Medeia (Eurípides), s/d. (inédito).Alguma bibliografia passiva:Eduardo Prado Coelho, “O real, a aliança e o excesso na poesia de Sophia de Mello Breyner Andresen”, in A Palavra sobre a Palavra, Porto, 1972; Id., “A lírica e a lógica”, Colóquio/Letras, nº 57, Lisboa, 1980; Maria de Lourdes Belchior, “Itinerário poético de Sophia”, Colóquio/Letras, nº 57, Lisboa, 1980; Fiama Hasse Pais Brandão, “O triplo nome Sophia”, in A Phala – Um Século de Poesia, Lisboa, 1988; Letras e Letras, nº 47, Porto, 1991, dossier Sophia de Mello Breyner Andresen, pp. 7-14; Silvina Rodrigues Lopes, Poesia de Sophia de Mello Breyner Andresen, apresentação, critica, selecção e sugestões para análise literária, Lisboa, 1989; Clara Crabbé Rocha, Os “Contos Exemplares” de Sophia de Mello Breyner, Coimbra, 2ª ed., 1980; Id., “Sophia de Mello Breyner Andresen: poesia e magia”, in O Cachimbo de António Nobre e Outros Ensaios, Lisboa, Publicações Dom Quixote, 2003; Maria Alzira Seixo, “Histórias da Terra e do Mar”, Colóquio/Letras, nº 87, Lisboa, 1985.

Vergílio Ferreira

Vergílio Ferreira
Vergílio Ferreira, por Rosa Maria Goulart Autor de uma obra multifacetada, repartida pelo romance, o conto, o ensaio e o diário,Vergílio Ferreira afirmou-se sobretudo como um dos grandes romancistas do séc. XX. Nascido em Melo, distrito da Guarda, em 1916, e falecido em Lisboa em 1996, o local de nascimento ficou largamente representado nos espaços literários dos seus romances, como representados ficaram outros que ele percorreu, nomeadamente as cidades de Coimbra e de Évora e o seminário do Fundão. Da aldeia, ficar-lhe-ia a imagem da montanha como local simultaneamente real e mítico, na reverberação da luz estival ou da neve do inverno; de Coimbra (em cuja Universidade estudou e que em 1993 lhe concederia o grau de Doutor Honoris Causa), gravar-se-lhe-ia na memória a Universidade no alto da colina, batida pelo sol, e metonimicamente cristalizada na guitarra dos fados e das baladas; de Évora, onde o autor foi professor lical durante catorze anos, captou Vergílio a luminosidade e a pureza dos seus espaços branços e a sua mítica ancestralidade. A contrastar com tudo isto, vem o seminário como espaço de clausura, de restrição das liberdades individuais, de terror e de princípios morais opressores.Nos casos em que se trata de representar um real de características eufóricas (o que as salas e corredores do seminário de modo algum autorizavam de notar que, ao contrário desta, todas as outras foram experiências de adulto), o Autor procedeu na sua escrita a uma irrealização dos espaços conhecidos e percorridos, transfigurando-os sempre em lugares míticos a reenviar para um espaço originário, não raras vezes poético. Lisboa, sua última residência, ficar-lhe-ia, por contraste, e não obstante o largo tempo em que nela permaneceu, sempre à margem, como lugar de passagem onde se não cria raízes. Daí o irónico desabafo aquando de um acidente naquela cidade, a saber: que tinha sido atropelado e que era muito bem que o fosse, porque não era dali.Tendo-se iniciado na escrita na década de quarenta do século XX, a primeira fase da sua ficção, com O caminho fica longe (1943), Onde tudo foi morrendo (1944) e Vagão “J” (1946), seria de convergência na estética neorrealista. Mais tarde, no prefácio à segunda edição deste último livro, o único dessa fase que ele aceitou reeditar, o escritor, num balanço autocrítico, que é também de crítica ao dito movimento, demarca-se já dessa estética, deixando expressas as suas preferências por uma outra, de teor existencial, mais preocupada com as questões inerentes ao homem em geral.Na linha da filosofia existencialista, que teve em Jean-Paul Sartre um dos seus expoentes máximos, e de escritores como Camus e o Malraux escritor da «condição humana», mas tendo ainda, num horizonte mais recuado, Dostoievski, Sófocles e os tragediógrafos gregos, e, mais próximo de nós, Raul Brandão, Vergílio adotará definitivamente como seus os temas da vida e da morte, do amor, da solidão, da sondagem das profundezas do “eu”, na mira de um autoconhecimento que passa necessariamente pelo conhecimento do outro, da arte como forma de «dar a ver» o que a rotina do quotidiano esconde e como depuração da vida. Em última instância, mantém-se uma nunca pacificada questão em torno da «morte de Deus», com o qual Vergílio, contraditoriamente, não cessa de travar um persistente (angustiado?) diálogo, e uma nostalgia de Absoluto ou de Transcendência, como que a solicitar o preenchimento do lugar vazio deixado por esse mesmo Deus.Colocando, a partir de Manhã Submersa e em quase todos os romances que se lhe seguem, a personagem/narrador no centro do universo narrado, Vergílio Ferreira faz irradiar a partir dela os problemas existenciais, sendo esse recurso, no seu entender, uma forma de «presentificar» a ação para assim ele próprio se aproximar mais do leitor, interpelando-o e comovendo-o. Neste sentido, está o frequente recurso à metaficcionalidade, um dos lugares utilizados por Vergílio Ferreira para pensar a arte dentro da arte ou o romance dentro de romance. E revelando-se este frequentemente, pelas características da enunciação, como o lugar de uma presença emocionada (a do eu que se narra), está aberto caminho para a expressão lírica, o que afeta categorias essenciais da narrativa como o tempo, que ora se desestrutura, originando a fragmentaridade, ora se suspende, transformando o precário tempo da vida das personagens em eternidade, ou como o espaço, que se oferece menos como local da ação do que como projeção de um encantamento irrealizante.Transversal a toda a problemática da sua ficção está ainda o problema da linguagem como instrumento de comunicação que tanto é fonte de (des)entendimento entre os homens como limitação para dizer situações-limite. Daí a reflexão sobre a linguagem do quotidiano, sobre os (des)encontros que ela possa provocar, a que se opõe a palavra artística, a que nos coloca na senda do invisível, que diz a angústia, mas também a fascinação e o «puro espanto de existir».Embora os livros anteriores a Aparição (inclusivamente Mudança, de 1949, cujo título é já tido como indicativo de uma viragem) viessem a anunciar uma evolução, é com este livro de 1959 que Vergílio será definitivamente consagrado como representante do romance de feição existencial. A partir daí ele glosará obsessivamente os mesmos temas, embora estes sejam expostos segundo diferentes estruturas narrativas e desenvolvidos a partir de um problema novo ou perspetivado de ângulo diferente. Fá-lo distanciando-se cada vez mais da narrativa dita clássica, com uma história bem contada e uma ordenação temporalmente sequenciada. A justificação apresentada é que vivemos na época do fragmento, que a solidez de uma narrativa una e coesa não se coaduna com o nosso tempo, ao qual falta unidade e coesão. De resto, afirma também, não lhe interessa contar histórias à maneira do século XIX, mas comover a «abalar» o leitor, deixando-lhe um problema para refletir.Tendo, por mais de uma vez, sido apontado como «autor de um só livro», o escritor não se mostrou muito agastado com a afirmação, que geralmente lhe chegava como forma de crítica. E isto porque, no dizer do próprio, cada novo livro (e para ele «um livro é um registo do nosso diálogo com o mundo») pretendia tão-só apresentar um determinado estádio da sua relação com esses temas que o dominavam. Assim se compreendem as particularidades que eles vão assumindo em cada um dos romances publicados: por exemplo, em Aparição havia sobretudo a experiência da aparição de si a si, ou seja, a descoberta do seu eu metafísico; Estrela Polar incide fundamentalmente nas relações do eu com o outro; Alegria Breve, prosseguindo nas mesmas preocupações introduz, de modo mais incisivo, o problema da solidão e da linguagem nova para dizer um mundo novo que se venha sobrepor ao que finda; Para Sempre é aquele onde a busca incessante da palavra mais se mostra, numa tentativa de ligar o verbo primordial ao último que o homem há de pronunciar; Até ao fim (1987) afirma-se, pelas manifestações «artísticas» caricaturais que aí são representadas, como uma contrafação da verdadeira arte e como a pobre herança que o fim do milénio tinha para legar ao seguinte; finalmente, Na Tua Face (1993) constitui uma questionação do escritor sobre o feio em arte, a saber: como é que o feio em arte não tem a fealdade das coisas feias da vida, mas a beleza que a arte lhe acrescenta.Ensaísta notável, deixou-nos vários volumes de ensaios, uns de índole mais propriamente crítica (v.g., os de Espaço do invisível), outros (Carta ao Futuro, Do Mundo Original e Invocação ao Meu Corpo) aproximando-se, pela criatividade no tratamento dos temas e pela qualidade da escrita, da literatura. É isso visível em recursos técnico-formais como a figuração estilística, a estrutura sintática e o ritmo da frase, recursos que chegam a configurar certas páginas dessa prosa reflexiva como autênticas páginas de prosa poética.Conta-Corrente, diário em nove volumes, cinco da primeira série e quatro da nova série, revela o quotidiano de um autor que se decide por um género que dantes várias vezes recusara, por se dizer avesso à escrita da intimidade. Não obstante isso, acabou por lhe não resistir, embora, sempre que sobre o mesmo diário se pronuncia, o coloque num lugar à parte, como se não fosse digno de se irmanar à parte mais nobre da sua obra, sobretudo ao romance. Seria este, pelo que da sua escrita foi desabafando no próprio diário, o género a que Vergílio Ferreira se dedicou com maior aplicação e maior esforço, por ser o género que, segundo ele, menos se compadecia com uma escrita «ao correr da pena» ou, ainda nas suas palavras, «de comportas abertas». Mesmo assim, o diário, tal como o romance, foi evoluindo no sentido da depuração e da reflexão intelectual mais elevada. Pensar (1992) e Escrever (2001), este de edição póstuma, a cargo de Helder Godinho, que surgem na lista das obras do Autor como «diário» são escritos fragmentários, frequentemente de caráter aforístico, numerados, e sem a indicação da data, no que se afastam das convenções do género. Todavia, a propósito do primeiro, Vergílio Ferreira achou-lhe uma justificação para esta classificação, designando-o por «diário do acaso de ir pensando». Uma espécie de reflexão ao sabor dos dias, registando, portanto, não o que ele teria vivido, mas o que diariamente se lhe oferece ao pensamento e à escrita.Na sua vastidão, a obra de Vergílio Ferreira unifica-se nas preocupações temáticas que, sendo gerais, se configuram diferentemente consoante os géneros em que os temas são expressos. E sempre com a liberdade de quem as adapta ao seu jeito, transgredindo fronteiras entre narrativa e lírica, romance e ensaio, enfim, entre géneros ficcionais e não-ficcionais. Por isso também, o seu romance ficou conhecido pela dimensão ensaística que o Autor lhe imprimiu, classificando-o, ele próprio, de «romance-problema», igualmente conhecido por «romance-ensaio». Aliás, na perspetiva de Vergílio, o ensaio será o género que melhor poderá substituir o romance, no caso de algum dia se cumprir a, tão longamente anunciada, morte deste género literário.BIBLIOGRAFIA ATIVA1943O Caminho Fica Longe (romance).Sobre o Humorismo de Eça de Queirós (ensaio).1944Onde Tudo Foi Morrendo (romance).1946Vagão “J” (romance).1949Mudança (romance).1953A Face Sangrenta (contos).1954Manhã Submersa (romance).1957Do Mundo Original (ensaio).1958Carta ao Futuro (ensaio).1959Aparição (romance).1960Cântico Final (romance).1962Estrela Polar (romance).1963Apelo da Noite (romance).Da Fenomenologia a Sartre (ensaio).Interrogação ao Destino, Malraux (ensaio).1965Alegria Breve (romance).Espaço do Invisível I (ensaio).1969Invocação ao Meu Corpo (ensaio).1971Nítido Nulo (romance).Apenas Homens (contos).1974Rápida, a Sombra (romance).1976Contos (1976).Espaço do Invisível II (ensaio).1977Espaço do Invisível III (ensaio).1979Signo Sinal (romance).1980Conta-Corrente I (diário).1981Um Escritor Apresenta-se (entrevistas, com montagem, prefácio e notas de Maria da Glória Padrão).1983Para Sempre (romance).Conta-Corrente III (diário).1986Conta-Corrente IV (diário).Uma Esplanada sobre o Mar (contos e poemas).1987Até ao Fim (romance).Espaço do Invisível IV (ensaio).Conta-Corrente V (diário).Correspondência (Jorge de Sena / Vergílio Ferreira).1988Arte Tempo (ensaio).1990Em Nome da Terra (romance).1992Pensar (diário).1993Na Tua Face (romance).Conta-Corrente , nova série I (diário).Conta-Corrente , nova série II (diário).1994Conta-Corrente , nova série III (diário).Conta-Corrente , nova série IV (diário).1996Cartas a Sandra (romance).1998Espaço do Invisível V (ensaio; ed. póstuma).2001Escrever (diário; ed. póstuma).BIBLIOGRAFIA PASSIVAÀ Beira. Revista do Departamento de Letras da Beira Interior, nº 1 (2002). Número dedicado a Vergílio Ferreira.Anthropos. Revista de documentación científica de la cultura, nº 101 (1989). Número dedicado a Vergílio Ferreira.Ave Azul, 2-3, 1999-2000 [título genérico: «Vergílio Ferreira ou o alarme de nós»].CABRAL, Eunice, «A concepção do eu na obra romanesca de Vergílio Ferreira», in Homenagem a Vergílio Ferreira, Évora, Universidade de Évora, 1996, pp. 9-17.CAMILO, João, «Augusto Abelaira e Vergílio Ferreira»: plenitudes breves e absolutos adiados», Arquivos do Centro Cultural Português, XIX, Paris, Fundação Calouste Gulbenkian, 1983, pp. 413-468.COELHO, Eduardo Prado, «Vergílio, um certo retrato», Jornal de Letras, Artes e Ideias, nº 532 (15 de Setembro de 1992), pp. 9-10.COELHO, Eduardo Prado, «Signo Sinal ou a resistência do invisível»; «Entre a aparição e o desgaste», in A mecânica dos fluidos, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1984, pp. 57-64 e 65-76, respectivamente.COELHO, Jacinto do Prado, «Vergílio Ferreira: um estilo de narrativa à beira do intemporal», in Ao contrário de Penélope, Lisboa, Bertrand, 1976, pp. 283-288.CUNHA, Carlos M. F. 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(Número que recolhe as comunicações apresentadas no «Encontro Internacional Vergílio Ferreira», realizado em Sintra, 16-19 de Outubro de 2001).

Vieira da Silva

Vieira da Silva
Vieira da Silva, por Marina Bairrão Ruivo Maria Helena Vieira da Silva (1908-1992), pintora de origem portuguesa, nasceu em Lisboa, no seio de uma família que cedo estimulou o seu interesse pela pintura, pela leitura e pela música, filha única de Marcos Vieira da Silva e Maria da Silva Graça. Os três primeiros anos da sua vida são pontuados por viagens a França e Inglaterra, e em 1910, a doença do pai leva-os a Leysin, na Suíça. Após a morte do pai, em 1911, Vieira e a mãe regressam a Portugal onde cresce num ambiente intelectualmente rico mas frequentado quase exclusivamente por adultos. No final do verão de 1913, depois de uma estadia de dois meses em Inglaterra marcada pela descoberta dos museus e do teatro de Shakespeare, Vieira recorda ter decidido tornar-se pintora. Depois de ter estudado desenho, pintura e escultura em Lisboa, vai para Paris em 1928, insatisfeita com o ensino ministrado na Escola de Belas Artes de Lisboa, num período politicamente instável face ao avanço do fascismo e culturalmente pouco estimulante. Em Paris deslumbra-se com a agitação da capital francesa num período rico na partilha de ideias por parte de artistas plásticos, escritores, músicos e bailarinos. Frequenta espetáculos, museus e galerias. Hesitando entre pintura e escultura, frequenta na Academia da Grande Chaumière as aulas de escultura de Bourdelle que era, à época, assitido por Germaine Richier e Alberto Giacometti, e de Despiau na Academia Scandinave, abandonando esta técnica em 1929 para se dedicar exclusivamente à pintura. Trabalha então com Dufresne, Waroquier e Friez e inicia-se na gravura no Atelier 17 de Hayter onde se concentra nas pesquisas de representação do espaço. Frequenta também as aulas de Fernand Léger e de Bissière nesta fase de intensa descoberta e experimentação. No verão de 1928 faz uma viagem de estudo a Itália que vai marcar definitivamente as suas pesquisas plásticas, ficando especialmente impressionada com Siena e a pintura pré-renascentista. Em 1930 casa-se com o pintor de origem húngara, Arpad Szenes (1897-1985), que conhecera na Academia da Grande Chaumière, perdendo a nacionalidade portuguesa. Torna-se pouco depois apátrida quando por sua vez Arpad Szenes perde a nacionalidade húngara. Pintora de temas essencialmente urbanos, a sua pintura revela, desde muito cedo, uma preocupação com o espaço e a profundidade. Em 1932 conhece Jeanne Bucher, que desempenha um papel decisivo na sua carreira, iniciado com a organização da sua primeira exposição individual no ano seguinte. É por seu intermédio que Vieira da Silva descobre a pintura de Torres-García que a marca profundamente. Em Portugal, as suas obras são vistas pela primeira vez em 1935, na Galeria UP, numa exposição organizada por António Pedro. No ano seguinte, Vieira da Silva expõe com Arpad Szenes no seu atelier de Lisboa. Num momento em que se teme o crescimento do fascismo na Europa, o casal reúne-se regularmente, até ao início da Segunda Guerra, no Café Raspail, com um grupo de artistas e intelectuais de esquerda, para discutir arte e política sob o nome de «Amis du monde». Em 1938 abandona a Villa des Camélias – residência do casal desde 1930 - e instala-se na casa-atelier do Boulevard Saint-Jacques onde convive com Alberto Giacometti, Jean Lurçat, Jacques Lipchitz, e Etienne Hajdu, entre outros. Em 1939, pressionada pelas circunstâncias, deixa Paris, ficando os seus trabalhos e atelier à guarda de Jeanne Bucher. Após uma curta temporada em Lisboa onde Vieira tenta, em vão, reaver a nacionalidade portuguesa e que esta seja atribuída ao marido, parte com Arpad para o Brasil em 1940 onde permanece até 1947. O casal fixa-se na Pensão Internacional, em Santa Teresa, local que se torna um centro de cultura e permuta de ideias. Aí convive com intelectuais e artistas como Cecília Meireles e Murilo Mendes, entre outros. O seu desenraizamento mas sobretudo a angústia da guerra refletem-se na sua pintura. Vieira ressente-se do clima e da distância e a obra deste período reflete, em parte, as suas inquietações: a guerra, o absurdo do Homem, a saudade. Expõe no Museu Nacional de Belas Artes (1942) e na galeria Askanazy (1944), no Rio de Janeiro. Após a reserva da crítica brasileira, é a vez de Paris ver os trabalhos de Vieira no Salon des Réalités Nouvelles de 1945. No ano seguinte, Jeanne Bucher organiza a sua primeira exposição individual em Nova Iorque, na Marian Williard Gallery. 1947 marca o regresso a Paris e o progressivo reconhecimento do seu trabalho, reforçado pela aquisição de La partie d’échecs pelo Estado francês, em 1943, e pela monografia que lhe é dedicada em 1949, por Pierre Descargues, editada pelas Presses Littéraires de France, na coleção «Artistes de ce Temps». Inicia-se, na década de 50, a participação em exposições importantes em França e no estrangeiro (Estocolmo 1950, Londres 1952, São Paulo 1953, Basileia e Veneza 1954, Caracas 1955, Londres 1957, Kassel 1959, entre outras) e a sua pintura toma um lugar de primeiro plano. O final da década é marcado pelo profundo envolvimento de Vieira e Arpad com as suas pesquisas plásticas. Constroem uma casa-atelier na rue de l’Abbé-Carton para onde se mudam em 1956, ano em que Vieira e Arpad obtêm a nacionalidade francesa. O Estado francês adquire obras suas e atribui-lhe várias condecorações, sendo a primeira em 1960 (Chevalier de l’Ordre des Arts et des Lettres). Vieira da Silva acumula vários prémios internacionais. A partir de 1958 organizam-se retrospetivas da sua obra: Hanover e Bremen 1958, Grenoble e Turim 1964, e em 1969-1970 em Paris, Roterdão, Oslo, Basileia e Lisboa (Fundação Calouste Gulbenkian). Em Portugal, Vieira da Silva expõe na Fundação Calouste Gulbenkian em 1977, na galeria EMI-Valentim de Carvalho em 1984 e na galeria 111 em 1985. Em 1983, o Metropolitano de Lisboa propõe-lhe a decoração da estação da Cidade Universitária. Vieira da Silva escolhe uma obra de 1940, Le Métro, para reproduzir em azulejos e conta com a colaboração do pintor Manuel Cargaleiro. Em 1985 Arpad Szenes morre. Vieira confessa perceber melhor a pintura do marido agora, após a sua morte, e retoma a sua pintura. Em 1988 o Centro de Arte Moderna da Fundação Calouste Gulbenkian e o Centre Nacional des Arts Plastiques apresentam, em Lisboa e em Paris, uma importante exposição das suas obras. Nessa ocasião, é condecorada pelo Estado português e pelo Estado francês. Em 1989, a Casa de Serralves no Porto organiza uma exposição de obras de Vieira da Silva e de Arpad Szenes nas coleções portuguesas. Em 1990, em Lisboa, é criada a Fundação Arpad Szenes-Vieira da Silva cujo Museu, dedicado à obra dos dois pintores, foi inaugurado em 1994. Em 1991, a pedido da pintora, é fundado o Comité homónimo, em Paris. Vieira da Silva morre a 6 de março de 1992, em Paris. O Catálogo Raisonné da sua obra foi lançado na Fundação no mesmo ano. Pintora da Segunda Escola de Paris, Maria Helena Vieira da Silva teve um papel fundamental no panorama da arte internacional.MonografiasVieira da Silva nas colecções internacionais: em busca do essencial. Lisboa: Fundação Arpad Szenes-Vieira da Silva, 2004.DESCARGUES, Pierre - Vieira da Silva. Paris: Les Presses Littéraires de France, 1949.SOLIER, René - Vieira da Silva. Paris: Le Musée de Poche, 1956.FRANÇA, José-Augusto - Vieira da Silva. Lisboa: Artis, 1958.WEELEN, Guy - Vieira da Silva. Paris: Fernand Hazan, 1960.VALLIER, Dora - Vieira da Silva. [Paris]: Ed. Weber, 1971.WEELEN, Guy - Vieira da Silva. Paris: Fernand Hazan, 1973.TERRASSE, Antoine – L’ Univers de Vieira da Silva. Paris: Henri Scrépel, 1977.WEELEN, Guy - Vieira da Silva: les estampes: 1929-1976. Paris: Arts et Métiers Graphiques, 1977.BESSA-LUÍS, Agustina – Longos dias têm cem anos, presença de Vieira da Silva. Lisboa: INCM, 1978.PHILIPE, Anne - L'eclat de la lumière: entretiens avec Maria Helena Vieira da Silva et Arpad Szenes. Paris: Gallimard, 1978.WEELEN, Guy, ; LASSAIGNE, Jacques - Vieira da Silva. Barcelona: Polígrafa; 1978; Paris: Ed. Cercle d'art, 1987.BUTOR, Michel - Vieira da Silva: peintures. 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Aveiro: Câmara Municipal, 2000., pp. 9-13.CABRAL, Isabel Matos Dias Caldeira ; ALMEIDA, Inês Barahona de Almeida - Telas e teias. Vieira tecedeira e a poesia de Sophia In: - Ferreira, Maria Luísa Ribeiro, org. - Colóquio As Teias que as Mulheres Tecem. - Lisboa: Colibri, 2003, pp. 39-72.

Vitorino Magalhães Godinho

Vitorino Magalhães Godinho
Vitorino Barbosa de Magalhães Godinho, por Joaquim Romero Magalhães Fotografia: José Manuel Rodrigues Nascido em Lisboa (1918), filho de Vitorino Henriques Godinho – oficial do Exército e político republicano – e de D. Maria José Vilhena Barbosa de Magalhães. Estudos secundários em Lisboa, Liceus de Gil Vicente e de Pedro Nunes, licenciatura em Ciências Historico-Filosóficas pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa (1940). Professor extraordinário da Faculdade de Letras de Lisboa (1941-1944), investigador do Centre National de la Recherche Scientifique (1947-1960), Doutor ès-Lettres pela Faculdade de Letras da Universidade de Paris (1959), professor catedrático do Instituto Superior de Estudos Ultramarinos (1960-1962), Doutor honoris causa e professor na Faculté des Lettres et Sciences Humaines da Universidade de Clermont-Ferrand (1970-1974), Ministro da Educação e Cultura (1974), professor catedrático da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, coordenador do departamento de Sociologia (1975-1988), Diretor da Biblioteca Nacional (1984). Prix d’Histoire Maritime da Académie de Marine (1970) e Prémio Balzan (1991), sócio correspondente da Academia Brasileira de Letras e da Royal Academy (Londres). Dirigiu várias coleções, nomeadamente nas Edições Cosmos, e fundou e dirige a Revista de História Económica e Social (1979).Tendo começado os seus estudos pela Filosofia (Razão e História – Introdução a um problema, 1940; Esboço sobre alguns problemas da Lógica, 1943) cedo passou a interessar-se pela História. E de imediato inicia pesquisas sobre a História dos Descobrimentos e da Expansão Portuguesa. Duas são as linhas de investigação inicial: um minucioso trabalho erudito sobre as fontes (Documentos para a História da Expansão Portuguesa, 1943-1956) a partir de uma problemática muito ampla (A Expansão Quatrocentista portuguesa, 1944) e uma tentativa de reconstituição das culturas e civilizações antes da chegada dos portugueses (História económica e social da Expansão Portuguesa, 1947; O "Mediterrâneo saariano" e as caravanas do ouro – séculos XI ao século XVI, 1956). Só assim, na conjugação destas duas linhas de trabalho, se conseguirá proceder à construção da história portuguesa e do seu impacte no Mundo nos séculos XV e XVI. Tendo prosseguido os seus trabalhos na École Pratique des Hautes Études em Paris – junto de Lucien Febvre, Fernand Braudel e Ernest Labrousse –, aí apresenta Prix et monnaies au Portugal, 1750-1850 (1955) e L’économie de l’empire portugais – XVe- XVIe siècles (1966), obra esta que foi tese de doutoramento (editada em português, com acrescentos, em 1963-1971, Os descobrimentos e a economia mundial, com edição definitiva em 1983-1984). Pertence à grande escola de estudos históricos que se desenvolve em torno da revista Annales (Économies – Sociétés – Civilisations). Destaca-se pela resistência à ditadura (o que lhe valeu por duas vezes o afastamento da universidade portuguesa) e também pela sua intervenção cívica em democracia, de que resultaram várias publicações: O Socialismo e o futuro da Península (1970), Portugal. A Pátria bloqueada e a responsabilidade da cidadania (1985). Apresentou propostas originais para reforma do sistema educativo português: Um rumo para a educação (1974).Deve-se-lhe a atualização e a renovação dos estudos de história da expansão portuguesa numa perspetiva mundial. Partindo das reflexões e investigações de Oliveira Martins, Jaime Cortesão e Duarte Leite consegue ir muito mais longe e construir explicações muito enriquecedoras. A economia dos descobrimentos henriquinos (1962) e Os descobrimentos e a economia mundial revelam essa largueza de preocupações, mostrando como se entrelaçam e conjugam aspetos vários das disciplinas das ciências sociais na investigação histórica. Também no domínio da História de Portugal, moderna e contemporânea, escreveu estudos fundamentais e promoveu investigações que refizeram muitas temáticas: A estrutura da antiga sociedade portuguesa (1971), Mito e mercadoria, utopia e prática de navegar, séculos XIII-XVIII (1990). Igualmente se lhe deve a indicação de novos temas e novos problemas para investigações e dissertações que dirigiu, em especial durante o seu magistério na Universidade Nova de Lisboa.Das suas lições de rigor erudito, de alargamento metodológico e da problematização das fontes como objeto cultural, de ensaio de quantificação e de cruzamento com as diferentes ciências sociais, de fundamentação teórica e de aplicação de uma visão histórica aos diferentes domínios do saber, de cidadania ativa resultou uma notável renovação dos estudos de história em Portugal. Como escreveu numa das suas primeiras obras, "não é possível analisar os problemas da realidade portuguesa contemporânea sem os inserir na trama da evolução do nosso país, quer dizer, sem estudar as condições de formação do mundo em que vivemos, a génese da nossa cultura, da nossa sociedade, da estrutura político-económica de Portugal". Levando longe a sua proposta de que a história deve ser pensada na dialética da globalidade e de que a história é uma forma de pensamento, fundamenta uma visão da contemporaneidade muito rica e estimulante.

Raul Brandão

Raul Brandão
Raul Brandão, por Vítor Viçoso Nascido na Foz do Douro (Porto), em 1867, Raul Brandão, filho e neto de pescadores, morreria em Lisboa em 1930. A partir de 1912, já reformado no posto de capitão do exército, onde ingressara em 1888, alternaria entre a sua “Casa do Alto”, na Nespereira (Guimarães), e Lisboa, onde passava parte do inverno.Elemento ativo da “geração de 90” (século XIX), influenciada pela estética decadentista-simbolista de matriz parisiense, Raul Brandão, superado o período do “nefelibatismo” – seria um dos elementos do cenáculo portuense responsável pela elaboração do opúsculo “Os Nefelibatas” (1892), simultaneamente manifesto em prol da arte moderna e pastiche decadentista –, do esteticismo e do ludismo decadente e libertário que comungara com os seus companheiros geracionais (António Nobre, Alberto de Oliveira, Júlio Brandão, Justino de Montalvão, D. João de Castro, entre outros), foi desenvolvendo, num clima visionário, uma perspetiva crítica relativamente aos valores materialistas burgueses dominantes na sociedade do seu tempo. Da fase da originalidade “nefelibata” e do artificialismo “dândi”, enquanto estilo geracional, o autor transitaria para uma fase de uma obsessiva responsabilização ética e aí fundaria a sua sensibilidade estética. Os seus textos, publicados a partir de 1893 no jornal Correio da Manhã, refletem já um acentuado pendor ético-social e uma obsessiva interrogação sobre o sentido de um mundo sem valores e em acelerado processo de dessacralização. Nele as chamadas Questão Social e Questão Religiosa fundem-se numa mesma problemática que passará a dar conteúdo às suas obras. Já em História d’um Palhaço (1896) – ultrapassado o efémero naturalismo das suas narrativas de Impressões e Paisagens (1890) – podemos detetar uma projeção desta temática numa tensão entre a idealidade “adolescente” (o sonho) e o pragmatismo do princípio de real, assente numa mentira fundadora a legitimar uma sociedade iníqua. O protagonista K. Maurício tipifica simultaneamente um onirismo decadente específico do ensimesmamento estético finissecular (o romance do eu), uma centração metafísica no tema da morte e um embrião de rebeldia infrutífera contra as forças sociais corruptoras.O catastrofismo “finissecular” de pendor apocalíptico, ora desesperante ora esperançoso, atinge progressivamente na sua obra uma dimensão patética e interrogativa. Orientada por uma polarização discursiva egocêntrica, aquela oscila entre uma desesperada verificação de um mundo esvaziado espiritualmente e a apetência ambivalente por uma messiânica revolução (redenção) humanitarista, algo que emergirá nebulosamente em Húmus (1917), nas Memórias (1919-1923-1933) e em O Pobre de Pedir (1931).Já no opúsculo de teor parenético, O Padre (1901), podemos ler: «A época é de tragédia. O que domina é o oiro». Este apelo a uma nova espiritualidade, não poupando a Igreja Católica, pretenderia redimir o mundo então dominado por um hedonismo predador, revalorizando a vertente sacrificial de pendor sacralizante que havia sido um alicerce fundamental de toda a arquitetura social. De outro modo, o “darwinismo social” e o hegemonismo do “Deus-Milhão” só poderiam conduzir vertiginosamente a um Apocalipse sem Deus ou a um demonismo carnavalesco, pelo que só uma postura neo-franciscana, com evidentes ecos do evangelismo socializante de Tolstoi, poderia constituir aí um contraponto soteriológico: «O futuro é daqueles a quem o heroísmo da pobreza atrai» (O Padre). É, aliás, deste fascínio ambivalente pela sacrificialidade dos humildes, quer absurda quer redentora, que se fará a narrativa poética Os Pobres (1906). Nesta o fluxo dolorista desse submundo trágico-grotesco urbano – a sua colaboração regular com a imprensa a partir de 1893 possibilitar-lhe-ia um conhecimento mais profundo das classes mais pobres de Lisboa – constitui um energismo, indutor de perplexidades em função do enigmático sentido da dor num mundo aparentemente desabitado por Deus, mas talvez capaz de o orientar para uma nova religiosidade: «uma terra toda alma». Como diria na “Introdução” a O Cerco do Porto (1915), «cada vez que um Deus morre o seu cadáver corrompe o mundo». Contudo, a sua crítica ao regime republicano pelas expectativas goradas aquando da revolução de 1910, implícita neste texto, não o transporta para uma nostálgica ressurreição do passado, pois «A liberdade é-nos já tão necessária como o ar que respiramos. [...] Precisamos de um ideal comum, se queremos viver. Precisamos de fazer disto uma pátria, onde caibamos todos». Esta aspiração levá-lo-ia, aliás, a constituir o grupo fundador da Seara Nova, em 1921. A História tornava-se assim um pesadelo e a realidade uma mera caricatura grotesca, algo que consagraria dramaticamente nas suas obras historiográficas El-Rei Junot (1912) e A Conspiração de 1817 (1914).A dor do outro social interioriza-se e traduz-se em visões alucinadas e, por outro lado, as feridas íntimas (o remorso, a má consciência burguesa) transcendem o espaço da subjetividade individual e projetam-se nas figuras ambulantes e esboçadas (os “grotescos”) que simbolizam o dolorismo agónico e noturno que o obceca. É esta bipolaridade interativa que orienta a estrutura enunciativa da sua ficção, fundada simultaneamente num redundante compromisso ético e numa consciência extremada das contradições inerentes à condição humana, dividida entre o infinito e o vómito.As suas prosas constituirão, pois, uma progressão sem soluções de continuidade entre um imaginário decadentista-simbolista finissecular (um egocentrismo catastrofista) e um expressionismo grotesco, materializado numa espécie de teatro de títeres manipulados em função dos fluxos e refluxos emocionais e reflexivos do “autor” ou dos seus duplos (a encenação dos seus fantasmas) e comprometido numa inquirição comovida sobre a natureza humana (o espanto) na busca paradoxal do seu sentido na dinâmica universal. Daí que na sua ficção haja uma evidente desvalorização da história (a intriga), como se esta servisse apenas, no seu fragmentarismo e na sua desconexão discursiva ou na sua temporalidade descontínua, para ilustrar simbolicamente as pulsões que se confrontam no “teatro” interior do egocêntrico narrador.Outra face da sua cosmovisão sugere-nos um lirismo telúrico, arquitetado nos símbolos nucleares da pedra, da árvore e dos humildes (expressão da ternura matricial do húmus), ou seja, de uma religiosidade que se pontua por uma simpatia irradiante por tudo aquilo que, na sua simplicidade espontânea e pregnante, exprime o esplendor enigmático da alma universal. Para lá, portanto, da efemeridade do social, com o seu cortejo de máscaras, e da mesquinha luta pelo poder, releva-se essa capacidade solidária com a perenidade simbólica e estética de um ser humilde (a Joana de A Farsa, 1903, ou de Húmus, por exemplo) ou de uma paisagem. E tudo isso se torna nele simultaneamente interior e exterior e pode designar-se, nas suas diversas variantes, como o energismo onírico que radicaliza a vida e, em última instância, lhe propicia o único sentido possível. Aquém disto, apenas a relação promíscua com a máscara (o formalismo social ou a morte). E às palavras da sua ficção cabe, por vezes, iluminar esses instantes eternos, que atualizam, no recolhimento quase místico, essa necessária, redentora e poética presença do absoluto. Por isso, em todas as obras do autor é nuclear a oposição reiterada entre o eu social (a máscara) e o eu profundo (o sonho); a imposição do ser para consumo social (o domínio do parecer) e a vertigem do ser autêntico – uma latência obscura apenas revelável socialmente em momentos de crise. O recalcado aí emerge, abalando então a arquitetura frágil que sustentava a identidade e a sua coesão. A ordem desintegra-se e a desordem instala-se, como acontece em Húmus, na farsa trágica O Doido e a Morte (1923) ou no romance póstumo O Pobre de Pedir. A este fascínio ambíguo pela rebelião ou pela centração no drama social dos pobres não seria, de resto, alheio a sua relação simpática com o anarquismo desde a última década do século XIX.Em Húmus, a enunciação enquanto espaço de estranheza extremada associa-se, por outro lado, à emergência de duas entidades enquanto alteridade ameaçadora na voz do enunciador: eu sou os outros (a máscara social) e eu sou o não-ser (a morte). Ou, num enunciado paradoxal: «Eu não sou quem falo». As suas ficções desenvolvem-se, portanto, sobretudo a partir deste “teatro da consciência”, no qual as forças ocultas e abissais esperam essa situação-limite de revelação (o apocalipse interior) e se expõem enquanto transgressão caótica da Lei, em suma, de um mundo até então vivido como ilusão e baseado numa mentira, mas sem a qual paradoxalmente o homem se submeteria à voragem. A intrusão, mais ou menos abrupta, desse outro niilista na minha própria voz constitui um dos cernes da estrutura enunciativa, quer das suas narrativas (Húmus ou O Pobre de Pedir), quer do seu teatro, publicado entre 1923 e 1929 (O Gebo e a Sombra, O Doido e a Morte, O Rei Imaginário, Eu Sou um Homem de Bem ou O Avejão).No caso de A Farsa, a protagonista, Candidinha, encarnação ensimesmada do ódio, assume a aventura, simultaneamente trágica e grotesca, desse dualismo insuperável. Ela é tanto a comparsa submissa e histriónica dos cerimoniosos hipócritas de uma burguesia provinciana neófoba, como o vetor de uma rebeldia indómita e maquiavélica face aos códigos socioculturais dessa casta dominante, fossilizada e dividida entre os rituais da caridade e os temores do inferno. Este exorcismo da mentira e esta dissecação dos formalismos de uma moral burguesa perpassam, aliás, toda a obra de Raul Brandão e essa má consciência burguesa atingirá o seu acme com a revolta milenarista de O Pobre de Pedir.Num outro plano, a dor e o sonho são, na ficção brandoniana, os únicos vetores que intensificam a vida e lhe dão plenitude. Sem eles, a vida reduzir-se-ia aos protocolos da rotina, na espera absurda do desenlace final, às palavras rançosas ditas e reditas, ou seja, à banalização do ser e da linguagem que o sustenta. O sonho e a dor são também, por isso, os fundamentos da sua própria criação estética. O sonho que, por vezes, se confunde, na sua cosmovisão com o ideal é, assim, um vetor que funciona como um antídoto relativamente ao absurdo de ser para não ser. Aliás, a estética do grotesco no autor estrutura-se a partir da fusão promíscua entre a vida e a morte ou da tensão entre a função repressora da máscara e um energismo profundo, caótico e inominável. O sonho dá sentido à vida, pois, sem ele, o homem ver-se-ia condenado à insignificância e ao simulacro. Daí a polivalência do onirismo em A Farsa ou em Húmus. Este é tanto a erupção dos demonismos mais absurdos, como o desejo da aventura mística ou o estabelecimento de humildes laços de ternura. Os santos e os demónios cruzam-se, por vezes, nessa amálgama, porque ambos são a condição para uma relativa superação das limitações ignóbeis impostas ao homem. Mais do que projeção para a ação, o sonho é uma plenitude que coloca o tempo vetorial entre parêntesis e aponta para uma vertical mítico-poética. Mesmo na sua visão da História universal (cf. El-Rei Junot) aquele cristaliza-se simbolicamente numa árvore matricial que condensaria as aspirações irrealizadas pelos homens, desde tempos imemoriais até aos confins dos tempos.Para lá da vertente noturna da sua obra, as suas narrativas de viagens, Os Pescadores (1923) e As Ilhas Desconhecidas (1926), abrem-nos sobretudo à embriaguez da luz e do policromatismo da paisagem (o apolíneo), escrevendo ao jeito impressionista de quem pinta, do mesmo modo que nos “Prefácios” das Memórias se abre a um intimismo autográfico que é simultaneamente uma reinvenção dos espaços e seres da infância e a exaltação da ternura num tempo crepuscular, o dos estertores da monarquia constitucional e o das desiludidas esperanças do período republicano.Bibliografia ativa1890 – Impressões e Paisagens1896 – História d’um Palhaço (A Vida e o Diário de K. Maurício)1901 – O Padre1903 – A Farsa1906 – Os Pobres1912 – El-Rei Junot1914 – A Conspiração de 18171915 – O Cerco do Porto – Pelo Coronel Owen (Prefácio e Notas)1917 – Húmus1919 – Memórias – vol. I1923 – Teatro – “O Gebo e a Sombra”, “O Rei Imaginário” e “O Doido e a Morte” – Os Pescadores1925 – Memórias – vol. II1926 – As Ilhas Desconhecidas – A Morte do Palhaço e O Mistério da Árvore (2ª edição refundida de História d’um Palhaço)1927 – Eu sou um Homem de Bem (monólogo teatral) – Jesus Cristo em Lisboa (tragicomédia em colaboração com Teixeira de Pascoaes)1929 – O Avejão – Episódio Dramático1930 – Portugal Pequenino (em colaboração com Maria Angelina)1931 – O Pobre de Pedir (edição póstuma)1933 – Memórias – vol. III (edição póstuma)1981 – A Noite de Natal (em colaboração com Júlio Brandão) – Leitura, introdução e notas por José Carlos Seabra Pereira1984 – Os Operários – Fixação do texto, introdução e notas por Túlio Ramires Ferro2000 – Húmus (1917; 1921; 1926) – Edição crítica de Maria João ReynaudObras traduzidas (apuradas)La Farsa – Trad. castelhana de Valentin de Pedro, s/d.Los Pobres – Trad. castelhana de Valentin de Pedro, Madrid, Ed. Rivadeneyra, 1921.Humus – Trad. castelhana de Ribero i Rovira, Barcelona, Ed. Cervantes, s/d.Humus – Trad. francesa e prefácio de Françoise Laye, Paris, F. Calouste Gulbenkian/Centre Culturel Portugais, PUF, 1981.Humus – Trad. francesa e prefácio de Françoise Laye, Paris, Flammarion, 1992.Bibliografia passiva (seleção)Andrade, João Pedro de, Raul Brandão – A Obra e o Homem, 2ª ed., Lisboa, Acontecimento, 2002.Antunes, Manuel, “Temperamento e Universo de Raul Brandão”, in Occasionalia, Homens e Ideias de Ontem e de Hoje, Lisboa, Multinova, 1980.Castilho, Guilherme de, “A Farsa e a problemática de Raul Brandão”, in Colóquio/Letras, nº2, Lisboa, Junho de 1971.– Vida e Obra de Raul Brandão, Lisboa, Bertrand, 1979.Coelho, Jacinto do Prado, “O Húmus de Raul Brandão: uma obra de hoje”, in A Letra e o Leitor, Lisboa, Portugália Editora, 1969.– “Da Vivência do Tempo em Raul Brandão”, in Ao Contrário de Penélope, Lisboa, Bertrand, 1976.Faria, Duarte, “A retórica da antítese: uma introdução a Raul Brandão”, in Outros Sentidos da Literatura, Lisboa, Veja, 1981.Ferreira, Vergílio, “No limiar de um mundo, Raul Brandão”, in Espaço do Invisível II, Lisboa, Arcádia, 1976.Ferro, Túlio Ramires, Raul Brandão et le Symbolisme Portugais, Coimbra, Coimbra Editora, 1949.– “Raul Brandão e a Questão Social”, Introdução a Raul Brandão, Os Operários, Lisboa, Biblioteca Nacional, 1984.Lopes, Óscar, “Raul Brandão”, in Ler e Depois. Crítica e Interpretação Literária 1, Porto, Inova, 1970.Machado, Álvaro Manuel, Raul Brandão – Entre o Romantismo e o Modernismo, 2ª ed., Presença, Lisboa, 1999.Mourão-Ferreira, David, “Releitura do Húmus”, in Tópicos de Crítica e História Literária, Lisboa, União Gráfica, 1969.Nemésio, Vitorino, “Raul Brandão, íntimo”, in Sob os Signos de Agora, Coimbra, Imprensa da Universidade, 1932.Pereira, José Carlos Seabra, “Introdução a Raul Brandão – Júlio Brandão”, in A Noite de Natal, Lisboa, Imprensa Nacional-Biblioteca Nacional, 1981.Picchio, Luciana Stegagno, “O teatro existencial de Raul Brandão”, in História do Teatro Português, Lisboa, Portugália, 1969.Pires, A.M.B. Machado, Raul Brandão e Vitorino Nemésio – Ensaios, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1988.Pires, José Cardoso, “Ler o mar”, prefácio a Os Pescadores, Lisboa, Comunicação, 1986.Raul Brandão – Teixeira de Pascoaes. Correspondência. Recolha, transcrição, actualização do texto, introdução e notas de António Mateus Vilhena e Maria Emília Marques Mano, Lisboa, Quetzal, 1994.Rebello, Luís Francisco, “Um Teatro de Dor e de Sonho”, Estudo introdutório a Raul Brandão, Teatro, Lisboa, Comunicação, 1986.Régio, José, “Raul Brandão e o Húmus”, in Ler, nº8, Novembro 1952.Reynaud, Maria João, Metamorfoses da Escrita, Porto, Campo das Letras, 2000.Reys, Câmara, As Questões Morais e Sociais na Literatura. (IV) Raul Brandão, Lisboa, Seara Nova, 1942.Rodrigues, Maria Idalina Resina, “O Húmus, texto de encontro e indecisão”, in Colóquio/Letras, nº45, Lisboa, Setembro 1978.Sacramento, Mário, “Chave para Raul Brandão”, in Ensaios de Domingo, Coimbra, Coimbra Editora, 1959.Seixo, Maria Alzira, “Raul Brandão (Húmus)”, in Para um Estudo da Expressão do Tempo no Romance Português, Lisboa, Publicações do Centro de Estudos Filológicos, 1968.Sérgio, António, “Os Pescadores por Raul Brandão”, in Ensaios, t. 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Sílvio Lima

Sílvio Lima
Sílvio Lima, por Carlos Leone «Não há maior tortura que a solidão forçada.»Sílvio Lima, 1927(OC: I, 34) Sílvio Lima (1904-1993) viveu durante uma transformação estrutural, e estruturante, do discurso crítico desenvolvido em Portugal no século XX. Dito isto, os estudos disponíveis sobre Sílvio Lima são escassos. Recentemente a publicação em dois volumes da sua Obra Completa pela Fundação Calouste Gulbenkian, sob direcção do ex-assistente de Sílvio Lima, hoje Professor Catedrático Jubilado, José Ferreira da Silva (doravante OC, seguido da indicação de volume em numeração romana e de página em algarismos árabes), pode vir a ser um elemento decisivo para alterar este estado de coisas. Faremos nestas páginas referência a estudos do nosso conhecimento e, sobre matéria biográfica, indicamos o artigo «Sílvio Lima - História de um Professor Universitário», da autoria de Ferreira da Silva, no qual colhemos numerosas informações (publicado na revista coimbrã Biblos, vol. LV, pp. XXXV-LIII,1979, integrado numa miscelânea em honra de Sílvio Lima). Com efeito, a história de Sílvio Lima confunde-se com a de um dado período da Universidade em Portugal, o que, tendo sido penoso, é hoje revelador.Sensivelmente a meio da sua vida, em 1944, escreveu Sílvio Lima nas linhas da conclusão daquele que é até hoje o seu título mais conhecido e citado (Ensaio sobre a Essência do Ensaio): «Cada escritor se julga no direito de rotular de ensaios, ou de ensaio, os seus produtos. Como se o ensaio fosse, afinal, a fumarenta retórica, o eruditismo formalista, o historicismo arquivístico, o comentarismo estéril, o barroquismo conceptista e cultista, numa só palavra, o anticriticismo! O facto assume, entre nós, lusos, um aspecto mental inquietante.» (OC: II, 1410).Jovem estudante, Sílvio Lima cursara brevemente medicina, antes de ingressar e se formar em Filosofia (sempre em Coimbra, na década de 1920); depois, a sua formação posterior à licenciatura foi não só célere mas também «estrangeirada», isto é, decorreu na Suíça, na Bélgica e em França, antes de regressar a Coimbra para obter as insígnias doutorais (em 1929) - já nisto muito sergiano, como o tempo viria a comprovar.Do primeiro destes dois dados ficou-lhe a convicção inabalável no experimentalismo, que distinguia do empirismo, e na cumulatividade do conhecimento científico, que não excluía a consideração de cesuras e revoluções; do segundo, nunca o abandonou a atitude crítica perante o seu país e o seu tempo, em muito devedora de Sérgio e que, em rigor, fez da sua Obra a mais 'sergiana' das que a Universidade Portuguesa conheceu na primeira metade do século XX.Em maio de 1935, foi afastado do Ensino, integrado num contingente de «oposicionistas» contra os quais o recém-institucionalizado Estado Novo (cuja Constituição fora referendada em 1933) moveu o Decreto-Lei nº 25317, para segurança e defesa do Estado. Uma lista de ilustres (foram 33 os «depurados») que incluía, entre outros, Aurélio Quintanilha e Abel Salazar. Depois da depuração seguiu-se um período de anos de incerteza até à reintegração (como tolerado) em 1942. Para compreender o porquê da sua «depuração» há que ter presente três fatores: a sua afinidade com ativistas do campo da oposição republicana ao regime de Salazar; a sua polémica, iniciada em 1930 com a publicação de Notas Críticas ao livro do Sr. Cardeal Gonçalves Cerejeira «A Igreja e o Pensamento Contemporâneo» (1ª edição 1930, 2ª ed. 1931) livro dedicado a António César Abranches e Vitorino Nemésio, em que criticou Gonçalves Cerejeira (seu antigo Professor e entretanto nomeado Cardeal de Lisboa) a propósito da relação entre fé revelada e razão crítica; e a progressão natural da sua investigação, na forma de concurso para Professor Auxiliar na Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra com a dissertação intitulada O Amor Místico (Noção e valor da experiência religiosa), cujo primeiro volume (e único, dos três previstos) foi publicado em 1935 pela Imprensa da Universidade − a qual também não tardaria a ser encerrada.Após o seu afastamento compulsivo da Universidade, e impedido de lecionar nos restantes níveis de ensino, Sílvio Lima viu-se forçado a vários périplos, uns por intermédio de outros «depurados» (Quintanilha), outros por atividades como bolseiro de investigação científica. Desse período entre 1935 e 1942 (data da sua reintegração em Coimbra por intercessão do então Ministro da Educação Nacional, Mário de Figueiredo, catedrático da Faculdade de Direito de Coimbra), ficou a maior parte da sua escrita jornalística, sobretudo no Primeiro de Janeiro e no Diário de Lisboa e ainda ensaios diversos sobre temas ligados ao desporto e à educação cívica.A partir de 1943, e apesar da sua reintegração na Universidade, a atividade de Sílvio Lima conhece um surto, ainda que breve: nesse ano, publica O determinismo, o acaso e a previsão na História; no ano seguinte, o seu título mais citado e mais vezes reeditado, Ensaio sobre a essência do Ensaio; e, entre diversas recensões críticas desses anos sobre autores hoje maiores (como o então «moço» Vitorino Magalhães Godinho) que o revelam atento ao que se fazia em Portugal e no estrangeiro (cf. OC: II, 1543-56), ainda em 1945 é o orador oficial na cerimónia oficial de imposição de insígnias doutorais a Delfim Santos, Álvaro Costa Pimpão e Rodrigo de Sá Nogueira («Três Doutoramentos», OC: II, 1441-1421). Estes trabalhos, bem como as recensões que continuará a fazer, espaçadas mas regulares até à década de 1960, quando se reforma, e como algumas outras intervenções em Portugal e no estrangeiro (conferências, capítulos de livros, etc.), são tudo o que conseguiu fazer depois de ser reintegrado. Não têm a extensão nem a complexidade da projetada continuação de O Amor Místico, mas nunca renegam o passado do seu autor.Depois de se aposentar por motivos de saúde em 1961, a sua situação só se alterou em 1975 quando foi reintegrado como professor catedrático com diuturnidade, aposentado. Mas, até nesse momento de reparação, como nota Ferreira da Silva, a Universidade «perde uma oportunidade para homenagear o professor e o intelectual que Sílvio Lima foi.» (op. cit., p. XLI). Morreu em 1993, reconhecido ainda em vida, mesmo que de forma discreta, por aqueles que cuidam da cultura portuguesa contemporânea, desde Barahona Fernandes a Eduardo Lourenço, de Orlando Vitorino a José Esteves Pereira e de António Braz Teixeira a Eugénio Lisboa.Bibliografia Ativa:Sílvio Lima, Obra Completa, Fundação Calouste Gulbenkian, 2 vols., Lisboa, 2002

Teixeira de Pascoaes

Teixeira de Pascoaes
Teixeira de Pascoaes, por Maria das Graças Moreira de Sá Retrato de Pascoaes Uma das figuras mais proeminentes da literatura e da cultura portuguesas do século XX, Teixeira de Pascoaes (Joaquim Pereira Teixeira de Vasconcelos) é estruturalmente um poeta-filósofo, mesmo quando se instaura como mentor do Saudosismo ou resvala da poesia para outros géneros literários, cujo hibridismo (de géneros e de linguagem) tem vindo a ser explorado pela crítica moderna. Nascido a 2 de novembro de 1877, em Amarante (Gatão), cursa Direito em Coimbra (1896-1901) e chega a exercer profissão, durante dez anos, no Porto, entregando-se depois, e até à data da sua morte (1952), à escrita, recolhido no solar cujo nome adotou (Pascoaes), no seio da paisagem da sua intimidade – o Marão e o Tâmega, que eleva, enquanto canto à Terra e à Natureza, em termos míticos e místicos, a uma figura integral do Mundo e do destino humano.A sua estreia no parnaso português, numa procura de rumo entre as diversas tendências herdadas da viragem do século, não foi brilhante. Em 1895 publica a primeira obra poética, Embriões, que merece a crítica menos favorável de Guerra Junqueiro. Nas obras que imediatamente se seguem, Belo I (1896) e Belo II (1897) e À Minha Alma (1898), transparece já uma vivência original, que toma o Homem como centro e caminho de uma ascensão espiritual crescente, transformando o material em espiritual, a memória em sonho, o Real em Irreal, a presença corpórea em ausência saudosa. As coordenadas do seu universo imaginário, já imbuído do que mais tarde chamaria Saudade, estavam lançadas. Mas a sua consagração só seria alcançada com Sempre (1898), que simboliza o encontro do poeta consigo mesmo. Nesta obra estão já patentes traços que tornarão a sua poesia inconfundível: a fusão do subjetivo e do objetivo; o sentimento religioso das coisas, esse além que, num mesmo instante, se esconde e se revela nas sombras, nos fantasmas e nos espectros; o fascínio pelo mistério e pela substância enigmática de tudo o que o rodeia; a vocação mística, que tudo transforma.Depois de Sempre, o seu ímpeto de criação parece imparável: surgem Terra Proibida (1900), À Ventura (1901), Jesus e Pã (1903), Para a Luz (1904), Vida Etérea (1906), As Sombras (1907), Senhora da Noite (1909), Marânus (1911) e Regresso ao Paraíso (1912), ou seja, grandes coletâneas de poesia, cuja redação acompanha a reformulação consecutiva da sua obra, em que refunde, amplia e transfere poemas, o que demonstra, contrariamente à visão tradicional que se possuía do poeta, uma atenção extrema pelo aperfeiçoamento formal da sua escrita. Um breve apontamento a algumas destas composições: Para a Luz, dedicado ao irmão que se suicidou, representa, pelos poemas de intuito realista e social que contém, um certo desvio a uma poesia vocacionada para a transcendência; Vida Etérea é, enquanto hino à harmonia cósmica e à procura ansiosa de Absoluto, considerado um dos melhores livros do poeta; As Sombras têm merecido destaque por mais tipicamente desenharem a atmosfera espiritual pascoaesiana; de Senhora da Noite afirma a crítica ter inspirado os dois “finais” de “Ode de Álvaro de Campos”; finalmente, em Jesus e Pã, destaca-se o pendor filosófico do poema, onde estão já presentes os princípios orientadores do Saudosismo como doutrina de restauração nacional, que consubstanciarão também Marânus e Regresso ao Paraíso. De fôlego e estrutura épica, estas duas obras exaltam a Saudade, embora o cunho nacionalista da primeira (a Saudade como deusa portuguesa da redenção) se veja, na segunda, amplificado a uma dimensão universal (a Saudade como valor humano mais perfeito que reconduzirá o Homem ao Paraíso). Autorretrato de Teixeira de Pascoaes Serão estes dois vetores da Saudade – o nacional e o universal – que ditarão a cruzada saudosista do poeta nas páginas d’A Águia, de que é o diretor artístico desde que esta revista se torna órgão da “Renascença Portuguesa” em 1912. Vulto maior desta Associação, transforma-se no teorizador, por excelência, da Saudade, nos seus aspetos políticos, filosóficos e estéticos, entendendo esta como sentimento-ideia caracterizador da fisionomia lusitana e motor do ressurgimento nacional, mas também, enquanto ideia, como criadora de tensões dinâmicas (Lembrança/Esperança, Passado/Futuro, Matéria/Espírito, etc.), nunca abandonadas por completo na sua obra posterior. Desta atividade, a que o seu nome ficou sempre ligado e que obscureceu, durante largos anos, a potencialidade estética da sua escrita, incluem-se textos e conferências como O Espírito Lusitano e o Saudosismo (1912), O Génio Português na sua Expressão Filosófica, Poética e Religiosa (1913), A Era Lusíada (1914), Arte de Ser Português (1915) e, já afastado da revista onde se mantém até 1917, Os Poetas Lusíadas (1919). Pela força da sua personalidade e pela grandeza da sua obra, reúne à sua volta, apesar da célebre polémica sobre a Saudade que, nas páginas d’ A Águia, o opôs a António Sérgio, uma série de poetas de tendências afins, os chamados poetas saudosistas, de que se salientam aqui António Correia de Oliveira, Afonso Lopes Vieira, Afonso Duarte ou Mário Beirão.Depois de Elegias (1912) e de O Doido e a Morte (1913), onde, com mais intensidade, a conceção filosófica se une ao lirismo emotivo, a edição de Verbo Escuro (1914) inaugura uma nova via de expressão, a da prosa poética. Prosa e verso passam a coexistir na obra do autor. Citem-se, por exemplo, O Bailado (1921) e O Pobre Tolo (1924), onde os aforismos invadem a tónica lírica da escrita, ou os Cantos Indecisos (1921) e os Cânticos (1925), ou, ainda, a versão, em elegia satírica, de O Pobre Tolo (1930). O acento lírico da prosa e o prosaísmo filosófico do verso tornam-se uma constante na obra de Pascoaes. Desta época, e ainda em verso, são o drama D. Carlos (1925), espécie de contrapanfleto da Pátria de Junqueiro – experiência teatral a que se junta a colaboração com Raul Brandão na tragicomédia Jesus Cristo em Lisboa (1924) –, Painel (1935), curiosa panorâmica de Portugal vislumbrada do Marão, Versos Pobres (1949) e Últimos Versos (1953). A Versos Brancos, de que ainda hoje se não conhece a totalidade das composições, referia-se Pascoaes já como “pensamentos metrificados”.A partir, pois, de 1914, a prosa conquista terreno no panorama literário do autor, com grande variedade de géneros e de interesses, desembocando na redação de grandes biografias que lhe deram renome internacional. A Beira (Num Relâmpago), de 1916, é um livro de viagens que propicia a entrada no mundo imagético do autor – tal como acontece em Duplo Passeio (1942) –, onde cada pormenor avistado, paisagem ou gesta humana, é símbolo de uma realidade transcendente, desveladora do sentido mais íntimo das coisas; O Bailado (1921) constitui-se como, nas palavras de Pascoaes, “uma espécie de romaria”, viagem pelos “outros” na tentativa de construção de um “eu” simultaneamente individual e universal; O Pobre Tolo, de teor autocaricatural, dá conta do drama da existência humana na sua consciência de Ser e de não Ser ao mesmo tempo; o Livro de Memórias (1927), mais do que um documento histórico preciso, é uma anotação autobiográfica que prima pela reelaboração imposta pela memória, tal como acontece em Uma Fábula (o Advogado e o Poeta), de publicação póstuma em 1978. Solar de Gatão, onde viveu T. de Pascoaes Mas é em 1934 que Pascoaes envereda pelas biografias romanceadas que lhe abrem novos caminhos na perscrutação da alma humana. Todos os biografados são figuras relevantes na história espiritual do Homem ou são movidos por sentimentos ou ideias de alcance universal. Irrompem, assim, São Paulo (1934), São Jerónimo (1936), Napoleão (1940), O Penitente: Camilo Castelo Branco (1942) e Santo Agostinho (1945). Porque polémicas (sobretudo a primeira), as biografias contribuíram para chamar, mais uma vez, a atenção do nosso meio cultural para a obra de Pascoaes. Talvez por isso tenha o autor sentido a necessidade de esclarecer quer o seu pensamento poético, o que faz em O Homem Universal (1937), quer o seu conceito religioso, que explicita em A Minha Cartilha, escrita em 1951, mas só editada em 1954. Duas obras de ficção narrativa marcam ainda a última fase do percurso vivencial do poeta: O Empecido (1950) e Dois Jornalistas (1951), onde, respetivamente, o tema da Saudade e o do Medo são tratados com uma ironia que mais realça o sentido da dúvida que se pretende inculcar como fonte dinamizadora do sentir e do pensar do Homem.Herdando, pois, o neogarrettismo e o idealismo finissecular, este antipositivista e antinaturalista por definição (com ecos de Antero, Junqueiro, Gomes Leal, António Nobre e da poética simbolista do Vago e do Indefinido), Teixeira de Pascoaes cria algo de novo na literatura portuguesa com o seu universo imaginário virado para o mistério da alma, para a essência das coisas, para o paradoxo da existência em que tudo e o seu contrário se implicam numa amálgama inesperada, feita de antinomias que, conceptualmente, se harmonizam. Desligando-o do Saudosismo de escola, que, descontextualizado, passou a ser lido como sinónimo de nacionalismo reacionário, a crítica dos últimos vinte anos tem vindo a valorizar, no campo literário e no filosófico, inúmeros aspetos da modernidade de Pascoaes, quer pela conceção filosófica do Homem (ser imaginante e imaginário) como substância mesma da Realidade (Eduardo Lourenço), quer pela virtualidade da sua escrita, com aspetos ainda hoje surpreendentes. A publicação, em curso, da imensa obra de Teixeira de Pascoaes pela Assírio & Alvim, depois de ter ficado incompleto o projeto das suas Obras Completas (ed. de Jacinto do Prado Coelho) pela Livraria Bertrand, os numerosos estudos críticos entretanto surgidos e, até, a recente atenção pela sua obra plástica, revelam o interesse renovado na redescoberta de Pascoaes.Bibliografia ativa sumária(por ordem cronológica da 1ªedição)Belo / À Minha Alma / Sempre / Terra Proibida [1896-97 / 1898 / 1898 / 1900], introdução de António Cândido Franco, Lisboa, Assírio & Alvim, 1997.As Sombras / À Ventura / Jesus e Pã [1907 / 1901 / 1903], introdução de Gil de Carvalho, Lisboa, Assírio & Alvim, 1996.Para a Luz / Vida Etérea / Elegias / O Doido e a Morte [1904 / 1906 / 1912 / 1913], prefácio de A. Fernandes da Fonseca, Lisboa, Assírio & Alvim, 1998.Senhora da Noite / Verbo Escuro [1909 / 1914], apresentação de Mário Garcia, Lisboa, Assírio & Alvim, 1999.Marânus [1911] , prefácio de Eduardo Lourenço, Lisboa, Assírio & Alvim, 1990.Regresso ao Paraíso [1912], introdução de Agostinho da Silva, Lisboa, Assírio & Alvim, 1986.Arte de Ser Português [1915], introdução de Miguel Esteves Cardoso, 2ªed., Lisboa, Assírio & Alvim, 1993.A Beira (Num Relâmpago) / Duplo Passeio [1916 / 1942], introdução de António Mega Ferreira, Lisboa, Assírio & Alvim, 1994.Os Poetas Lusíadas [1919], introdução intitulada “Reflexões sobre Teixeira de Pascoaes por Joaquim de Carvalho reflectidas por Mário Cesariny”, Lisboa, Assírio & Alvim, 1987.O Bailado [1921], introdução de Alfredo Margarido, Lisboa, Assírio & Alvim, 1987.O Pobre Tolo, Prosa e Poesia [1924 / 1930], apresentação de José Tolentino Mendonça, Lisboa, Assírio & Alvim, 2000.Livro de Memórias [1927], prefácio de António Cândido Franco, Lisboa, Assírio & Alvim, 2001.São Paulo [1934], apresentação de António-Pedro de Vasconcelos, ed. de António Cândido Franco, 2ª ed. Lisboa, Assírio & Alvim, 2002.São Jerónimo e a Trovoada [1936], introdução de António M. Feijó, Lisboa, Assírio & Alvim, 1992.O Homem Universal e Outros Escritos [1937 / Outras datas], fixação do texto, prefácio e notas de Pinharanda Gomes, Lisboa, Assírio & Alvim, 1993.O Penitente (Camilo Castelo Branco) [1942], apresentação de António-Pedro Vasconcelos, ed. de António Cândido Franco, 2ª ed., Lisboa, Assírio & Alvim, 2002.Epistolário Ibérico, Cartas de Unamuno e Pascoaes [1957], introdução de José Bento, Lisboa, Assírio & Alvim, 1986. A Saudade e o Saudosismo (Dispersos e Opúsculos), compilação, introdução, fixação do texto e notas de Pinharanda Gomes, Lisboa, Assírio & Alvim, 1988.Teixeira de Pascoaes, Desenhos, Lisboa, Assírio & Alvim, 2002.Ensaios de Exegese Literária e Vária Escrita (Opúsculos e Dispersos), compilação, apresentação e notas de Pinharanda Gomes, Lisboa, Assírio & Alvim, 2004.Bibliografia passiva sumáriaAndrade, Eugénio e Gonçalves, Dario, Uma Casa para a Poesia, Amarante, Edições do Tâmega, 1990.Barata, Gilda Nunes, A Presença na Ausência em Teixeira de Pascoaes e Mário Beirão, Lisboa, Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 2004.Casulo, José Carlos de Oliveira, Filosofia da Educação em Teixeira de Pascoaes, Braga, Universidade do Minho, 1997.Cesariny, Mário [antologia organizada por; ed. 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Cândido Franco e Luís Amaro, prefácio de Fernando Guimarães), 2ª ed., Porto Lello Editores, 1999.Coutinho, Jorge, O Pensamento de Teixeira de Pascoaes – Estudo Hermenêutico e Crítico, Braga, Publicações da Faculdade de Filosofia da Universidade Católica Portuguesa, 1995.Dias, J.M.de Barros, Miguel de Unamuno e Teixeira de Pascoaes, Compromissos Plenos para a Educação dos Povos Peninsulares, Lisboa, Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 2002.Franco, António Cândido, A Literatura de Teixeira de Pascoaes, Lisboa, Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 2000.____________, Uma Bibliografia de Teixeira de Pascoaes [Separata da Obra A Literatura de Teixeira de Pascoaes], Lisboa, Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 2000.Garcia, Mário, Teixeira de Pascoaes: Contribuição para o Estudo da sua Personalidade e para a Leitura Crítica da sua Obra, Braga, Publicações da Faculdade de Filosofia, 1976.Mesquita, Armindo Teixeira, Espiritualidade Poética de Teixeira de Pascoaes, Guimarães, Editora Cidade Berço, 2001.Morão, Paula e Sá, Maria das Graças Moreira (org. de), Encontro com Teixeira de Pascoaes – No Cinquentenário da sua Morte, Actas do Colóquio, Lisboa, Edições Colibri e Departamento de Literaturas Românicas da Universidade de Lisboa, 2004.Nova Renascença, Revista trimestral de Cultura, Actas do “Colóquio sobre Teixeira de Pascoaes”, Porto, Fundação Eng. António de Almeida, Inverno / Verão, 1997.Patrício, Manuel Ferreira, O Messianismo de Teixeira de Pascoaes e a Educação dos Portugueses, Lisboa, Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1996.Sá, Maria das Graças Moreira de, Estética da Saudade em Teixeira de Pascoaes, Lisboa, Instituto de Cultura e Língua Portuguesa, 1992.____________, O Essencial sobre Teixeira de Pascoaes, Lisboa, Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1999.Samuel, Paulo, Teixeira de Pascoaes na Revista “A Águia”, Edições Caixotim, 2004.____________, Viajar com… Teixeira de Pascoaes, Edições Caixotim, 2004.Sena, Jorge de [estudo prefacial, selecção e notas de], A Poesia de Teixeira de Pascoaes, Porto, Brasília Editora, 1982.Teixeira de Pascoaes, Actas do “Colóquio Olhares – Cinquenta anos da Morte de Teixeira de Pascoaes”, Revista da Faculdade de Letras, Série de Filosofia, II série, Volume XXI, Porto, Faculdade de Letras da Universidade do Porto, 2004.

Viana da Mota

Viana da Mota
Viana da Mota, por Teresa Cascudo José Viana da Mota (ou Vianna da Motta, conforme a ortografia vigente na sua época) marcou o curso da história da música em Portugal em dois aspetos fundamentais. Por um lado, formou várias gerações de pianistas portugueses, fundando uma escola interpretativa que se prolonga até aos nossos dias. Por outro lado, foi um dos primeiros compositores empenhados no “reaportuguesamiento” da música erudita, na afortunada expressão de Afonso Lopes Vieira. Utilizou a música tradicional e a poesia culta portuguesas nas suas obras, fazendo parte da geração que transformou Camões em símbolo da nação. A abertura Inês de Castro, baseada na versão narrada no poema épico Os Lusíadas é exemplo desta exaltação camoniana, assim como a Sinfonia à Pátria, a sua obra mais conhecida, cujos andamentos são precedidos por epígrafes retirados do mesmo poema. Para Viana da Mota, a “expressão para o sentimento da nação” era o objetivo mais alto ao qual devia aspirar a composição. Nascido em São Tomé em 1868, veio falecer em Lisboa em 1948. A sua dilatada carreira esteve repleta de sucessos, mas também sofreu penalidades pessoais e profissionais. Estas últimas, porém, nunca alteraram a sua imagem de artista “sóbrio, ponderado, inteligente, calmo, clássico”, nas palavras do compositor, seu discípulo, Fernando Lopes-Graça.De Lisboa para BerlimNascido no seio de uma família da burguesia – o pai era farmacêutico e músico amador – José Viana da Mota mostrou, desde muito cedo, um invulgar talento musical. Foi levado à corte pelo seu pai em 1874, tendo obtido, a partir dessa data, a proteção do rei D. Fernando e da condessa d'Edla. Aos 14 anos concluiu os seus estudos no Conservatório Nacional, onde foi aluno de Joaquim Francisco de Azevedo Madeira e de Francisco de Freitas Gazul. Em Lisboa, celebrizou-se como menino prodígio em concertos públicos que tiveram um eco considerável na imprensa da época.O jovem Viana da Mota, contando com o mecenato da Família Real, instalou-se em 1882 em Berlim, onde frequentou o recém criado Conservatório Scharwenka. Ali teve como professor, entre outros, fundador da escola, o pianista e compositor Xaver Scharwenka. Na mesma cidade, recebeu, entre 1886 e 1889, aulas privadas de piano e de composição de Carl Schaeffer, membro da Sociedade Wagneriana. O próprio Viana da Mota tornou-se nesta época num wagneriano ativo: ingressou na mencionada Sociedade Wagneriana em 1885, começou a frequentar o Festival de Bayreuth no ano anterior e chegou a publicar alguns ensaios de caráter interpretativo sobre a obra do compositor alemão.Em 1885, Viana da Mota foi um dos últimos alunos de piano de Franz Liszt em Weimar e, em 1887, frequentou o curso de interpretação pianística que Hans von Bülow dava anualmente em Frankfurt. Esta experiência foi decisiva para o pianista português, que em 1896 publicou um pequeno opúsculo com a descrição daquelas aulas. Bülow influenciou profundamente o seu estilo interpretativo, nomeadamente no que diz respeito à execução das obras clássicas, como as de Beethoven, com absoluta fidelidade ao texto. Em 1891 foi ainda aluno particular de direção de orquestra de Philipp Wolfrum, fundador da Sociedade Bach de Heidelberg.O pianista e pedagogoViana da Mota iniciou a sua carreira profissional em 1886, tendo-a prosseguido de maneira ininterrupta até 1945. Realizou a sua primeira digressão europeia em 1888, acompanhando o violinista Pablo Sarasate em Copenhaga e Helsínquia e o violinista Tivadar Nachez em Moscovo e S. Petersburgo. Até 1893, desenvolveu uma intensa atividade como intérprete, destacando-se os numerosos recitais em que acompanhou alguns dos mais importantes cantores da época. Em abril desse ano fez a sua primeira grande digressão em Portugal, onde não tinha tocado desde o seu concerto de despedida em 1882. Apesar de ter fixado a sua residência em Berlim, Viana da Mota apresentou-se regularmente em Portugal, principalmente em Lisboa e no Porto. O pianista fez a sua primeira digressão americana em 1892, ano em que visitou Nova Iorque. Ali conheceu Ferruccio Busoni através de Arthur Friedheim, também aluno de Liszt. Busoni e Viana da Mota tornaram-se amigos, tal como testemunha a interessante correspondência trocada entre ambos, recentemente traduzida e publicada em Portugal. Viana da Mota tocou pela primeira vez no Brasil em 1896, numa digressão com o violinista Bernardo Moreira de Sá. Voltou várias vezes à América do Sul, tendo sido muito aplaudido nos seus recitais em Buenos Aires, uma das cidades onde se apresentou mais vezes em público.A grande maioria das críticas publicadas ao longo da sua carreira assinalaram a solidez, clareza e limpidez da sua técnica, o brilho do seu toque e o rigor das suas leituras das obras dos mestres clássicos. Destacou-se como intérprete das obras de Liszt, Bach e Beethoven, tendo sido um dos pianistas que teve no seu repertório a integral das sonatas deste último. No entanto, as suas leituras de obras de compositores modernos (Debussy ou Falla, por exemplo) foram também unanimente elogiadas. Foi o primeiro pianista português a tocar em Lisboa as trinta e duas sonatas para piano solo de Beethoven na mesma série de concertos em 1927 no salão do Conservatório Nacional assinalando o centenário da morte do compositor. Apenas Florinda Santos e Artur Pizarro voltaram a realizar o mesmo feito em Portugal, algumas décadas depois. Viana da Mota foi também diretor musical da Orquestra Sinfónica de Lisboa entre 1918 e 1920, sucedendo a David de Sousa, e fundou em 1917 a Sociedade de Concertos de Lisboa.Viana da Mota publicou regularmente artigos sobre a técnica e interpretação pianísticas, sendo de destacar os seus estudos sobre a execução dos ornamentos na obra de Bach e de Beethoven. Publicou ainda, a partir da mesma data, estudos sobre a música dos compositores Wagner e Liszt. Leitor incansável de literatura e de filosofia, a sua estensa biblioteca conserva-se atualmente na Fundação Calouste Gulbenkian. Para além de exercer a crítica musical, Viana da Mota escreveu, a partir de 1897, numerosos artigos, atualmente dispersos em revistas especializadas alemãs e portuguesas. Assinou, ainda, os seguintes volumes: Nachtrag zu Studiem bei Hans von Büllow von Theodor Peiffer (Berlim, 1896; do qual existe tradução inglesa); Pensamentos extraídos das obras de Luís de Camões (Porto, Renascença Portuguesa, 1919); Vida de Liszt (Porto, Edições Lopes da Silva, 1945); e Música e músicos alemães, 2 vols. Coimbra: Coimbra Editora, 1947).Entre 1900 e 1905, desenvolveu uma intensa atividade como professor em Berlim, onde recebia os alunos que Eugen d'Albert, outro discípulo de Liszt, não podia atender por falta de tempo. Com o início da Primeira Grande Guerra, perdeu o visto para permanecer na Alemanha, tendo aceite um convite para lecionar na Escola Superior de Música de Genebra, sucedendo a Bernhard Stavenhagen, que também tinha sido aluno de Liszt. Em 1917 regressou definitivamente a Lisboa para assumir a direção do Conservatório Nacional. Nesse cargo, que ocupou entre 1918 e 1938, coordenou, juntamente com Luís de Freitas Branco, uma reforma curricular que contemplou a introdução de novas cadeiras de música e cultura geral. Foi professor, entre outros muitos, dos seguintes pianistas: Elisa de Sousa Pedroso, Campos Coelho, José Carlos Sequeira Costa, Luiz Costa, Maria Helena Sá e Costa, Maria Cristina Lino Pimentel, Maria Antoinette de Freitas Branco, Nella Maissa e Maria da Graça Amado da Cunha, assim como do compositor Fernando Lopes-Graça.O compositorViana da Mota dedicou-se à composição durante aproximadamente duas décadas, entre 1881 e 1905. A maior parte dos seus autógrafos e das primeiras edições das suas obras conserva-se no Centro de Estudos Musicológicos da Biblioteca Nacional de Lisboa. As suas composições podem agrupar-se, primeiramente, em três grupos que se correspondem com outras tantas fases criativas. O primeiro integra obras de infância, escritas para piano entre 1875 e 1883. Algumas delas foram editadas e refletem os gostos da época. Trata-se de marchas, peças de baile (mazurcas, valsas, polcas, etc.), pequenas peças, variações e fantasias sobre temas populares de óperas. O segundo grupo de obras, compostas entre 1884 e 1895, coincide maioritariamente com o seu período de formação na Alemanha e inclui peças para piano, Lieder e várias composições instrumentais nos géneros clássicos. Neste grupo pode ser incluída, seguindo critérios cronológicos, a Fantasia dramática (1893) para piano e orquestra, que se insere na tradição lisztiana, tanto no uso de um programa poético, concebido pelo compositor, como na sua vertente virtuosística. A obra foi escolhida como carta de apresentação para a sua primeira digressão portuguesa. Baseia-se num programa de influência sebastianista, concebido pelo próprio compositor, que narra um processo de libertação da tirania e da angústia pessoal graças à chegada de um providencial rei salvador.O terceiro núcleo de obras, compostas entre 1893 e 1908, caracteriza-se pelo recurso à canção tradicional portuguesa e é principalmente constituído por peças para piano, entre as quais podem ser referidas as Rapsódias portuguesas (1891-1893), os três cadernos de Cenas portuguesas (ca. 1893, 1905 e 1908) e a Balada op. 16 (1905). Pode distinguir-se um quarto núcleo de obras, escritas entre 1893 e 1897, que refletem de maneira mais elaborada um programa nacionalista, constituído pelas Canções portuguesas op. 10 (1893-5), a Sinfonia à Pátria (1894; revista em 1920) e a Invocação dos Lusíadas (iniciada em 1897; concluída em 1915 e revista em 1938). Viana da Mota abandonou quase por completo a composição a partir de 1908 em parte pelo seu desacordo com as novas tendências modernistas que se generalizavam por toda a Europa.As suas pequenas peças pianísticas manifestam uma adaptação à técnica do instrumento que proporciona um efeito brilhante. Tiveram uma boa aceitação na época, como o provam as numerosas edições de algumas delas, e eram usadas habitualmente pelo pianista como encores nos seus recitais. As suas composições nos géneros clássicos, já referidas, realizadas sob a orientação de Carl Schaffer, apresentam uma sólida conceção, mas dificilmente podem ser considerados para além de primeiras tentativas no domínio da composição. As suas obras para voz e piano sobre textos de autores alemães (muitos deles destinados à sua primeira esposa, a cantora Margarethe Lemke, ou dedicados a outras cantoras que Viana da Mota acompanhou como pianista) constituem exemplos de Lied, tal como era cultivado na época na Alemanha. É de destacar o papel dado ao piano pelo compositor e o cuidadoso tratamento do texto.A receção da Sinfonia à PátriaA importância de Viana da Mota para a cultura portuguesa prende-se com o seu papel como compositor nacionalista, podendo ser considerado o pioneiro da ideologia do nacionalismo no âmbito da composição. Viana da Mota distinguia claramente as obras em que a música tradicional era usada como elemento pitoresco – ou de “cor local” – e aquelas que perseguiam um objetivo programático de caráter nacionalista, tal como se evidencia nas seguintes palavras: “Talvez a canção popular seja o melhor caminho para chegar à alma do povo, mas terá então que encontrar-se a própria expressão para o sentimento da nação. E este é o mais alto ponto de vista.” A Sinfonia «À Pátria», a obra mais conhecida do compositor, pode ser considerada o modelo daquilo em que Viana da Mota estava a pensar quando escreveu a anterior afirmação. Foi dada em primeira audição em Lisboa em 1894 no Salão Neuparth, numa redução para piano realizada e interpretada pelo compositor. Foi, portanto, o próprio Viana da Mota quem proporcionou inicialmente aos críticos o programa da sua obra, o qual foi amplamente divulgado.Em 1896, António Arroyo escreveu um artigo elogiando Viana da Mota para a revista Amphion, onde a composição foi assim descrita: “A Sinfonia em lá maior Á Pátria é uma página de um elevado simbolismo, uma síntese luminosa e profundamente sugestiva dum momento histórico determinado; o autor, representando o momento de crise em que a pátria parece soçobrar, fá-la resurgir de novo para uma vida gloriosa num como rejuvenescimento da alma nacional. Ela divide-se em quatro tempos, os da forma clássica do modelo beethoveniano, tendo cada um a sua significação própria”. Isto é, a sinfonia foi saudada como uma síntese entre as “obras mais avançadas do seu tempo” e a “forma clássica do modelo beethoveniano” e como a expressão das circunstâncias históricas que atravessava a Pátria. Esse programa foi também difundido por António Arroyo através da seguinte descrição: “o autor, representando o momento de crise em que a pátria parece soçobrar, fá-la ressurgir de novo para uma vida gloriosa num como rejuvenescimento da alma nacional”. Um ano depois, em 1897, a mesma revista Amphion publicou a crítica da estreia orquestral da obra, mantendo os elogios e voltando a insistir no significado do programa da obra: “gerada sob o critério da moderna escola alemã, caracterizado pela forma do Poema Sinfónico e por todos os processos da música expressiva; cada um [dos seus] tempos traduz uma página de emoção diversa; no 1º tempo (Allegro heroico) formulou o autor a invocação às Tágides, contida nos versos do nosso Épico; no Adagio simboliza o lirismo português; no Scherzo pinta-nos o nosso povo numa cena de danças e cantigas nacionais; e no Final a página dramática da obra, descreve-nos a Decadência da pátria, a Luta na crise e o Resurgimento resultante dessa luta”No dia 21 de maio de 1897, uma orquestra de noventa instrumentistas dirigidos por Moreira de Sá tinha apresentado no Salão Gil Vicente do Palácio de Cristal, no Porto, a sinfonia de Viana da Mota juntamente com as seguintes obras: uma seleção das Variações sobre um tema popular brasileiro «Vem cá Bitú» do compositor paulista Alexandre Levy orquestradas por Moreira de Sá; o poema sinfónico Ave Libertas de Miguéz; as Cenas nas estepes da Ásia Central de Borodin; e, por último, o prelúdio do terceiro ato de Lohengrin, de Wagner. Nacionalismo e o modernismo wagneriano juntam-se no programa, onde se destaca a comunhão de objetivos partilhados pelo compositor português e seus colegas brasileiros. Assim, as Variações sobre um tema popular brasileiro foram escritas pelo jovem Levy antes da sua ida para Paris com o intuito de concluir a sua formação musical. Fazem parte de um consciente programa nacionalista, cujo objetivo era a criação de uma música caracteristicamente brasileira a partir da música popular. O poema sinfónico Ave Libertas, por seu turno, foi composto para comemorar o primeiro aniversário da República Brasileira. Torna-se difícil admitir que a reunião destas três composições no mesmo programa e num local, o Salão do Palácio de Cristal, um otimista símbolo arquitetónico do progresso da cidade, obedecesse ao acaso.Um precursor da figura do músico-intelectualNa Alemanha, Viana da Mota apropriou-se de uma nova forma de entender a música, que ia muito para além do meramente decorativo. O respeito pelo legado da história, representado na obra de Bach e de Beethoven, e a necessidade de procurar ligações com o resto das artes e com a filosofia, na esteira do wagnerismo e do magistério de Liszt, definiram a sua personalidade artística em proporções equivalentes. Viana da Mota teve o mérito de introduzir em Portugal, no âmbito da música, uma conceção elitista da Arte como “actividade superior do espírito”, baseada na reflexão e no aperfeiçoamento constante da sua própria atividade enquanto músico. Foi um precursor em Portugal do modelo de músico-intelectual. Mais ainda, foi um dos poucos artistas portugueses cuja carreira teve verdadeira projeção internacional. Se o seu legado interpretativo não é, hoje em dia, ainda mais evidente é apenas por causa do número muito reduzido de registos sonoros das suas apresentações que chegaram até nós. Fica aqui o desejo de que pesquisas ulteriores nos descubram novos tesouros que testemunhem a sua arte, aplaudida ao longo de décadas nas principais capitais de Europa e da América.DiscografiaA melhor aproximação à arte de Viana da Mota será, sem dúvida, através da escuta dos registos disponíveis das suas próprias interpretações. A maior parte deles não são, porém, atualmente fáceis de conseguir. Foram editados em 1995 pela etiqueta Dante que, entretanto faliu. Esta gravação (Dante HPC 028) incui obras para solo piano da autoria de Busoni, Schubert, Chopin e Liszt, para além de peças do próprio compositor. São gravações realizadas por Viana da Mota para a casa Pathé por volta de 1927 e inclui, ainda, o Duettino concertante nach Mozart, de Busoni, tocado juntamente com uma das suas alunas (Mlle. Castello Lopes). O CD apresenta também uma interpretação ao vivo da Totentanz, de Liszt, realizada em 1945 juntamente com a Orquestra Sinfónica Nacional sob a batuta de Pedro de Freitas Branco. “Égloge” dos Années de pèlerinage está também incluída no volume “The Pupils of Liszt” (Pearl 9972). A antologia “Great Pianists on Piano Rolls” contém Polacca brillante op. 72, de Weber, numa execução realizada por Viana da Mota em 1905 (Phonographe Records 5027).É mais acessível a gravação de uma representativa seleção das suas composições para piano (editada em 2001 em CD) na interpretação do seu discípulo José Carlos Sequeira Costa (Marco Polo 8225116). Entre outras obras contém a Balada op. 16, da qual existem disponíveis mais três versões pelos pianistas António Rosado (PortugalSom 860018), Artur Pizarro (Hyperion A 67163) e Sofia Lourenço (Numérica 1077). As gravações de António Rosado e Artur Pizarro estão exclusivamente dedicadas à música de Viana da Mota. A primeira é um recital de piano solo que contempla duas peças não incluidas no CD de Sequeira Costa e a segunda reúne o Concerto em lá maior e a Fantasia Dramática, interpretados estes por Pizarro juntamente com a Orquestra Gulbenkian e com direção musical de Martyn Brabbins.A soprano Elvira Archer e o pianista Anton Illenberger gravaram nos anos 80 uma importante seleção das obras para vocais do compositor, em resultado do trabalho de pesquisa desenvolvido pela mencionada cantora em torno deste repertório (PortugalSom 870009). Contém canções sobre textos de poetas alemães, italianos e portugueses compostas entre 1883 e 1893.Existem três versões diferentes da Sinfonia à Pátria. Duas delas foram editadas pela PortugalSom e interpretadas, respetivamente, pela Orquestra Sinfónica da RDP dirigida por Silva Pereira e pela Orquestra Sinfónica do Estado Húngaro sob a batuta de Mátyás Antal (Portugalsom CD 870016/PS e SP 4117). Mais recentemente, Mario Mateus, à frente da Orquestra Filarmónica de São Petersburgo, gravou a sinfonia juntamente com a abertura Dona Inês de Castro, que nunca tinha sido registada anterioriormente (Northern Flowers 9938). Por último, no capítulo da música orquestral, foi também editada uma gravação do Vito, incluída no volume 12 da coleção Edição Pedro de Freitas Branco (PortugalSom 4116). _________________ BibliografiaAlexandre Delgado, A sinfonia em Portugal, Lisboa, Caminho da Música, 2002.Christine Wassermann Beirão, José Manuel de Melo Beirão e Elvira Archer (orgs.), Vianna da Motta e Ferruccio Busoni. Correspondência – 1898-1921, Lisboa, Caminho da Música, 2003.Fernando Lopes-Graça, Viana da Mota: subsídios para uma biografia incluindo 22 cartas ao autor, Lisboa, Sá da Costa, 1949 (reeditado em Opúsculos, vol. 3, Lisboa, Editorial Caminho, 1984).João de Freitas Branco, Viana da Mota: uma contribuição para o estudo da sua personalidade e da sua obra, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1987 (2ª ed.).Maria Josefina Andersen, Viana da Mota interpretando os grandes músicos: estudos de estética musical, Figueira da Foz, Tipografia Popular, 1937.Teresa Cascudo e Maria Helena Trindade (eds.), José Vianna da Motta: 50 anos depois da sua morte, Lisboa, Instituto Português de Museus, 1998.Teresa Cascudo, “A década da invenção de Portugal na música erudita (1890-1899)”, Revista Portuguesa de Musicologia, 10, 2000, pp. 181-226.- “Relações musicais luso-brasileiras em finais do século XIX”, Revista Camões, Outubro-Dezembro de 2000, pp. 136-141.

Vieira de Almeida

Vieira de Almeida
Vieira de Almeida, por Carlos Leone Francisco Lopes Vieira de Almeida (n. 9/8/1888, Castelo Branco – m. 20/1/1962, Cascais).Figura filosófica e cultural de grande relevo na sociedade portuguesa, e não só lisboeta, durante a primeira metade do século XX, aproximadamente, Vieira de Almeida foi, enquanto professor, autor e personalidade, um caso invulgar de rigor filosófico e atenção cívica que, embora hoje pouco lembrado, não pode ser esquecido quando se trabalha a história e a cultura portuguesas contemporâneas.Licenciado e doutorado pela Faculdade de Letras de Lisboa em Filosofia, ingressou como docente na Universidade pelo grupo de História (em 1915). Em 1921 voltou à área de Filosofia onde ascende a catedrático em 1930, mantendo-se em atividade permanente até 1958. Apesar de entre a sua extensa bibliografia encontrarmos poesia, romance a e teatro, bem como traduções, é a sua atividade como professor e ensaísta na área de Filosofia e também de História que o distingue. É mesmo possível afirmar que o seu foi um dos primeiros casos de articulação bem sucedida entre dois registos de crítica à sociedade portuguesa que marcam o século XX no seu conjunto: se, na primeira metade do século, é de um ideal de reformismo cívico que se faz o discurso crítico português, uma transição encetada ao longo das décadas de 1940 e 1950 leva a que na década de 1960 se assista a uma especialização disciplinar da análise social, fundada nos saberes emergentes das ciências sociais. Ora, Vieira de Almeida foi um percursor dessa especialização disciplinar, sendo um dos raros autores portugueses com trabalhos de relevo em Lógica (e na sua divulgação), mas nunca abdicando de um compromisso político explícito apesar dos dissabores que o regime lhe causou mesmo em idade avançada.Monárquico, e próximo de autores como Pequito Rebelo e Hipólito Raposo nos alvores da I República, não demorou muito a cativar simpatia noutros quadrantes e não espanta, por isso, ver o seu nome entre os fundadores da breve (apenas dois números) Revista dos Homens Livres («livres das Finanças e livres dos Partidos»), projeto frentista contra a degeneração da República na década de 1920. Fracassada essa «frente», e implantada a ditadura que estará na base do Estado Novo, Vieira de Almeida encontra-se já próximo do grupo Seara Nova, com o qual mantêm contactos, através de Câmara Reys, mesmo depois de António Sérgio se afastar da revista. Já então uma figura intelectual de referência (o seu primeiro trabalho filosoficamente relevante data de 1922, A Impensabilidade da Negativa), sempre se manteve disponível para apoiar a oposição nos períodos de maior repressão, entre as décadas de 1930 e 1950. Mesmo Humberto Delgado, que na sua campanha de 1958 não escondia o seu desgosto com a «guerra dos papéis» daqueles já idosos vultos da I República (os «barbas»), não deixou de o apreciar em particular, pela sua independência, vivacidade e, provavelmente, percurso político pouco comum (no qual o próprio Delgado talvez se revisse, com outras matizes). Na ressaca dessa campanha e do seu desfecho, encontramos Vieira de Almeida entre os «quatro grandes» (expressão de Mário Soares no volume de homenagem a Vieira de Almeida no centenário do seu nascimento, v. Referências bibliográficas) que se juntam a Delgado para convidar os socialistas Aneurin Bevan e Mendès-France para conferências em Portugal, em 1959. Impedidas as conferências, e presos os quatro notáveis (além de Vieira de Almeida, Jaime Cortesão, António Sérgio e Azevedo Gomes), o regime tentou voltar à normalidade. Não o conseguindo, não impediu no entanto Vieira de Almeida de morrer em casa, lúcido e comunicativo, estimado pelos mais variados setores da vida intelectual portuguesa.Além da Lógica moderna, matemática, que introduziu na Universidade de Lisboa com estudos originais sobre Boole, Russell e Tarski, e que divulgou em obras menos especializadas, a sua atividade como filósofo deu origem a trabalhos nas áreas de Estética, Epistemologia e História. Por isso não é de estranhar que nomes tão centrais na historiografia e ciências sociais portuguesas da segunda metade do século, como Jorge Borges de Macedo e Vitorino Magalhães Godinho (v. textos sobre ambos no CVC) tenham sido influenciados pelo seu magistério. Contudo como é ainda hoje comum em Portugal, não é possível falar-se de uma «escola», com discípulos inspirados pelo Mestre. No volume de homenagem já referido encontra-se sobre esta questão um debate com vários participantes, no qual destacamos as intervenções de Joel Serrão, Mário Sottomayor Cardia (v. texto no CVC) e Piteira Santos, onde impressões pessoais e análises competentes se reúnem de um modo muito invulgar na habitual dispersão do pensamento filosófico (e não só…) português – para glosarmos um dos títulos mais citados da bibliografia de Vieira de Almeida. Igualmente invulgar é o facto de a sua Obra Filosófica se encontrar publicada, reunida e apresentada em 3 volumes (v. Referências) por Joel Serrão e Rogério Fernandes.Figura cativante e polémica, capaz de simultaneamente comandar o respeito intelectual de especialistas e chegar a públicos mais amplos, os estudos dedicados ao seu pensamento não são muitos. O mais recente que conhecemos é a dissertação de Mestrado de Graça Maria Dias Lopes intitulada O pensamento estético em Vieira de Almeida (Universidade do Minho, 1998). Um esquecimento tanto mais lamentável quanto a sua combinação de atividade cívica, pública, e diversidade intelectual, em particular científica, é rara. E particularmente valiosa para apreciar um processo de mudanças institucionais que foi decisivo na evolução da sociedade portuguesa ao longo do século XX. _____________________________ Referências bibliográficas:Calafate, P., dir., História do Pensamento Filosófico Português, (vol. V, tomo 2), editorial Caminho, Lisboa, 2000.Gama Caeiro, F. da, «ALMEIDA (Francisco Lopes Vieira de)», in VVAA, Logos – Enciclopédia Luso-Brasileira de Filosofia, Editorial Verbo, Lisboa, São Paulo, 1989 (vol. 1: 177-180).Nabais, Nuno, editor, Vieira de Almeida (1888-1988) – colóquio do centenário, ed. Fac. Letras de Lisboa/Colibri, Lisboa, 1991.Vieira de Almeida, Obra Filosófica, Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 1986-8 (organizada e apresentada por J. Serrão e R. Fernandes).