O Nónio de Pedro Nunes
António Estácio dos Reis, Academia de Marinha

Este artigo foi publicado na Revista Oceanos - número 38 Abril / Junho 1999, com o título «Navios e navegações - Portugal e o Mar»
Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses

O NÓNIO DE PEDRO NUNES
O conceito de nónio
Tycho Brahe recorre ao nónio de Pedro Nunes
O acaso faz história
A solução de Vernier
Bibliografia


Desenho segundo a gravura apresentada por Pedro Nunes, em De Crepusculis, que acompanha a descrição do nónio.

O conceito de nónio

 

   Estamos certos que Pedro Nunes (1502-1577), quando se preocupou com este problema não conhecia o trabalho de Levy, que apesar de traduzido para latim devia ter tido uma divulgação muito limitada, por se tratar de um manuscrito.  E, muito menos a obra de Digges que, apesar de impressa,é posterior à sua invenção. Aliás, se tal tivesse acontecido,talvez o facto desmotivasse o nosso ilustre sábio, pois o seu conceito de nónio, tem o mesmo objectivo que a escala diagonal.

   O nónio aparece na obra De Crepusculis, publicada em 1542.  Na segunda parte desta obra, a proposição número três, reza assim: " Construir um instrumento que seja muito apropriado às observações dos astros, e com o qual se possam determinar rigorosamente as respectivas alturas".

   A ideia que estimulou o nosso cosmógrafo, aliás descrita na sua obra intitulada De arte atque ratione navigandi, foi uma passagem do Almagesto (pag 9 da edição de 1515), em que Ptolemeu considera que o valor do arco de meridiano entre os dois trópicos corresponde à fracção 11/83 da circunferência. Diz ainda que o limbo do instrumento utilizado para esta medição deve ser dividido em graus e cada grau em partes do grau, sem fixar o número delas.

   Pedro Nunes, sabendo que na época do sábio alexandrino não existiam instrumentos que permitissem tal precisão, e inspirando-se talvez na proporção entre aqueles dois números inteiros, desenvolveu a proposição atrás referida, imaginando o que ficou conhecido pelo nome de nónio.

  

(clique na imagem acima para ver ampliação)
Esquema em que se mostram graficamente as posições do nónio, entre os 37 e 38º, referidas na Fig 7. Seguindo o exemplo apresentado no texto, se desejarmos medir um ângulo de 37º 23’ (onde se colocou a medeclina), constata-se que a posição do nónio mais perto deste valor é a 27ª na escala dividida em 65 posições. A leitura teria sido feita com um êrro de .08’ que, neste caso, é inferior ao êrro médio de 2.13 minutos indicado no texto.

Posições do nónio entre os 37 e 38º, distribuidas pelas diversas escalas que o constituem. Constata-se que algumas posições são repetidas em escalas diferentes. Entre parêntesis, do lado esquerdo da tabela, estão indicadas primeiro a posição na escala e, em seguida, o número de divisões em que foi dividida essa escala. No lado direito da tabela menciona-se o valor angular de cada posição ou posições quando estas são coincidentes.

Num astrolábio graduado de 0 a 90 graus, construam-se mais 44 escalas concêntricas, mas sucessivamente divididas em 89, 88, 87, até chegar a 46 partes. Nestas condições, ao medir-se um determinado ângulo, que não corresponda a um número exacto de graus, é muito provável que o seu valor caia rigorosamente, ou muito próximo, de uma divisão das referidas escalas. Vamos supor que desejávamos medir o ângulo de 37 graus e 23 minutos. Verifíca-se que pela tabela que apresentamos, onde foram incluídas todas as posições do nónio entre 37 e 38 graus, a 27ª posição da escala 65 de divisões mede 37 graus e 23.08 minutos, o que permite fazer uma leitura com o afastamento de apenas 8 centésimos de minuto. Para ficarmos com uma ideia mais clara do que se passa no sector, atrás mencionado, elaboramos um desenho, no qual não foi cumprida a escala, em que podemos apreciar as posições do nónio nele contidas.

   No exemplo que apresentamos, o afastamento foi de 8 centésimos. Nem sempre se consegue tal aproximação, dado que o afastamento médio entre duas posições é superior. De facto, se dividirmos o quadrante pelo número de posições do nónio não repetidas, verificamos que a separação média é pouco superior a 2 minutos de arco. 

   Todavia, esta separação média é enganosa, dado que a distribuição das posições do nónio é muito irregular. Apesar de termos calculado, como atrás referimos, todas as suas posições, não nos apercebemos que existem largos sectores, que chegam a alcançar os 30’, nos quais não há uma única posição. Esta descoberta devêmo-la a Jean Widemann, que calculou os valores da separação entre todas as posições do nónio, o que o conduziu a resultados surpreendentes. Transcrevemos alguns dos vazios mais significativos:

   entre 44º 30’ e 45º 30’, só existe a graduação dos 45º;

   entre 29º 40’ e 30º 20’, só há a posição dos 30º e, como no nónio se verifica uma rigorosa simetria em relação aos 45º, também entre os 59º 40’ e 60º 20’, apenas aparece a graduação dos 60º;

   entre 22º 15’ e 22º 45’ e entre 67º 15’ e 67º 45’, encontram-se exclusiva e respectivamente, as posições 22º 30’ e 67º 30’.

   Os exemplos seguem-se, mas as separações vão, naturalmente, diminuindo.Sem dúvida que o nónio seria de enorme utilidade (desconhecía-se então a irregular distribuição das suas posições) quando integrado num astrolábio, pois foi este o instrumento escolhido por Nunes para a aplicação do seu invento. Todavia, a gravação das 45 escalas (estamos a incluir a escala principal , de zero a 90º ) era, para a época, um trabalho extremamente difícil pela circunstância de não existirem processos geométricos para efectuar a sua correcta divisão. Além disso ainda havia a questão do espaço. De facto, se num astrolábio planisférico ou náutico de disco, com 20 ou 25 centímetros de diâmetro, a gravação já tinha as suas limitações, esta tornava-se impossível quando se tratasse de um astrolábio náutico de roda.

   Nesta nossa caminhada ao longo de tão apaixonante assunto, procuramos averiguar qual teria sido a divulgação que teve este invento noniano e quais os instrumentos que o usaram.

   Nestes aspectos, em Portugal, encontramos uma descrição do nónio na Arte de Navegar, de 1596, que o padre Francisco da Costa designa por "quadrante dos quadrantes", sem fazer a mais pequena referência ao seu autor.

    Já antes de Francisco da Costa, um outro português, João Baptista Lavanha, no seu Tratado del Arte de Navegar , de 1588, escrito em castelhano, apresenta uma pormenorizada descrição do nónio, onde também não faz a mais pequena alusão ao sábio salaciano.

   No que respeita a instrumentos dotados de nónio que tenham existido no nosso país, não encontramos um único exemplar, nem tão pouco qualquer notícia a seu respeito. Todavia , Francisco Stockler, em 1818, diz-nos que todas as dúvidas que porventura subsistam ácerca do nónio poder-se-iam desvanecer "se ainda existissem os instrumentos de que Pedro Nunes se servia, e que ele havia em grande parte feito construir, porém quis a desgraça que todo esse precioso depósito, indo parar ao poder dos religiosos beneditinos do colégio que esta ordem monástica tem em Coimbra, o abade que governava aquele colégio, quando se fizeram as grades do adro da igreja, sendo informado que se precisava de uma porção de metal amarelo, para se fundirem umas carrancas, ou peças metálicas, que ainda actualmente adornam as sobreditas grades; entendendo que aqueles instrumentos astronómicos, de que os frades não faziam uso algum, eram trastes absolutamente inúteis, os deu para se converterem nos indicados ornatos. Assim acabaram, vítimas de uma ignorante economia, monumentos científicos, preciosos pela sua antiguidade, e respeitáveis em consideração do homem de génio que tinha inventado uns, aperfeiçoado outros, e manejado todos com singular habilidade". Stockler esclarece que esta "anedota" era corrente em Coimbra, quando ele se formou naquela Universidade, e que lhe foi "transmitida por pessoa muito curiosa, sisuda, e verídica".

   Admitimos, como perfeitamente possível, que tal pudesse ter acontecido, porque, infelizmente, não é caso único a destruíção, no nosso país, de património científico.

   Todavia, não encontramos qualquer suporte documental que confirme a afirmação de Stockler. Acontece até que as grades onde estavam as referidas carrancas foram demolidas com a igreja há longos anos. Mas mesmo que tal episódio tivesse acontecido, nada nos prova que Pedro Nunes possuísse instrumentos dispondo do seu nónio. Em primeiro lugar porque, como já atrás referimos, não conhecemos uma única notícia a este respeito e, em segundo lugar porque a divisão e a gravação das escalas dum nónio, como já dissemos, era um trabalho árduo, exigindo artífices de grande perícia que, na época, não existiam em Portugal.

   O mesmo não aconteceu no estrangeiro, durante a segunda metade do século XVI, onde em várias cidades como Augsburgo, Nuremberga ou Antuérpia, famosos artistas tais como Christoph Schissler, Tobias Volckmer e Gemma Frisius, só para citar alguns, nos deixaram instrumentos da mais alta qualidade. Isto porque estes artífices, para além de uma noção perfeita da função desses mesmos instrumentos, conheciam de tal maneira os processos de fabrico e usavam-nos com tal perícia, que nos deixaram obras tão elaboradas que, ainda hoje, nos causam a maior admiração.

   No nosso país nada disto acontecia. Para além do astrolábio náutico, que foi, na época e sem qualquer dúvida, o instrumento de alturas de maior prestígio, que os portugueses desenvolveram e fabricaram, mas cuja tecnologia era elementar, não há memória de aqui se ter feito, por exemplo, um astrolábio planisférico, que foi ferramenta indispensável dos cosmógrafos de antanho. E destes belos instrumentos, chegaram até aos nossos dias mais de 1300, pois a lista que refere este número é de 1955 e sabemos que já foram catalogados muitos outros.


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