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Quando, o que até agora dissemos, era, em linhas gerais o que sabíamos acerca deste assunto, aconteceu-nos um facto imprevisto. Estávamos em New York, e decidimos visitar o Hayden Planetarium. Fizémo-lo porque admitimos que, à semelhança do que acontece com o seu congénere de Chicago, possuidor da mais importante colecção de instrumentos científicos dos Estados Unidos, podia ali haver alguns objectos que nos interessassem. E havia! De facto, e devido a uma espantosa coincidência -- será isto a tal serendipidade -- a firma IBM apresentava uma exposição de réplicas de instrumentos científicos do passado. Entre eles, expostos em belas vitrines, deparamos com o Galileo's Proportional Compass. Tratava-se de um quadrante dispondo de nónio e que a legenda, indicava que o original , fabricado por Galileu , cerca de 1597, era resultado de melhoramentos feitos em dispositivos similares. A legenda, apesar de errada, informava ainda que "This replica is based upon an original Galilean Compass in the Museum of History of Science in Florence". Se fosse verdade teríamos encontrado o primeiro instrumento da época, dispondo do nónio de Pedro Nunes. Como estávamos num domingo e no dia seguinte regressávamos a Lisboa, foi daqui que escrevemos ao Planetário de New York pedindo uma fotografia da referida réplica e a cota do original no Museu de Florença para sua identificação. Ao fim de algum tempo, recebemos, não do Planetário, mas sim da IBM, via Amesterdão, um catálogo respeitante a uma exposição sobre Leonardo da Vinci, sem qualquer explicação e que, naturalmente, nada tinha a ver com o assunto.
Face à situação, decidimos dirigir-nos ao Instituto e Museu de História da Ciência, de Florença, onde a legenda situava o tal Galileo's Proportional Compass, para assim obtermos os elementos indispensáveis ao seu estudo. Em resposta recebemos a fotografia de um simples compasso de proporção. Como admitimos que a confusão residia, não no instrumento, mas sim na sua identificação, dirigimo-nos directamente a Mara Miniati, conservadora daquele prestigioso Museu e que bem conhecemos, porque é membro, como nós, da Scientific Instrument Society, de Londres. Dissemos-lhe o que procurávamos. Devido à sua preciosa diligência, recebemos a fotografia de um instrumento dispondo de nónio, mas que, seguramente, nada tinha a ver com a réplica de New York. Trata-se de um quadrante para a medição de alturas, ao qual lhe falta a alidade. O limbo horizontal graduado, em que assenta o quadrante, está em parte danificado e da bússula de orientação só existe o suporte. Todavia, o nónio, que é o que mais nos interessa, está em perfeito estado de conservação e reproduz exactamente o que foi concebido por Pedro Nunes. O fabricante deste instrumento, James Kynuyn, teve actividade em Londres, entre 1569 e 1610, e o seu nome foi grafado de vários modos. A data de fabrico deste instrumento, conforme indicado no catálogo do Museu, é 1595, mas na sua descrição, não é feita qualquer alusão ao nónio, o que mostra que a obra de Pedro Nunes, ao contrário do que aconteceu no passado, é hoje desconhecida no estrangeiro. Ficamos naturalmente satisfeitos com a descoberta deste instrumento de Kynuyn, porque se trata do primeiro exemplar que nos aparece, e talvez o único, dispondo da célebre invenção noniana. Julgamos por isto, que o assunto tem o maior interesse para a História da Ciência. Um dos aspectos mais apaixonantes na pesquisa histórica é, precisamente, o trajecto percorrido pelas obras de ciência ou de arte desde o momento em que são concebidas até chegarem a um museu que é, sem dúvida, o seu natural destino. Conhecer o nome de quem as encomendou e do fabricante que as produziu, dos seus possuidores ao longo dos tempos, os preços que por elas se pagaram, que restauros sofreram, é um objectivo que o investigador nem sempre consegue. É como andar para trás com a máquina do tempo, mas a máquina, a maior parte das vezes, emperra. Todavia, neste caso, funcionou. Apuramos que o quadrante, de que nos estamos a ocupar, pertenceu a Robert Dudley, que também possuiu outros instrumentos científicos que levou para Itália.
Este Robert Dudley (1573-1649), duque de Northumberland, era filho do conde de Leicester, que foi ministro e favorito de Isabel I de Inglaterra e de Lady Douglas Sheffield. Sir Robert teve uma vida atribulada. Foi estudante da Christ Church, Oxford e em 1594, com a idade de 21 anos surge comandante de dois navios que foram para as Índias Ocidentais e à Guiana. Nesta missão explora as bocas do rio Orinoco, no território que é hoje a Venuzuela. Dois anos depois participa na expedição naval contra Cadiz e é feito cavaleiro pela sua bravura. O facto de ser filho ilegítimo cria-lhe complicações e, em 1605, abandona para sempre a Inglaterra, ali deixando mulher e filhos, acompanhado por uma das belezas da época, Elizabeth Southwell. Estabelece-se em Florença, converte-se ao catolicismo, casa-se com a sua nova companheira e, por tudo isto, os seus bens são confiscados e vendidos. Na sua pátria adoptiva, é acolhido por Cosme II (1590-1621) gran-duque da Toscana e, depois, fica ao serviço do seu sucessor Ferdinando II (1610-1670), discípulo do grande Galileu, que muito se interessou pelas artes e ciências. Robert Dudley foi geógrafo e engenheiro naval, tendo desenhado e construído navios para os Medici, recebendo em troca a protecção destes grandes senhores de Florença. Drenou os pântanos entre Pisa e Livorno e construíu o porto de mar que serve esta última cidade. Como demonstração dos seus conhecimentos publica, no fim da sua vida, em 1646-7, Dell'Arcano del Mare, um tratado, constituído por cinco partes reunidas em três volumes, que dedica ao gran-duque Ferdinando. Desta obra, de belo aspecto gráfico e preciosas ilustrações, existe um exemplar na Biblioteca da Ajuda. Nela são apresentados vários assuntos ligados às coisas do mar, como um tratado de estratégia naval, um manual de construção naval, directivas para a edificação de fortificações costeiras, instruções para os navegadores e uma colecção de mapas do mundo, isto para referir apenas o que há de mais importante nesta obra de excepção. Na parte V, consagrada à navegação e instrumentos náuticos, aparece uma gravura de excepcional interesse, porque reproduz o instrumento de Kynuyn, que, como dissemos atrás, está incompleto. Este quadrante juntamente com outros instrumentos de Dudley, após a sua morte, torna-se propriedade gran-ducal, para, a seguir, iniciar uma viagem à volta de Florença. De facto, em 1654, a colecção passa para a Galleria degli Uffizi, onde permanece até que, entre 1769 e 1775, é integrado no Museu de Física e História Natural. Em 1930, após a criação do Instituto e Museu de História da Ciência, aqui fica depositado definitivamente. É curioso notar que, neste museu, e proveniente do espólio de Dudley, existe um astrolábio náutico do fabricante português Francisco de Goes.Rapozo, que exibe a data de 1608. Terminada a nossa pesquisa florentina, decidimos voltar ao mistério nova-iorquino. Através da IBM de Lisboa conseguimos uma fotografia polaroide da réplica que vimos na exposição do Hayden Planetarium e que passou a decorar o gabinete do presidente da IBM, New York. A fotografia, apesar da sua deficiente definição, permite constatar que a pretensa réplica era afinal cópia fiel de um dos quadrantes usados por Tycho Brahe, e incluídos na sua obra Astronomiae Instauratae Mechanica, aos quais já atrás nos referimos. Nestas condições, estaríamos perante um das três seguintes situações: 1. A réplica é cópia do original de Tycho Brahe. Apesar de todas as informações que dispomos afirmarem que os instrumentos deste astrónomo desapareceram, não podemos abandonar esta pista; 2. A réplica é cópia de uma réplica dum quadrante daquele célebre astrónomo. Neste caso, seria de grande interesse saber onde ela se encontra; 3. A réplica foi copiada do desenho inserido na referida obra de Brahe. Quando procurávamos novos meios para tentar esclarecer este assunto, pois já tínhamos perdido a esperança de resposta às cartas dirigidas à IBM, recebemos uma missiva desta conceituada firma, proveniente do "Office of IBM Director of Brand Management, Corporate Communications", que transcrevemos integralmente:
"November 15, 1994 Dear Mr dos Reis I am responding to your letter to IBM concerning the Galileo Porportional Compass. The Compass is no longer on public exhibition, or available for inspection. I regret that we cannot be more helpful in your studies. Sincerely, Charles E. Pankenier"
Com esta resposta fechou-se, desagradavelmente, a porta da IBM que, está bem claro, não pretende fazer qualquer esforço para esclarecimento da verdade. Tudo nos leva a crer que esta postura, se destina, simplesmente, a esconder o erro cometido, que aliás julgamos não ser da responsabilidade da IBM. De facto, o que parece habitual é as firmas contratarem empresas para a prestação de serviços especiais, como admitimos ser, para a IBM, a organização e montagem de exposições. Todavia, ainda que pareça incrível e sem qualquer espécie de humor, estamos muito gratos à IBM e ao autor da falsa legenda que, sem suspeitar, nos conduziram ao museu de Florença, no qual Mara Miniati, a quem estamos imensamente reconhecidos, nos identificou o único nónio vivo de Pedro Nunes.
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