Vida breve

 

Bento de Jesus Caraça é uma personagem emblemática da primeira metade do século passado. De origem modesta, é a sua avidez pelo saber que o resgata a um destino quase inevitável de trabalho no campo. Com qualidades pedagógicas reconhecidas, deixou um legado de obras no qual se destaca «Conceitos Fundamentais de Matemática».

 

«Se não receio o erro é porque estou sempre pronto a corrigi-lo.» A frase aparece logo à entrada de um edifício da Rua Miguel Lupi, em Lisboa, onde estão sediados gabinetes do Instituto Superior de Economia e Gestão. Por cima, encontra-se um baixo-relevo com a face de um homem de aparência serena. Trata-se de Bento de Jesus Caraça, o mais famoso dos docentes dessa escola da Universidade Técnica de Lisboa.

 

O homem que a escreveu nasceu há pouco mais de 100 anos, em 18 de Abril de 1901, em Vila Viçosa, no Alentejo. Filho de uma família de trabalhadores rurais, o jovem Bento teria uma carreira académica brilhante e tornar-se-ia um dos intelectuais portugueses mais respeitados. A morte, que lhe chegou muito cedo, a 25 de Junho de 1948, tornou-o um símbolo de uma época.

Nasceu a 18 de Abril de 1901 e a morte arrancou-o a um futuro e carreira promissores. Quando Bento de Jesus Caraça morreu, com apenas 47 anos, era já um nome de referência nos meios académicos.

Filho da classe mais pobre de um país pobre, Bento de Jesus Caraça é arrancado do destino quase inevitável dos trabalhos no campo pela sua curiosidade, pela sua avidez de saber e pelas suas invulgares qualidades intelectuais. Aprende a ler por acaso, com um trabalhador errante que pouco mais possuía do que um livro escolar. Surpreende pela sua inteligência a proprietária da herdade em que os pais trabalhavam, D. Jerónima, que se propõe assumir a sua educação. Entra na escola primária de Vila Viçosa, onde termina os estudos em 1911. Estuda no Liceu de Santarém e, depois, no Liceu Pedro Nunes, em Lisboa, onde completa o curso liceal. Sobrevive na capital com a ajuda de explicações que dá aos seus colegas. Em 1918 ingressa no Instituto Superior do Comércio, actual Instituto Superior de Economia e Gestão.

 

Ainda estudante, é nomeado 2º assistente pelo matemático Mira Fernandes. Terminado o curso, é assistente, depois professor extraordinário e finalmente catedrático, lugar que alcança em 1929, com 28 anos. Tratava-se, evidentemente, de um homem de uma inteligência superior. Mas tratava-se também de um homem que exercia um fascínio sobre os que o rodeavam, alunos, colegas e amigos, e que se inseriu militantemente numa época social e politicamente perturbada. Os que o conheceram são unânimes em destacar as suas qualidades pedagógicas e o carisma de um professor para o qual «todas as salas eram pequenas», pois não bastavam para conter os alunos que vinham voluntariamente ouvir as suas lições, muitas vezes de escolas afastadas.

 

Enquanto professor, Bento de Jesus Caraça preocupava-se com a didáctica, procurando entrelaçar a intuição com o rigor e com o contexto histórico do desenvolvimento dos conceitos e teorias matemáticas. Escreveu alguns manuais escolares notáveis. Em 1933 publicou Interpolação e Integração Numérica, em 1937, Cálculo Vectorial, e em 1940, as Lições de Álgebra e Análise. Mas a sua obra mais conhecida é Conceitos Fundamentais de Matemática, uma síntese da evolução histórica dessa disciplina que é, ao mesmo tempo, uma exposição extremamente clara e aliciante dos seus conceitos básicos. No prefácio desta obra escreveu que não pretendia apresentar a ciência como obra perfeita e acabada, mas sim relatar as «hesitações, dúvidas, contradições, que só um longo trabalho de reflexão e apuramento consegue eliminar, para que logo surjam outras hesitações, outras dúvidas, outras contradições.» Pelo seu carácter histórico e pedagógico, esta obra formaria gerações de amantes da matemática e seria sucessivamente editada e reeditada, continuando sempre a ser lida com prazer.

Enquanto membro da comunidade científica portuguesa, Bento de Jesus Caraça integrou-se num movimento de desenvolvimento da matemática que surgiu impetuosamente nos anos 40, sob o impulso de António Aniceto Monteiro, José Sebastião e Silva, Zaluar Nunes, Ruy Luís Gomes e alguns outros. Foi um dos mais activos fundadores da Sociedade Portuguesa de Matemática e da Gazeta de Matemática, publicação para que contribuiu com inúmeros artigos. Na sua escola, iniciou o estudo da econometria e criou o Centro de Estudos Matemáticos Aplicados à Economia.

 

Preocupado com a formação humanista, incluindo a sua vertente científica, Caraça lançou a Biblioteca Cosmos, que publicaria mais de uma centena de volumes sobre temas vários, desde A Vida e a Obra de Darwin (Alberto Candeias) e a Introdução à Música Moderna (Fernando Lopes-Graça), até à Crise da Europa (Abel Salazar) e Uma Ciência Hermética (Rómulo de Carvalho). Partidário da «Cultura Integral do Indivíduo», nome que daria a uma das suas mais famosas conferências, Bento de Jesus Caraça preocupava-se com problemas científicos, filosóficos e sociais.

 

Interveio em polémicas várias, nomeadamente de índole filosófica, com António Sérgio. O seu mundo era o mundo. Preocupava-se com a matemática, com o ensino, com a filosofia das ciências, com a história e com a vida social e política. Vivendo uma época em que as preocupações sociais e o amor à liberdade eram activamente perseguidos, viria a ser afastado da universidade em 1946, juntamente com o professor Mário de Azevedo Gomes. No ano seguinte, foi a vez de José Morgado, Manuel Zaluar e outros académicos serem afastados do ensino. O movimento matemático dos anos 40 tinha sido liquidado. Alfredo Pereira Gomes partiu em 1947 para Paris, Hugo e Maria Pilar Ribeiro partiram em 1948 para os Estados Unidos, Manuel Zaluar deslocou-se em 1953 para o Brasil, Ruy Luís Gomes foi para a Argentina em 1958 e depois para o Brasil, José Morgado partiu em 1960 para o Brasil. Dos oito doutorados que tinham animado o movimento matemático, apenas José Sebastião e Silva pôde continuar a sua actividade em Portugal.

 

A Sociedade Portuguesa de Matemática entrou num período difícil, pois foi impedida de realizar assembleias e de eleger novos dirigentes, e foi reconstruída em 1976/77. A revista Portugaliae Mathematica, dedicada a artigos de investigação, começou a ser publicada irregularmente e só em 1990 recuperou a sua publicação regular. O Centro de Estudos Matemáticos Aplicados à Economia terminou as suas actividades e só nos anos 80 se iniciou o Centro de Matemática Aplicada à Previsão e Decisão Económica (Cemapre), no actual Instituto Superior de Economia e Gestão. Com a perseguição a Bento de Jesus Caraça e às vozes dissidentes na academia, o movimento matemático português sofreu um golpe de que só muito lentamente se veio a recuperar.

 

Nos últimos tempos da sua vida, Bento de Jesus Caraça viu-se limitado a dar aulas em sua casa, meio de subsistência que lhe restava. Sobreviveu por pouco tempo ao seu afastamento. Em 1948, minado por doença incurável, faleceria em casa, viajante breve de uma vida intensa.

 

 

Nuno Crato


© Instituto Camões 2003