Anos 80

Os Anos 80
  Pedro Casqueiro, S/título (detalhe), 1984
 
Pedro Casqueiro, S/título (detalhe), 1984. Acrílico sobre tela, 150x150 cm. Col. particular.
Abílio Leitão.

   
  Pedro Proença, Prometeu, 1983
 
Pedro Proença, Prometeu, 1983. Acrílico sobre papel, 174 x 130 cm. Col. Fundação de Serralves.
DR/ Cortesia Fundação de Serralves.

A ruptura democrática de 25 de Abril de 1974 deu lugar, na sociedade portuguesa, a uma nova conjuntura cultural que possibilitou, nos anos 80, o aparecimento e o rápido reconhecimento de uma nova vaga de criadores e agentes culturais. No campo das artes plásticas, esta década caracteriza-se pela emergência de um vasto e diversificado conjunto de artistas com uma forte capacidade de afirmação do seu trabalho e uma presença cultural particularmente dinâmica. Estes artistas foram, por sua vez, acompanhados por uma nova vaga de agentes ligados às artes plásticas, designadamente galeristas e críticos (como, por exemplo, Alexandre Melo e João Pinharanda), que contribuíram para dar à cena artística uma animação e uma capacidade de difusão fora do comum, no que aliás acompanhavam a tendência internacional da década, no sentido de uma crescente popularidade das artes plásticas.

A referida animação do meio artístico, que julgamos característica deste período, não é evidentemente um exclusivo dos artistas que então se revelaram. Pelo contrário, esta é uma situação em que se cruzam e sobrepõem artistas e obras que representam diferentes gerações e sensibilidades e que deram corpo a uma conjuntura artística particularmente dinâmica e diversificada. Os anos 80 assistem portanto a um cruzamento de algumas práticas que vêm da década anterior, como o pós-conceptualismo, com artistas como Helena Almeida, Alberto Carneiro ou Fernando Calhau, e novas realidades características dos anos 80, testemunhando assim a pluralidade de gerações e um hibridismo de soluções estéticas.

Um lugar de relevo é ocupado por artistas cujo trabalho e reconhecimento público já vinham de trás mas que lograram obter durante a década de 80 uma reforçada notoriedade e uma renovada actualidade. São exemplos disso António Palolo, António Dacosta, que retoma a actividade pictórica, Paula Rego, Menez, que se aproxima da figuração, Pomar, que evoca grandes figuras literárias nacionais, Eduardo Batarda e Álvaro Lapa. Nikias Skapinakis retoma nesta década a temática paisigística (Vale dos Reis) que se manterá até à década seguinte, deixando de lado a figuração de influência cartazística dos anos 60 e 70.

 

Joaquim Bravo assiste, neste período, ao reconhecimento da sua obra que se desenvolve através de um sistemático trabalho de invenção formal conducente a uma abstracção não-geométrica extremamente livre, flexível e original. Devido à sua capacidade pedagógica e ao seu entusiasmo, desde finais dos anos 70 gerou em seu redor um círculo de amigos incluindo artistas mais jovens como Xana, José Miranda Justo, Pedro Cabrita Reis e João Paulo Feliciano.

A exposição Depois do Modernismo (SNBA, 1983), coordenada por Luís Serpa, introduz em Portugal a temática e o debate pós-moderno, correspondendo à instauração de uma situação plástica balizada pelo "regresso à pintura", a transvanguarda, o neo-expressionismo, a "bad painting" e as novas figurações, o que se traduzia num predomínio da figuração humana, frequentemente exercitado num registo espontâneo ou pulsional. A exposição - em que a maioria dos participantes transitaram da década anterior, à excepção de Gaëtan e Pedro Calapez - foi acompanhada de acções na área da dança, música, moda e arquitectura. No ano seguinte duas exposições contribuíram igualmente para a assunção da diversidade estética e para dinamizar o debate teórico: Os Novos Primitivos, comissariada por Bernardo Pinto de Almeida, no Porto, e Atitutes Litorais, comissariada por José Miranda Justo, em Lisboa.

 

Albuquerque Mendes, Nota de mil escudos, 1981/82   Julião Sarmento, Noites Brancas, 1982   André Gomes, Cozinha dos Anjos, 1991
Albuquerque Mendes, Nota de mil escudos, 1981/82. Óleo sobre papel colado em platex, 48 x 95 cm. Col. Banco Comercial Português.
DR/ Cortesia Galeria Graça Brandão.
 
Julião Sarmento, Noites Brancas, 1982. Técnica mista sobre papel, 162 x 133 cm. Col. Isabel e Julião Sarmento.
José Manuel Costa Alves.
 
André Gomes, Cozinha dos Anjos, 1991. Polaroid / Fujichrome, 100 x 80 cm (cada) e 210 x 320 cm (dim. totais). Cortesia do Artista.
Cortesia do artista.

 

Neste contexto geral, Julião Sarmento, que se revelara no âmbito das práticas pós-conceptuais, afirmou-se como o nome português mais destacado em termos de reconhecimento internacional participando na Documenta de Kassel em 82 e 87.

 

Nesta mesma dinâmica conjuntural podem ainda incluir-se vários outros artistas bem diferenciados. Gerardo Burmester vive a sua atitude e experiência enquanto artista na incontornável nostalgia e consciência da impossibilidade de actualizar os ideais de beleza e emoção inerentes ao ideal romântico. Registemos as exuberantes paisagens de meados de 80, a voluptuosa utilização de madeira, couro e feltro nos objectos de finais dessa década, o requinte dos jogos de cores e a grande orgia de vermelhos e dourados em instalações de começos de 90, a elegância do desenho e o acerto das formas.

António Palolo, S/título, 1983.   Pedro Casqueiro, Sem Título, 1986. Acrílico sobre tela, 177 x 168 cm. Cortesia Galeria Filomena Soares. Laura Castro Caldas e Paulo Cintra.   Ilda David, S/título, 1989
António Palolo, S/título, 1983. Acrílico sobre tela, 179 x 132 cm. Col. particular.
José Manuel Costa Alves.
 
Pedro Casqueiro, Sem Título, 1986. Acrílico sobre tela, 177 x 168 cm. Cortesia Galeria Filomena Soares.
DR/ Cortesia Galeria Filomena Soares.
 
Ilda David, S/título, 1989. Óleo sobre tela, 120 x 120 cm. Col. particular.
Laura Castro Caldas e Paulo Cintra.

Albuquerque Mendes tem na auto-representação e nas figurações e evocações míticas e religiosas alguns dos mais fortes fios condutores para a leitura de um trabalho em que a prática da pintura se combina com incursões no domínio da instalação e da performance.

António Dacosta, O Bailador, 1986  
António Dacosta, O Bailador, 1986. Acrílico sobre tela, 194,5 x 129,5 cm. Col. Fundação de Serralves.
DR/ Cortesia Fundação de Serralves.
 
   
Graça Pereira Coutinho, Letters to my mother, 1986  
Graça Pereira Coutinho, Letters to my mother, 1986. Técnica mista sobre tela, 210 x 166 cm. Col. Particular.
DR/ Cortesia Cristina Guerra Contemporary Art.
 

Graça Morais vem construindo uma bem sucedida carreira baseada numa figuração com forte intenção expressiva, associada a arquétipos de uma reivindicada ruralidade tradicional.

António Cerveira Pinto e Leonel Moura, procurando sempre adaptar-se às sucessivas inflexões das conjunturas estéticas e ideológicas, deram um importante contributo para a animação dos debates pós-modernos e subsequentes. O trabalho plástico de Moura obteve algum reconhecimento internacional no final da década de 80 com obras em que a partir de imagens fotográficas põe em jogo figuras e imagens de referência da tradição cultural portuguesa, europeia e americana.

A fotografia seria, nesta década, cada vez mais plenamente integrada no âmbito das artes plásticas, sobretudo através do trabalho de Jorge Molder. Já André Gomes é um caso peculiar em que diferentes tipos de utilização da fotografia servem para elaborar um universo transdiciplinar vincadamente pessoal. Através de fotografias instantâneas, polaroids, registos vídeo e múltiplas combinações de fotografias das mais variadas proveniências, o seu trabalho incorpora as actuais determinações tecnológicas, económicas e mediáticas dos processos de constituição do imaginário. Paulo Nozolino obteve também um reconhecimento público generalizado embora mantendo-se numa área de trabalho mais directamente ligada à especificidade da tradição fotográfica, e designadamente à sua componente documental. Entre os artistas mais novos, a fotografia tem sido o meio de trabalho privilegiado por autores como Daniel Blaufuks, numa perspectiva mais intimista, e Augusto Alves da Silva, numa orientação mais sociológica.

Os Encontros de Fotografia de Coimbra, organizados por Albano da Silva Pereira desde 1980, que deram origem ao actual CAV, Centro de Artes Visuais, contribuíram também para enriquecer o panorama da fotografia nacional, trazendo várias exposições de fotógrafos internacionais.

Uma das características da conjuntura artística dos anos 80 foi a animação mundana e mediática produzida pela afirmação pública de grupos informais de artistas que, através de exposições e entrevistas colectivas foram constituindo e divulgando as sucessivas vagas de autores revelados ao longo da década. Tais grupos correspondiam mais a cumplicidades de formação, promoção e atitude do que a afinidades programáticas ou estéticas, conforme se viria a comprovar pela rápida autonomização de carreiras individuais.

Um destes grupos, activo no princípio da década de 80, incluiu, entre outros, Pedro Calapez, José Pedro Croft, Pedro Cabrita Reis e Rui Sanches. Entre as exposições que realizaram juntos destaca-se Arquipélago (SNBA, 1985) em que também participaram Ana Léon e Rosa Carvalho. De entre eles Pedro Cabrita Reis tem vindo a construir uma consistente carreira internacional que faz dele um dos nomes mais destacados desta geração.

É importante referir o trabalho de outros artistas que se afirmaram no mesmo contexto cronológico, como sejam Pedro Casqueiro, Ana Vidigal, Ilda David, Manuel Rosa ou Pedro Tudela.

José Pedro Croft, S/título, 1982   Graça Morais, Cabo Verde, 1988   Álvaro Lapa, Os criminosos e as suas propriedades, 1974/75
José Pedro Croft, S/título, 1982. Escultura em mármore, 100 x 160 x 5 cm (base). Col. particular.
DR/ Cortesia do artista.
 
Graça Morais, Cabo Verde, 1988. Acrílico e pastel sobre lona, 200 x 185 cm. Col. Centro de Arte / Col. Manuel de Brito.
Carlos Pombo.
 
Álvaro Lapa, Os criminosos e as suas propriedades, 1974/75. Acrílico, tinta de escrever e cartolina platex, 63,5 x 121 cm. Col. Fundação Calouste Gulbenkian.
Mário de Oliveira.

Ana Vidigal alia a pintura e a escrita à incorporação de múltiplos materiais para gerir um universo de referências pessoais, pleno de cor e ritmo. A pintura de Ilda David manifesta uma forte vocação lírica muito inspirada por referentes literários.

A escultura de Manuel Rosa coloca-se na esfera da memória, da errância, sobrevivência e premonição. Desde a sua primeira exposição individual, em 1984, manteve a mesma lógica de trabalho mas adquirindo uma dimensão mais abstracta e reflexiva. As referências a igloos, túneis e casas são sobretudo evocações de lugares simbólicos de fuga e aprisionamento, de formação e conservação. Na obra dos anos 90, os grandes temas deram lugar a uma aplicação afectuosa e artesanal, numa dimensão mais íntima e oficinal.

Júlio Pomar, Lusitânia no Bairro Latino -Retratos de Mário Sá Carneiro, Santa-Rita Pintor e Amadeo de Souza-Cardoso, 1985   Leonel Moura, s/título (Portugal Dupla), 1987
Júlio Pomar, Lusitânia no Bairro Latino - Retratos de Mário Sá Carneiro, Santa-Rita Pintor e Amadeo de Souza-Cardoso, 1985. Acrílico sobre tela, 158,5 x 154 cm. Col. Fundação Calouste Gulbenkian /CAMJAP.
Mário de Oliveira.
 
Leonel Moura, s/título (Portugal Dupla), 1987. Acrílico sobre fotografía e ferro, 110 x 155,5 cm. Col. Fundação de Serralves.
DR/ Cortesia Fundação de Serralves.

 

Fernando Calhau, s/título, 1988. Acrílico sobre tela e ferro, 86 x 169,5 x 11 cm. Col. Margarida Veiga. José Manuel Costa Alves.   Eduardo Batarda, El Scotcho, 1987. Acrílico sobre tela, 150 x 200 cm. Col. Comendador Arlindo Costa Leite. José Manuel Costa Alves.
Fernando Calhau, s/título, 1988. Acrílico sobre tela e ferro, 86 x 169,5 x 11 cm. Col. Margarida Veiga.
José Manuel Costa Alves.
 
Eduardo Batarda, El Scotcho, 1987. Acrílico sobre tela, 150 x 200 cm. Col. Comendador Arlindo Costa Leite.
José Manuel Costa Alves.

Pedro Tudela teve sempre a materialidade do corpo - nas suas dimensões mais viscerais e orgânicas - como eixo polarizador de um trabalho que conjuga uma pintura matérica e sensual com sofisticadas instalações multimédia.

Mais jovem, mas afirmando-se publicamente no mesmo contexto, Rui Chafes assumiu cedo, na área da escultura, um protagonismo que ainda hoje se mantém e se reforça com um alargado reconhecimento internacional. Fernanda Fragateiro partiu da prática do desenho para mais recentemente elaborar instalações de grande impacto que cruzam o registo da intimidade com um elaborado trabalho de articulação do espaço.

O tópico do espaço permite ainda evocar o trabalho de Patrícia Garrido, remetendo para o espaço doméstico investido pelo corpo, e o de Carlos Nogueira, guiado por uma aspiração à articulação entre espaço íntimo, espaço natural e espaço construído.

Rui Sanches, Mme. Récamier, segundo David, 1989   Pedro Cabrita Reis, s/título, 1987. Técnica mista sobre madeira, 240 x 240 cm. (4 elementos de 120 x 120 cm cada). Col. Fundação Luso-Americana para o Desenvolvimiento. Laura Castro Caldas e Paulo Cintra.
Rui Sanches, Mme. Récamier, segundo David, 1989. Madeira, pano e bronze, 164 x 180 x 167 cm. Col. Caixa Geral de Depósitos.
Laura Castro Caldas e Paulo Cintra.
 
Pedro Cabrita Reis, s/título, 1987. Técnica mista sobre madeira, 240 x 240 cm. (4 elementos de 120 x 120 cm cada). Col. Fundação Luso-Americana para o Desenvolvimento.
Laura Castro Caldas e Paulo Cintra.

 

Joaquim Bravo, Arrepio ou a Escolha do Crítico, 1989   Manuel Rosa, S/título, 1989. Calcário e anilina preta, 93 x 160 x 75 cm. Col. particular. DR/ Cortesia Assírio Et Alvim.
Joaquim Bravo, Arrepio ou a Escolha do Crítico, 1989. Acrílico sobre tela, 90 x 105 cm. Col. Fundação Calouste Gulbenkian / CAMJAP.
Mário de Oliveira.
 
Manuel Rosa, S/título, 1989. Calcário e anilina preta, 93 x 160 x 75 cm. Col. particular.
DR/ Cortesia Assírio & Alvim.
 
 
 

Uma outra vaga de artistas iria surgir, ainda em meados da década de 80, numa série de exposições colectivas, entre as quais se destaca Continentes (SNBA, 1986) que reuniu Pedro Portugal, Pedro Proença, Fernando Brito, Ivo, Xana e Manuel João Vieira. A prática inicial do grupo estava marcada por uma grande exuberância visual e de atitude, um displicente eclecticismo na manipulação de referências, um forte sentido lúdico da provocação e uma clara intenção de comentário irónico à actualidade artística. O trabalho de Xana, no cruzamento entre pintura, objecto e instalação evidencia um uso desenvolto dos jogos de cores e de formas. Manuel João Vieira viria a tornar-se mais conhecido como cantor (em bandas como os Ena Pá 2000) e como agitador político-cultural animado por um peculiar humor crítico.

No que diz respeito à acção das galerias e instituições, numa breve síntese, destacaríamos três características da situação artística portuguesa que poderão ser apontadas como outras tantas causas da sua debilidade estrutural. Por um lado, a fraqueza das instituições culturais, públicas ou privadas, que raramente se mostram capazes de sobreviver ao esgotamento dos empenhamentos pessoais, entusiasmos ideológicos, dinâmicas sociais particulares ou conjunturas económicas específicas correspondentes ao seu aparecimento.

  Rui Chafes, Um sono profundo, 1988
 
Rui Chafes, Um sono profundo, 1988. 15 esculturas em ferro. Vista da exposição na Galeria LEO.
DR/ Cortesia do artista.
   
  Gerardo Burmester, Arquipélagos Vermelhos, 1992
 
Gerardo Burmester, Arquipélagos Vermelhos, 1992. Vista parcial da Instalação.
DR/ Cortesia Galeria Pedro Oliveira.

Não conseguindo, passado o élan próprio de uma fase de arranque, criar uma base cultural organizativa e financeira sólida e profissional, acabam por desaparecer ou entrar em declínio precisamente na altura em que deveriam ascender à fase de maturidade. A inconsistência de propósitos é particularmente notória e lamentável nas iniciativas e políticas culturais do Estado e das instituições culturais públicas que, historicamente, se têm distinguido pela incapacidade de definir objectivos, adoptar estratégias e organizar métodos de planificação e gestão capazes de promover qualquer tipo de intervenção cultural coerente, consistente e eficaz quer a nível interno quer a nível externo.

Uma segunda característica fortemente debilitadora da situação artística nacional e que decorre dos referidos bloqueios da acção do Estado é a incapacidade histórica do Estado português assegurar a criação de uma colecção e de um museu públicos representativos da arte portuguesa do século XX. O Estado português não tem nem obras nem locais de exposição que lhe permitam apresentar a arte portuguesa moderna e contemporânea. A básica e elementar função cultural pública de preservação histórica e apresentação didáctica de um conjunto de obras representativo do património artístico contemporâneo não foi cumprida. As aquisições, quando existiram, foram irregulares, descontínuas e desarticuladas. O que o Estado português tem para apresentar e transmitir às novas gerações como representando a criação artística portuguesa no século XX é notoriamente insuficiente. Para substituir o Estado nesta sua função não cumprida existem apenas as colecções da Fundação Gulbenkian e de alguns particulares

As duas características anteriormente referidas estão na origem de uma outra característica extremamente gravosa para o desenvolvimento das dinâmicas culturais e dos processos criativos em Portugal e que é a ausência ou extrema insuficiência dos mecanismos de transmissão das práticas e experiência cultural acumuladas e da informação e memória históricas. É por causa da ausência ou debilidade destes mecanismos de transmissão cultural - claramente exemplificadas pela já referida demissão do Estado ou pelo persistente anacronismo do modelo de funcionamento das instituições de ensino artístico oficial - que em Portugal todas as velhas gerações se sentem ignoradas, abandonadas e desprezadas e todas as novas gerações sentem que têm de construir tudo a partir do zero, como se antes nada tivesse existido. O desperdício de saberes, tempo e energia que este desfasamento provoca é enorme, porque, à falta de um entrosamento temporal, se gasta, a repetir o que não se sabe já ter sido feito, o tempo que seria necessário para o aproveitar e desenvolver até às últimas consequências.

Antes do 25 de Abril foram, sobretudo, a Fundação Gulbenkian e, numa escala mais modesta, a SNBA os principais centros de animação da cena artística portuguesa. Posteriormente, a SNBA, apesar de pontualmente ter acolhido exposições de relevo, perderia o seu protagonismo e contacto com a actualidade e a Gulbenkian, nomeadamente o seu Centro de Arte Moderna, inaugurado em 1983, depois de uma fase de menor entrosamento com a nova conjuntura dos anos 80 - são notáveis excepções as exposições Van Abbe e Diálogo -, adoptaria, já na década seguinte, perspectivas consentâneas com a dinâmica da contemporaneidade.

Em relação às galerias de arte, de toda a animação cultural e artística da década de 60 e do breve período de euforia no mercado de arte vivido no início dos anos 70, a única galeria que sobreviveu, sem interrupções de actividade, foi a Galeria III. Isto explica a natureza quase museológica do acervo da galeria e da colecção pessoal constituída por Manuel de Brito. Das galerias inauguradas na década de 70, tendo vivido toda a primeira fase da sua existência num período de forte agitação política e social e de quase inexistência de mercado de arte, a continuidade e sobrevivência da Módulo - e até recentemente da Quadrum - é a demonstração do peso que as componentes passional ou cultural desempenharam nas motivações dos seus responsáveis e é o fundamento lógico do prestígio cultural e da conotação de vanguarda que então lhes foi reconhecida.

Em meados dos anos 80 assiste-se a um momento de animação com a abertura de várias galerias, entre as quais duas que, por razões diferentes, melhor poderão servir de imagem emblemática dos anos 80: os Cómicos, em Lisboa, e a Nasoni, no Porto. Outros exemplos relevantes são a Valentim de Carvalho, em Lisboa, e a Roma e Pavia, depois Pedro Oliveira, no Porto.

Os Cómicos são uma espécie de símbolo cultural da década. A sua actividade ficou ligada a uma boa parte dos nomes que revelaram uma maior capacidade de afirmação ao longo destes anos e aos temas e debates estéticos que mais marcaram este período, designadamente a discussão em torno da noção de pós-modernismo.

Rui Chafes, Ooglid, 1995  
Rui Chafes, Ooglid, 1995. 6 esculturas em ferro. Vista da exposição na Galerie Declercq.
DR/ Cortesia do Artista.
 

A Nasoni é uma espécie de símbolo económico da época, tendo desenvolvido um dos mais ambiciosos trabalhos jamais realizados ao nível do mercado da arte em Portugal. Nessa medida, a Nasoni assumiu e impulsionou o que poderíamos chamar a versão portuguesa e, portanto, em escala reduzida, da euforia - com a inerente espiral de inflação e especulação - no mercado internacional da arte contemporânea durante este período.

A concentração de inaugurações, ampliações e mudanças de espaços na segunda metade da década de 80, assim como o projecto do Museu Nacional de Arte Moderna, em 1989, na Casa de Serralves, são nítidos indicadores de uma crescente animação cultural e económica na área das artes plásticas e uma óbvia consequência de uma inegável, ainda que modesta, animação do mercado de arte em Portugal.

Indícios de um embrionário trabalho de internacionalização são a apresentação em Portugal de exposições individuais de alguns destacados artistas estrangeiros e a presença regular de galerias portuguesas em feiras de arte no estrangeiro, sobretudo na ARCO em Madrid, desde 1984 até hoje - Portugal foi o país convidado em 1998 - que contrasta com o cessar da participação portuguesa na Bienal de Veneza entre 1986 e 1994.


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