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Retrato de David Lopes [Páginas Olisiponenses, entre pp. 1-3]
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Fez o liceu em Lisboa e em Lisboa frequentaria o Curso Superior de Letras. Pelo meio, entre 1889 e 1992, estudou em Paris na École Nationale des Langues Orientales Vivantes e na École Pratique des Hautes Études. Como professor, vemo-lo nas mesmas instituições de que fora aluno: a partir de 1896, no Liceu de Lisboa, até se mudar para o ensino universitário, em 1902, ainda antes de o Curso Superior de Letras passar a Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Nesse ano de 1902, também entraram para os quadros do Curso, José Maria Rodrigues, Queiroz Veloso, Silva Cordeiro. Nas caves a Jesus, onde funcionava o Curso e, em 1911, a Faculdade, leccionou até atingir o limite de idade, em 1937, e aliás ainda depois gratuitamente cursos livres. Ensinou sobretudo Língua e Literatura Francesa, e, a partir de 1914, com essa acumulou Língua e literatura árabe, então criada (antes, houvera Árabe mas no liceu de Lisboa, tendo a cadeira deixado de ter alunos em 1861 e sido extinta em 1869; quanto à verba para a nova disciplina na faculdade, transitava de Grego, com a saída de Epifânio tornado desnecessário). Viveu com entusiasmo as peripécias da instalação da nova cadeira: «a alegria, a trasbordante satisfação do Prof. David Lopes não se traduzem em palavras: era enfim a realidade a suprema ambição da sua vida» (Veloso, p. 352). Com efeito, o arabismo fora a área de investigação que David Lopes privilegiara, desde que, parece que influenciado pelos livros de Alexandre Herculano, se decidira à especialização em França. Se o tópico essencial das suas investigações foi a penetração da cultura árabe na história portuguesa e a presença lusa em terras arábicas, a metodologia que segue evidencia sempre o filólogo, talvez mais do que o historiador. Sabe-se que foi professor metódico, delicado, estimado por alunos e colegas (sobre as suas práticas enquanto professor liceal, há testemunhos na tese de Maria José Salema, pp. 525ss.). Em 1915 tornou-se sócio efectivo da Academia das Ciências, ocupando a vaga deixada por Gonçalves Viana (conta Castelo-Branco, p. 19, que em 1922, a propósito de negociação sobre ortografia com a Academia Brasileira, para que fora convidado mas de que pedira escusa, David Lopes ver-se-ia «envolvido num pequeno acidente, de que ressultou levantar-se contra ele uma campanha»).
Ao relancear a obra de David Lopes, valorizaremos a bibliografia mais atinente à língua, disposta segundo a classificação que lhe deu Luís Lindley Cintra, que muito se citará a seguir:
1. Estudos ou notas dedicados a «palavras ou coisas de origem árabe»
a) Sobre a transcrição de nomes árabes em português - Pertencem a esta linha de trabalho a última parte do artigo «Trois faits de phonétique historique arabico-hispanique», Actes du XIVème Congrès International des Orientalistes, 3, Paris, 1906, pp. 242-261; toda a primeira parte de «Os arabes nas obras de Alexandre Herculano», Boletim da Segunda Classe da Academia das Ciências de Lisboa, 3 (pp. 50-84, 198-253, 323-377) e 4 (321-402), 1910-1911; os apêndices à 7.ª edição da História de Portugal, de Alexandre Herculano, 1915-1916, e à 19.ª de Eurico, o Presbítero, s.d..
b) Etimologia de topónimos - «Toponymie Arabe de Portugal», Revue Hispanique, 9, 1902 (Cintra destaca o estudo sobre «Faro», demonstrativo da capacidade de «associar a linguística e a história, e de servir simultaneamente, pela hábil combinação dos seus dados, ambas estas ciências»); «Toponímia árabe de Portugal», Revista Lusitana, 24, 1922, pp. 257-273, que, apesar do nome, é artigo diferente do anterior, visando acrescentar-lhe mais nomes (sempre modesto, David Lopes começa por lembrar como fora ambicioso o título do artigo de 1902); as notas sobre «Aljezur» e «Arrifana»,O Archeologo Português, 8, 1903, pp. 126-130, que sucedem a artigo de C. F. Seybold («Monchique et Arrifana d'Algarve chez les auteurs arabes», pp. 123-126); além de a matéria aparecer também no citado «Os arabes nas obras de Alexandre Herculano» e no capítulo «O domínio árabe», Damião Peres (dir.), História de Portugal, 1, Barcelos, Portucalense, 1928, pp. 391-431.
c) Sobre vocábulos comuns - Estas notas deram pretexto frequentemente a «interessantíssimas dissertações sobre os mais variados aspectos da civilização árabe ou hispano-árabe e ainda sobre a vida dos mouros de Marrocos no séc. XVI» (Cintra, p. 9). Todo o cap. 6 de «Os árabes [...]», salientando-se a parte relativa aos moçárabes; as notas aos Textos em Aljamia Portuguesa. Estudo filológico e histórico, 2.ª ed., Lisboa, Imprensa Nacional, 1940 (que muito reformula a 1.ª edição, de 1897); o artigo «Cousas luso-marroquinas», Boletim de Filologia, 7, 1942, pp. 245-259. Refiram-se também os estudos propriamente etimológicos de arabismos portugueses, como os de «mesquita», «oxalá», «arsenal», «saloio», no Boletim da Segunda Classe da Academia das Ciências de Lisboa, 10, 1917, pp. 861-883 (sob o título «Cousas arábico-portuguesas, algumas etimologias»); ou a síntese da distribuição de arabismos por campos semânticos no já mencionado capítulo da Historia «de Barcelos» (pp. 426-429).
2. Estudo da transmissão ao português, por árabes ou moçárabes, de nomes latinos ou pre-latinos e das transformações fonéticas ou particularidades morfológicas resultantes desse processo - No artigo «Toponymie arabe de Portugal», de 1902, ocupou-se dos casos de Beja (< Pacem), Tejo (Tagum), Mértola, Odiana, etc. Também na primeira parte de «Trois faits [...]» e num capítulo de «Os árabes [...]», «Estudos de nomes geográficos do território muçulmano que depois foi português que depois foi português», aborda o mesmo assunto.
3. História externa da língua durante os séculos XVI-XVIII - Este item é cumprido num único livro, A Expansão da Língua Portuguesa no Oriente durante os séculos XVI, XVII e XVIII, Barcelos, Portucalense, 1936 (2.ª ed., com notas e prefácio de Luís de Matos: s.l., Portucalense, 1969), em que, a partir de documentação até aí desconhecida, David Lopes historia «a propagação do português como língua do comércio e principalmente, do culto católico e protestante no Oriente, sobretudo na Índia, em Ceilão e na Malásia» (Cintra, pp. 11-12).
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Capa da 2.ª edição de Textos em Aljamia Portuguesa
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A morte impediu que David Lopes concluísse obra, em que trabalhava havia muito, sobre Os Árabes na Língua e na História de Portugal (Veloso, p. 360). E poderiam referir-se ainda outros trabalhos, menos linguísticos, mas de interesse para a filologia portuguesa: os em torno da Batalha de Ourique e suas polémicas (sobretudo: Alexandre Herculano, António Caetano Pereira e a Batalha de Ourique, Lisboa, Imprensa Nacional, 1900; «A Batalha de Ourique e Comentário leve a uma polémica», Biblos, 3, 1927, pp. 652-691), que são ilustrativos da seriedade metodológica, de David Lopes - e Herculano - e das precipitações e deslealdades de outros; edições de obras de Alexandre Herculano, em que enuncia com clareza os critérios de escolha do texto por onde fixa (o que não ocorre em edições posteriores); umas páginas sobre «A ilha dos amores num conto árabe», Portucale, 3, 1930, pp. 65-83; uma notícia biobibliográfica de «Um orientalista português (F. M. Esteves Pereira)», Revista da Faculdade de Letras, 7, 1940-1941, pp. 121-133. Quando folheamos alguns destes artigos, espanta o contraste entre a profundidade da investigação a que procede David Lopes e a modéstia, quase timidez, com que a apresenta, por vezes sensível logo nos títulos a alegarem simples estudos avulsos - nota Cintra que este desprendimento acaba por ser desvantajoso por não evidenciar aos leitores a riqueza dos conteúdos tratados: «Como também acontece com obras do grande contemporâneo e amigo de David Lopes - José Leite de Vasconcelos - é difícil adivinhar que, atrás de um título tão modesto como Cousas arábico-portuguesas: algumas etimologias, se ocultam estudos completíssimos e definitivos sobre a história de palavras portuguesas, como mesquita, saloio e barrão, arsenal e taracena [...]» (pp. 6-7) Queixava-se Cintra de que faltava coligir esses estudos dispersos por revistas. Já houve entretanto algumas colectâneas: Páginas Olisiponenses, introdução selecção e notas de Fernando Castelo-Branco, Publicações da Câmara Municipal de Lisboa, 1968; Nomes Árabes de Terras de Portugal, organização de José Pedro Machado, Lisboa, Sociedade de Língua Portuguesa e Círculo David Lopes, 1968.
Referências desta notícia: Luís F. Lindley Cintra, A obra filológica do Prof. David Lopes, separata da Revista da Faculdade de Letras de Lisboa, 3.ª série, 11, 1967; Robert Ricard, «David Lopes (1867-1942)», Mélanges d'études luso-marocaines dédiés à la mémoire de David Lopes et Pierre de Cénival, Institut Français au Portugal, 1945, pp. 7-12; Queiroz Velloso, «Professor David Lopes», Mélanges ..., pp. 349-362; José Pedro Machado, «Biobibliografia de David Lopes», Boletim da Sociedade de Língua Portuguesa, 18, n.º 4, Abril de 1967, pp. 125-129; Cartas Dirigidas a David Lopes, coordenação e notas de José Pedro Machado, Lisboa, Revista «Ocidente», 1973; Maria José da Gama Lobo Salema, A didáctica das línguas vivas e o ensino do francês nos liceus portugueses na viragem do século: o período de 1894 a 1910, tese de doutoramento apresentada à Universidade do Minho, 1993; Fernando Castelo-Branco, «Introdução», David Lopes, Páginas Olisiponenses, Publicações da Câmara Municipal de Lisboa, 1968, pp. 15-66 (neste estudo, a pp. 65-66, se esclarece que o dia de nascimento de David Lopes será 17, e não 7, como por vezes se tem indicado).