Aniceto dos Reis Gonçalves Viana
(Lisboa, 06-01-1840 - Lisboa, 13-09-1914)

Retrato de Gonçalves Viana [José Leite de Vasconcelos, Gonçalves Viana. Apontamentos para a sua biographia, separata do Boletim da Segunda Classe da Academia das Ciências de Lisboa (10, 1915-1916, pp. 607-644), Coimbra, Imprensa da Universidade, 1917, p. 4]

O pai, o célebre actor Epifânio [Aniceto Gonçalves (Viana)], e o irmão mais velho, Torcato, morreram de febre amarela em 1857, tinha Aniceto 17 anos. Viu-se assim o jovem Gonçalves Viana com familiares a cargo e por isso compelido a interromper os estudos e entrar para a Alfândega de Lisboa. Aqui faria carreira até ao fim da vida, parece que exemplarmente. Nas horas vagas, portanto, é que praticou a filologia, como foneticista, sobretudo, e na área da lexicologia, em segundo lugar. Estudos, de grego, com António José Viale, e de sânscrito, com Guilherme de Vasconcelos Abreu, os seguiria também paralelamente às funções profissionais. E sobretudo aprendeu sozinho muitas outras línguas. Em 1880 foi nomeado secretário do 9.º Congresso de Antropologia e Arqueologia Pré-histórica, evento internacional esse ano em Lisboa. O volumoso relatório do Congresso, publicado quatro anos depois, foi por si organizado e em boa parte redigido. Em 1900, fez parte da comissão para revisão da nomenclatura geográfica portuguesa (além de ter sido relator da comissão, nessa altura escreveu Bases da transcrição portuguesa de nomes estrangeiros, que seria incluído com supressões na Ortografia nacional). Em 1911 foi membro, aliás de novo relator e por via de trabalhos anteriores principal mentor, da Comissão de reforma ortográfica (de que fizeram parte também Carolina Michaëlis, Cândido de Figueiredo, Adolfo Coelho, Leite de Vasconcelos, Gonçalves Guimarães, Ribeiro de Vasconcelos, Júlio Moreira, José Joaquim Nunes, Borges Grainha; e de que Epifânio Dias pediu escusa). Costumam citar-se entre as características excepcionais de Gonçalves Viana o ouvido e memória extraordinários - «ouvido apuradissimo, que fazia que ele distinguisse os sons mais subtis ou os menos perceptiveis»; «dom de memoria que lhe permitia [...] reproduzir facilmente longos trechos literarios» (Vasconcelos, p. 21) - e o poliglotismo - estudou «castelhano, catalão; italiano (toscano literário e veneziano); romeno; dialectos romanches; alemão, holandês, frisico, anglo-saxão, dinamarquês, sueco, islandês antigo; irlandês e galês; russo, bulgaro e polaco; linguas aricas modernas da India; finlandês, lápico e hungaro; hebraico, árabe; malaio; japonês; vasconço; quimbundo; tupi, etc.» («Auto-biografia», transcrita por Álvaro Neves, p. 41). Segundo Leite, era de temperamento nervoso, primário por vezes, mas de grande candura afinal. Saliente-se por fim a estima que por ele tiveram importantes filólogos estrangeiros, como: Jules Cornu, Henry Sweet, o príncipe Louis Lucien Bonaparte, Fredrik Wulff, Paul Passy, da Associação Internacional dos Professores de Línguas, em cujo órgão, Le Maître Phonétique, colaborou Viana, R. Foulché-Delbosc, da Revue Hispanique.

Abstraindo de livros escolares (vários em colaboração com outros autores: Leituras allemães..., 1897; Selecta de Leituras inglesas faceis, 1897; Grammatica ingleza para a II e III classes do curso dos liceus, 1907; Grammatica franceza, 1899, etc.) e opúsculos literários (por exemplo, traduziu Mágoas de Werther, 1885, usando ortografia simplificada como os volumes do resto da mesma colecção, de que eram editores Viana, Vasconcelos Abreu e Consiglieri Pedroso), Leite de Vasconcelos classifica em três espécies a bibliografia de Viana:

Exemplar da Exposição autografado por Gonçalves Viana e oferecido a Júlio Moreira - e que depois pertenceu a José Pereira Tavares

a) trabalhos que constituíram a base da fonologia portuguesa. Essai de phonétique et de phonologie de la langue portugaise d'après le dialecte actuel de Lisbonne, 1883, separata de Romania, 12, pp 29-98 (prefira-se a edição nos Estudos de fonética portuguesa, 1973, pp. 83-152, por aproveitar correcções do próprio Viana); Exposição da pronúncia normal portuguesa para uso de nacionaes e estrangeiros, 1892, que amplia o trabalho anterior e se destinava ao 10.º Congresso Internacional dos Orientalistas (que era para se realizar em Lisboa e foi depois desconvocado) e cuja 2.ª parte saíra como introdução a edição escolar de colega de Viana (F. de Salles Lencastre, Os Lusíadas. Poema épico de Luís de Camões. Canto I, edição annotada para leitura da infancia e do povo por ... e precedida de uma exposição sobre a pronúncia da língua portuguesa por A. R. Gonçalves Vianna, 1892, pp. I-LIX). Já eram precursoras destes estudos cruciais as abordagens inseridas em recensões: «Die "Cantes Flamencos" pelo Sr. H. Schuchardt», O Positivismo, 4.º ano, 1882, pp. 71-80 e 164-170.

b) trabalhos que ordenaram e normalizaram a ortografia portuguesa. O mais completo, até porque já integra matéria saída em opúsculos anteriores, é Ortografia Nacional. Simplificação e uniformização sistemática das ortografias portuguesas, 1904; precederam esta obra de síntese as Bases de ortografia portuguesa, 1885, em colaboração com Vasconcelos Abreu, que explicava os princípios que serviam a ortografia adoptada na mencionada colecção «Enciclopedia de ciência, arte e literatura. Biblioteca de Portugal e Brasil» ; sucederam-lhe dois vocabulários - que, antes e depois da reforma, a facilitaram -, o Vocabulário ortográfico e ortoépico da língua portuguesa, 1909, e o Vocabulário ortográfico e remissivo da língua portuguesa, 1912; já se disse que Gonçalves Viana fora relator da Comissão da reforma ortográfica, cujos trabalhos culminaram com a publicação das Bases para a unificação da ortografia que deve ser adoptada nas escolas e publicações oficiais..., 1911.

c) trabalhos com elementos valiosos para a lexicografia. Nesta série a obra mais importante são os dois gordos tomos de Apostilas aos dicionários portugueses, 1906; também Palestras filolójicas, 1910 (2.ª ed., 1931, inclui acrescentos). Muitas informações sobre etimologias, grafias, lexicologia em geral, estão em recensões e artigos avulsos, na Revista Lusitana, no Positivismo, etc.. (Sebastião Dalgado escreveu «Gonçalves Viana e a lexicologia portuguesa de origem asiático-africana», Boletim da Segunda Classe da Academia das Ciências de Lisboa, 10 (1915-1916), 1917, pp. 649-811.)

(Nesta notícia usámos: Cláudio Basto, «A. R. Gonçalves Viana», Revista Lusitana, 17, 1914, pp. 209-221; José Leite de Vasconcelos, «Gonçalves Viana. Apontamentos para a sua biographia», reproduzido em Aniceto dos Reis Gonçalves Viana, Estudos de fonética portuguesa, prefácio de Luís F. Lindley Cintra, introdução de José A. Peral Ribeiro, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1973, pp. 21-37; Álvaro Neves, «Aniceto dos Reis Gonçalves Viana. Bio-bibliografia», Estudos de fonética portuguesa, pp. 39-66; Francis Millet Rogers, «Gonçalves Viana and the Study of Portuguese Phonetics», Estudos de fonética portuguesa, pp. 67-79; José Joaquim Nunes, «Gonçalves Viana», Boletim da Segunda Classe da Academia das Ciências de Lisboa, 10 (1915-1916), 1917, pp. 645-648.)