A Clepsydra de Camilo Pessanha é publicada pela primeira vez em 1920. A edição para a qual aqui remetemos é a da revista Colóquio/Letras (1), que conta com as seguintes trinta e sete composições: Inscrição; Desce enfim sobre o meu coração; Tatuagens complicadas do meu peito; Quando?; Fonógrafo; Viola Chinesa; Ao longe os Barcos de Flores; Meus olhos apagados; Chorai, arcadas; Na cadeia os bandidos presos!; Depois da luta e depois da conquista; Se andava no jardim; Voz débil que passas; Passou o outono já, já torna o frio
; Desce em folhedos tenros a colina; Esvelta surge! Vem das águas, nua; Singra o navio. Sob a água clara; Quem poluiu, quem rasgou os meus lençóis de linho?; Imagens que passais pela retina; Quando voltei encontrei meus passos; Depois das bodas de oiro; Crepuscular; E eis quanto resta do idílio acabado; Floriram por engano as rosas bravas; ? (incipit: Não sei se isto é amor. Procuro o teu olhar,); Ó Magdalena, ó cabelos de rastos; Ó meu coração, torna para trás; Foi um dia de inúteis agonias; Branco e Vermelho; Queda; Rufando apressado; Ao meu coração um peso de ferro; À flor da vaga, o seu cabelo verde; Estátua; Em Um Retrato; Porque o melhor, enfim; Final.
Sobre o título, diz-nos Tereza Coelho Lopes (2) que Pessanha provavelmente o seleccionou do poema Lhorloge, de Baudelaire, que, como referimos atrás, em Considerações sobre o Simbolismo, foi um dos precursores do movimento: Le gouffre a toujours soif; la / clepsydre se vide. A palavra clepsidra (3) é empregada somente duas vezes: no título e no poema Final (E escutando o correr da água na clepsydra), que, retomando o início da obra, a conclui. Simboliza o tempo, o conflito entre o passado e o futuro, tão próprio da poética de Pessanha (4) (5).
O desacordo, a ambiguidade, a oposição são constantes ao longo da Clepsydra que, segundo António Falcão Rodrigues de Oliveira (6), tem quatro grandes temas: a Dor, a Solidão, a Morte, a Transitoriedade e a Fuga para o Nada. A par destes temas, característicos do Simbolismo e da literatura finissecular, e com eles interligados, encontramos inúmeras imagens, das quais salientamos: a) imagens visuais que sugerem cor (vejam-se por exemplo os poemas: Branco e Vermelho; Final; Tatuagens complicadas do meu peito; À flor da vaga, o seu cabelo verde); b) imagens auditivas, a lembrar sons, melodias (poemas: Viola Chinesa; Ao longe os Barcos de Flores; Chorai, arcadas). A estas últimas correspondem algumas das linhas de força da poética de Pessanha:
- “a identificação (já verlainiana) entre poesia e música;”
- “a euritmia e a valorização fono-simbólica do texto poético (em que o som alude, com o seu poder evocativo, a uma realidade externa não cognoscível racionalmente)” (7).
A Clepsydra é pois um marco do Simbolismo português. Reúne poemas compostos por Pessanha ao longo de vários anos, tantas vezes por ele declamados entre amigos e tão apreciados por grandes figuras da Literatura Portuguesa como Eugénio de Andrade, José Régio, David Mourão-Ferreira, Fernando Pessoa ou Mário de Sá-Carneiro. Este último diria, em resposta ao inquérito O mais belo livro dos últimos 30 anos: À minha vibração emocional, a melhor obra de Arte escrita dos últimos trinta anos (que a Arte timbra-se para os nervos a vibrarem e não para a inteligência a medi-la em lucidez) é um livro que não está publicado seria com efeito aquele, imperial, que reunisse os poemas inéditos de Camilo Pessanha, o grande ritmista (8). A obra, imperial, encontra-se hoje ao alcance de todos nós e podemos portanto ter a honra de segurar a colectânea nas nossas mãos e de nos deleitarmos com os poemas da Clepsydra.
Notas
(1) PESSANHA, Camilo, Clepsydra, ensaio de edição de Gustavo Rubim, desenhos de Cruzeiro Seixas, Colóquio / Letras, no 155 / 156, Janeiro-Junho 2000, Lisboa.
(2) LOPES, Tereza Coelho, Clepsidra de Camilo Pessanha (textos escolhidos), colecção Textos Literários, Seara Nova, Editorial Comunicação, 1979.
(3) A forte carga simbólica da palavra “clepsidra” leva-nos a destacar dois importantes aspectos, referidos por Tereza Coelho Lopes:
“1. o facto de a palavra clepsidra estar íntima e originariamente ligada ao próprio exercício da palavra;
2. o facto de, através da sua associação à hidra, a clepsidra designar a fragilidade da condição e do conhecimento humanos”, in op. cit. pág. 29.
(4) A ilustrar esta ideia, os versos: “Vou a medo na aresta do futuro / Embebido em saudades do presente…” (soneto “Caminho”, não incluído na edição da revista Colóquio/Letras para a qual aqui remetemos).
(5) Barbara Spaggiari diz-nos sobre a memória e o tempo em Camilo Pessanha que o autor “vive suspenso entre a memória dolorosa do passado e o temor inquieto do futuro, pois a razão nega-lhe a evasão pelo sonho, e a falta de fé retira-lhe qualquer suporte metafísico” (in O Simbolismo na Obra de Camilo Pessanha, pág. 48).
(6) OLIVEIRA, António Falcão Rodrigues de, O Simbolismo de Camilo Pessanha, Edições Ática, Lisboa, 1979.
(7) As restantes linhas de força sumariadas por Barbara Spaggiari (op. cit., pág. 46) são:
- “a intersecção entre o plano da objectividade e o da subjectividade na formação da mensagem poética;”
- “o poder de dissociação do intelecto humano, que, através da sondagem da realidade, atinge a ideia da morte e do nada;”
- “a possibilidade de, por meio da poesia, lançar um olhar sobre o abismo e o ignoto”.
(8) Resposta de Mário de Sá-Carneiro ao inquérito sobre “O mais belo livro dos últimos 30 anos” publicada no jornal República de 13 de Abril de 1914 e transcrita em Cartas a Fernando Pessoa I, Lisboa, Ática, 1959, in Homenagem a Camilo Pessanha, org., prefácio e notas de Daniel Pires, IPOR, Instituto Cultural de Macau, 1990, pág. 124