A Historiografia da Matemática em Portugal

A investigação da história das matemáticas no nosso país desloca-se, pouco a pouco, de uma simples análise das grandes figuras para um estudo de escolas e da prática dessa ciência.

Gomes Teixeira (1851-1933) foi, com Pedro Nunes, um dos poucos matemáticos portu-gueses a ter notável projecção internacional

Há poucos anos, o estudioso John Martyn, de passagem pelo nosso país, teve a curiosidade de procurar manuscritos antigos na Biblioteca de Évora. Entre os documentos não catalogados que folheou, veio a encontrar um inédito de Pedro Nunes que se julgava perdido. Tratava-se de uma «Álgebra» que tinha sobrevivido mais de quatro séculos e que durante mais de quatro séculos se encontrava à espera que alguém a descobrisse. O documento foi publicado em Nova Iorque («Pedro Nunes (1502-1578): His Lost Algebra and Other Discoveries», Peter Lang, 1996) e suscitou o interesse de muitos especialistas pelo trabalho de quem é, ainda hoje, o mais conhecido matemático português. Na Biblioteca de Évora, tal como noutros arquivos, deverá haver ainda muitos outros documentos à espera de um historiador que os descubra e revele. O facto pode parecer estranho para os que não são especialistas, mas a verdade é que muito há a fazer na história da matemática portuguesa.
A História da Matemática é hoje uma disciplina autonomizada, a que se dedicam por todo o mundo muitos especialistas. Tal como a História em geral e a História da Ciência em particular, registou grandes avanços neste século, deixando muito do que tinha de simples registo de factos, de personagens e de curiosidades, para se tornar numa disciplina muito rigorosa, que procura conhecer os documentos originais, as correntes de pensamento e o contexto social em que se dão os progressos científicos.

No nosso país, a historiografia da matemática está um pouco incipiente. Apesar da existência de estudos de grande valor, e de outros que continuam a vir a lume, pouco se conhece de sistemático e rigoroso sobre muitas personalidades e escolas. Há mesmo trabalhos matemáticos fundamentais na nossa história que ainda são pouco estudados. Além disso, tal como se verificou em Évora, há uma imensidade de documentos por catalogar e conhecer.

A Sociedade Portuguesa de Matemática integrou há poucos anos um grupo de estudo, o Seminário Nacional de História da Matemática, que reúne muitos dos interessados nesta disciplina. O grupo considera que, «com raras excepções, a nossa tradição de pesquisa está minada pela ausência de um trabalho sistemático sobre as fontes, sobre os textos matemáticos em si, utilizando-se frequentemente a informação dos textos de reflexão histórica, das fontes secundárias, como se primárias fossem». Como resultado, as três principais sínteses existentes - de Francisco Borja Garção Stockler (1819), de Rudolfo Guimarães (1909) e de Francisco Gomes Teixeira (1934) - são ainda, com as suas virtudes e as suas insuficiências, a referência quase única a que muitos estudiosos recorrem. Muitos trabalhos seguem a linha interpretativa destes autores, mas relativamente poucos avançam no conhecimento de documentos e factos novos.

Em particular, o estudo histórico tem estado limitada ao estudo de personalidades mais marcantes. O facto é natural numa certa etapa da historiografia, mas não é suficiente. Sabe-se algo sobre Pedro Nunes e os seus trabalhos. Mas pouco se sabe sobre quem eram os seus alunos, o que eles estudavam, que compêndios liam e como funcionava a universidade. O mesmo se pode dizer de outras grandes personagens, como Monteiro da Rocha (1734-1819), José Anastácio da Cunha (1744-1787), Daniel da Silva (1814-1878) e Francisco Gomes Teixeira (1851-1933), de quem se conhece o trabalho, mas de quem pouco se sabe sobre a influência no meio intelectual da época.

Há longos períodos em que poucas figuras de vulto se destacam e, sendo assim, pouco ou quase nada se sabe sobre a história da matemática e das ciências nessas épocas. Talvez o período mais ignorado seja o do século XVII, em que nenhum matemático aparece que se acerque do génio de Pedro Nunes. Estando ainda muito limitada ao estudo de personalidades marcantes, a nossa historiografia tem desprezado injustamente esse século.

Há uma excepção neste panorama. Trata-se da história da náutica e das matemáticas que estiveram ao seu serviço. Nesse campo, os estudos notáveis de António Barbosa, Fontoura da Costa, Luciano Pereira da Silva e Luís de Albuquerque, para apenas citar alguns dos nomes mais conhecidos de uma tradição continuada, vieram a revelar a riqueza de trabalhos teóricos e aplicações existentes no nosso país, sobretudo na época dos descobrimentos, e sobretudo com Pedro Nunes. É natural que assim seja, pois essa é uma época maior da nossa história, época que está bastante estudada entre nós, apesar de os contributos científicos portugueses não serem conhecidos internacionalmente como mereceriam. Talvez a nossa tradição de pouco publicar em línguas científicas internacionais, nomeadamente, nos dias de hoje, em língua inglesa, não seja estranha a esse relativo desconhecimento.

O isolamento científico que resulta da publicação apenas em língua portuguesa não é um facto novo. O grande matemático Daniel da Silva queixava-se amargamente do reconhecimento internacional de alguns resultados de Darboux, resultados que ele, Daniel da Silva, tinha obtido décadas antes: «A minha obra jaz ignorada, há quase vinte e cinco anos, nas bibliotecas de quase todas as Academias do mundo. O que aproveita escrever em português!»

Para além do seu interesse próprio, o estudo da nossa história científica ajuda a pensar o presente e o futuro. Porque é que as instituições de ensino e investigação no nosso país estiveram sempre muito limitadas às grandes figuras em torno das quais gravitavam? Porque é que os grandes matemáticos portugueses, com poucas excepções, não deixaram uma escola que incluísse discípulos que continuassem as tradições dos mestres? Porque é que as nossas matemáticas têm estado excessivamente limitadas a aplicações, de interesse que definha com o inevitável avanço científico e tecnológico? Porque é que tem havido tantas limitações no estudo das matemáticas puras e de ciências fundamentais que são, afinal, um motor insubstituível do progresso? Estas são questões para que se procura resposta. É que encontrar um manuscrito de Pedro Nunes perdido em Évora pode-nos ajudar a construir o nosso futuro científico.

Nuno Crato


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