1. Introdução
A presente pesquisa revisita os termos de literacia a alfabetização. A análise é feita através da leitura de diferentes autores (Sim-Sim, 1989; Benavente, 1996, Candeias, 2000) que se debruçaram sobre a questão da literacia e da alfabetização, procurando evidenciar o aspecto distinto entre estes conceitos.
O título Literacia e Alfabetização em Moçambique, extremamente ambicioso, concorre exactamente para o objectivo acima enunciado. Não se pretende, pois, fazer nenhuma análise de natureza avaliativa ou estatística da prevalência dos fenómenos da literacia e da alfabetização em Moçambique, pelo contrário a sua alusão servirá para, tendo em conta este espaço geográfico, elucidar ainda mais a diferença existente entre estes conceitos. Deste modo, julgamos poder retirar o carácter ambicioso do título que propusemos para esta pesquisa.
Os termos alfabetização e literacia apresentam uma semelhança entre si, do ponto de vista do sentido. Contudo, a partir dos finais do século XX, devido à crescente escolarização dos países ocidentais, estes termos começaram a apresentar uma significação autónoma. Candeias (2000: 210) resume este raciocínio, sublinhando o seguinte: “Sendo os dois termos, o de alfabetização e o de «literacia», totalmente equivalentes, a constatação, durante a segunda metade do século XX de que uma parte fundamental das populações ocidentais se encontravam totalmente escolarizada, e ainda assim denotava alguns problemas na utilização da leitura e da escrita, parece ter feito evoluir estas duas noções mais exigentes”.
Este estudo visa precisamente ilustrar a distinção que se pode fazer, do ponto de vista conceptual, entre a literacia e a alfabetização. O contexto moçambicano é invocado pelo facto de nele se viver o multilinguismo, trazendo à análise outras dimensões conceptuais. A base teórica usada para analisar o contexto moçambicano repousa num artigo de Lopes (1991), teórico que se debruça sobre esta temática neste espaço geográfico.
Após este ponto introdutório, a pesquisa apresenta o ponto 2 sobre a literacia que é seguido pelo ponto 3 sobre a alfabetização. No ponto 4, analisam-se os conceitos de literacia e alfabetização em Moçambique e, para finalizar esta pesquisa, no ponto 5, apresenta-se uma síntese conclusiva.
2. Literacia
O termo literacia corresponde a uma tradução da palavra em inglês literacy. Depreende-se, a partir daqui que foi primeiramente usado em países anglo-saxónicos.
Uma leitura atenta ao Dicionário de Língua Portuguesa da Editorial Notícias permite verificar que o termo literacia está associado a palavras como literato ou letrado que, de forma depreciativa, apontam para o sentido de conhecimento literário e⁄ou “aquele que por hábito cultiva literatura” (p.896). No dicionário da Oxford a palavra literacy indica “being literate” e literate diz-se significar “able to read and write” (p. 386). Analisando a palavra literacy no Dicionário de Inglês Português da Porto editora encontramos o sentido descrito pelo da Oxford: “capacidade de ler e escrever [...] (p. 481)”.
Há claramente um desfasamento semântico sobre este termo entre o dicionário da língua portuguesa e os da língua inglesa: no dicionário da língua portuguesa literacia é aproximada ao conhecimento literário e das letras enquanto nos da língua inglesa está associado à habilidade de saber ler e escrever. Este último sentido, como adiante veremos, está mais próximo do de alfabetização, enquanto o primeiro está nitidamente associado à área da literatura. Isto demonstra que ambos os sentidos não convergem para a definição de literacia.
Apesar de a literacia corresponder a um campo de investigação recente (metade do século XX), alguns teóricos procuraram já delimitar cientificamente o seu conceito. Analisem-se três definições de literacia ordenadas de forma cronológica:
1) O “conceito de literacia [é] entendido como a capacidade de usar todas as formas de material escrito requeridos pela sociedade e usados pelos indivíduos que a integram” Sim-Sim (1989a: 7)
2) “Define-se então literacia como: as capacidades de processamento de informação escrita na vida quotidiana” Benavente (1996: 4)
3) literacia é “a capacidade de utilização da língua escrita” Delgado-Martins (2000: 5)
O que ressalta destas definições não é apenas a mera capacidade de ler ou escrever, conforme se enuncia no dicionário da Oxford, mas sobretudo a habilidade de usar, processar ou utilizar a informação da linguagem escrita para um determinado objectivo da vida quotidiana. Por outras palavras, literacia não se confina ao saber ler ou escrever, mas sim ao uso do conhecimento da leitura e da escrita numa actividade específica do dia-a-dia.
Numa outra perspectiva, Candeias (2000), analisando a definição proposta por Benavente (1996), sugere haver imprecisão no conceito de literacia. O que deve ficar assente é que existe uma evidente diferença entre a trivial capacidade de ler e escrever e o uso dessas capacidades para um determinado fim da vida diária. Assim sendo, quando se sublinha que “a palavra literacia tem vindo a ser utilizada para recobrir um novo conceito acerca das capacidades de leitura e de escrita” (Delgado-Martins, 2000: 13), refere-se justamente ao uso da leitura e da escrita para um contexto específico do quotidiano e não apenas a descodificação da linguagem escrita.
Outro aspecto distintivo na literacia prende-se com o facto de as habilidades da linguagem escrita inscritas na literacia estarem dispostas num continuum que, segundo Sim-Sim (1989a: 7), podem ir “desde a identificação de sinais gráficos de uso quotidiano à decifração de textos filosóficos e literários”. Delgado-Martins (2000:13) ao sugerir que “literacia designa um conhecimento processual em aberto”, pretende também secundar a ideia de que as habilidades da linguagem escrita da literacia não se apresentam de forma estanque, pelo contrário permitem a manipulação de material escrito diverso em qualquer fase da vida adulta.
A origem deste novo campo de investigação deveu-se, segundo Benavente (1996), à constatação da inexistência, nos países ditos desenvolvidos e modernizados, de elevados índices de população que não tinha obtido os saberes da linguagem escrita, situação que se verificava apenas em África. Por outro lado, considera a mesma autora que, mesmo havendo núcleos populacionais sem os saberes acima referidos, tais núcleos estavam relacionados, na maior parte dos casos, aos idosos e às minorias étnicas. Foi com base deste estado de coisas que países como França, Estados Unidos e Canadá “verificaram a existência de percentagens significativas da sua população com dificuldades na utilização de material escrito, apesar de escolaridades obrigatória relativamente longas” Benavente (1996: 3). A questão tendia pois a verificar se as pessoas que já haviam passado pela escolaridade obrigatória, podiam (ou não) usar o material escrito na sua vida quotidiana: “A população adulta pode ter frequentado só o 1° ciclo, o 1° e 2°, o secundário ou mesmo o ensino superior. O que está em causa é a capacidade desses indivíduos em ler e escrever na sua vida diária, privada, social e profissional” (Delgado-Martins, 2000: 14).
Dada a proximidade que o termo literacia apresenta relativamente ao de alfabetização, em seguida, procuramos esclarecer este último conceito, contrapondo-o ao de literacia.
3. Alfabetização
O conceito de alfabetização é, muitas vezes, confundido com o de literacia. Esta confusão parece advir do facto de ambos os conceitos repousarem na linguagem escrita. Efectivamente, de acordo com o Dicionário de Inglês Português da Porto Editora, literacy equivale ao conceito de alfabetização. Note-se, no entanto, que do ponto de vista científico há uma distinção óbvia entre estes conceitos.
Sim-Sim (1989a) refere que o conceito de alfabetização está subjacente à capacidade de descodificação da linguagem escrita. Benavente (1996: 4) sustenta que o conceito de alfabetização “traduz o acto de ensinar e aprender (a leitura, a escrita e o cálculo)”. Em Delgado-Martins (2000: 13) sublinha-se que “alfabetização refere à condição de ser (ou não) iniciado na língua escrita, independentemente do grau de domínio que dela se tenha”.
O denominador comum assente nestas três definições coloca a alfabetização como um conceito relativo a aprender a descodificar a linguagem escrita. Por esta via, distingue-se um alfabetizado aquele que aprendeu e sabe ler e escrever; de um analfabeto aquele que não sabe ler nem escrever. Esta distinção não é aplicável à literacia na medida em que, como vimos, considera-se que as habilidades nela exposta encontram-se num continuum e não de forma estanque, como acontece na alfabetização
Na verdade, há um ponto em que se verifica a intersecção entre a literacia e a alfabetização. Esse ponto acontece quando a alfabetização é assumida na perspectiva da funcionalidade, ou seja, quando o sujeito alfabetizado apresenta “um nível de perícia de leitura e de escrita que o torne capaz de desempenhar com êxito todas as actividades que, no seu grupo de pertença, requeiram tal capacidade” Sim-Sim (1989b) citando Gray (1956). Esta ideia de aproximação entre a alfabetização e a literacia é também veiculada por Candeias (2000: 12), nos seguintes termos: “o termo «alfabetização» a que se foi acrescentando o termo «funcional» parecia tentar, cada vez mais medir a capacidade de utilização em contexto formais e informais das aprendizagens supostamente obtidas na escola. E é deste termo «alfabetização funcional» que parece vir o termo «literacia» actualmente utilizado em Portugal. Em síntese, quando as competências da linguagem escrita são analisadas do ponto de vista do uso no social, há uma equiparação com a literacia. No entanto, Benavente (1996: 4) chama atenção para o seguinte facto: “o conceito de literacia centra-se no uso de competências e não na sua obtenção, pelo que se torna mais clara a distinção entre níveis de literacia e níveis de instrução formal que as pessoas obtêm”. Isto significa, por exemplo, que se pode ter um nível de alfabetização que pode (ou não) ser correlacionável a um nível específico de literacia.
O passar dos séculos permitiu um afunilamento do conceito de alfabetização. “Na verdade, o alfabetizado dos séculos XIX e XX podia ser alguém que soubesse ler apenas, ler e escrever, ler, escrever e contar, que tivesse frequentado uma escola, ou no grau superior da definição que tivesse obtido um diploma” (Candeias, 2000: 209). Dado o carácter aberto desta definição, salientado pelas inúmeras categorias de alfabetizado, o domínio político teve sempre facilidade de, consoante as suas necessidades, interpretar as estatísticas sobre o fenómeno da alfabetização. A título ilustrativo, Candeias (2000) descreve o caso da Finlândia que há dois séculos tinha apresentado um censo que apontava uma taxa de 98% da sua população adulta alfabetizada. A UNESCO inferindo sobre a mesma informação estatística concluiu no século passado que este país apresentava 13% da sua população adulta não alfabetizada. Segundo o autor, o critério de definição de alfabetizado é que esteve na origem desta discrepância percentual: os finlandeses assumiram ser alfabetizado aquele que sabe ler, enquanto para a UNESCO um alfabetizado deve saber ler e escrever.
A situação moçambicana, que terá um tratamento exaustivo no ponto a seguir, também foi influenciada pela esfera política, sobretudo no que diz respeito à condução de estratégias de minimização dos elevados índices de analfabetismo (cerca de 60%, de acordo com o censo de 1980). Esta posição encontra eco no seguinte: “the notion of literacy hás, unfortunately, been defined as means rather than an end itself. This was the case when literacy was used as means to achieve political goals and this is still true at the present” (Lopes, 1991: 23). Na perspectiva deste autor, para o contexto moçambicano (multilingue) a política linguística deve incorporar programas de alfabetização que não assentam apenas na língua portuguesa como também nas línguas nacionais: I would like to suggest that when we, in Mozambique, talk of illiteracy rates we would be better employed compiling literacy demographics, which reflects the situations just not in relation to the official language but also in connection with any other language, in particular, the african languages. Experience has shown that literacy in the african languages is hardly ever counted (Lopes, 1991: 25).
O ponto a seguir retoma o contexto moçambicano, incidindo a reflexão sobre os dois conceitos-chave até agora analisados.
4. Literacia e Alfabetização em Moçambique
O artigo de Lopes (1991), redigido em inglês, faz uma abordagem sobre a alfabetização no contexto moçambicano. A análise feita, permite avançar algumas reflexões sobre a literacia. A Língua Portuguesa (LP) em Moçambique é manipulada pelos seus falantes como uma Língua Segunda (LS) na medida em que a LP convive com as Línguas Bantu (LB) que constituem a Língua Materna (LM) da maior parte da população. Esta afirmação é consubstanciada pelos dados estatísticos do censo de 1997 analisados por Firmino (2000) segundo os quais a LP é falada por apenas 39% de moçambicanos. O papel de LS da LP em Moçambique torna-se ainda mais evidente quando se refere que 90% dos Moçambicanos usa mais frequentemente uma LB no seu discurso quotidiano.
Dado o contexto multi-linguístico que se vive neste território, os conceitos de literacia e de alfabetização invocam fenómenos curiosos e interessantes. Um desses fenómenos retratados em Lopes (1991) está relacionado com a possibilidade da existência de indivíduos bi-alfabetizados, podendo ser (ou não) bilingues, entendido o bilinguismo como a capacidade de comunicar oralmente e com fluência em duas língua. Consideram-se bi-alfabetizados aqueles que dominam a linguagem escrita em duas línguas, por exemplo numa LM (chope) e na LS (português). O autor não exclui a hipótese contrária, isto é, quando os falantes são bilingues, podendo ser alfabetizados na sua LM e funcionalmente analfabetos na sua LS, ou seja, falantes que dominam as competências da linguagem escrita da LM e não da LS.
Lopes (1991) ao tomar este posicionamento pretende argumentar a não-equivalência da noção de “alfabetização bilingue”, cujos subscritores prevêem que na aquisição de competência leitura e da escrita na LM, em primeira instância, a sua transferência para a língua segunda será, de algum modo, mais fácil, facultando rapidamente, o acesso às mesmas competências nas duas línguas.
Esta discussão não cabe nos limites desta pesquisa. No entanto, assumindo o postulado de Ellis (1986), segundo o qual a aquisição de uma LS é, de alguma forma, mais acessível e facilitada, após a sedimentação das aprendizagens da LM, pode-se prever que o domínio das competências da linguagem escrita sejam também fáceis de adquirir numa LS, comprida a sua aquisição na LM. Salientando que “the L1 is a resource of knowledge which learners will use both consciously and subconsciously to help them sift the L2 data in the imput and to perform as best as they can in the L2” (Ellis, 1986: 40), o autor parece corroborar com a ideia objectada por Lopes (1991) segundo a qual a aquisição de uma LS tem contributos de uma LM, tendo, por isso, repercussões na linguagem escrita.
Outro aspecto assinalado no artigo de Lopes (1991: 19-21) prende-se com a clareza na terminologia usada. Ao sublinhar fundamentado em dicionários da LP de 1961 e de 1971 que “the portuguese dictionaries do not list the words alfabetização (literacy) and alfabetizado (literate)”, esclarece que usa o termo literacy (literacia) para chamar alfabetização e literate (letrado) para alfabetização. Por outro lado, pode-se inferir a partir do exposto pelo autor, que a língua inglesa, diferentemente da portuguesa, não dispõe de terminologia para distinguir alfabetização da literacia, na medida em que o termo literacy tanto pode servir para cobrir a noção de alfabetização, conforme vimos em 2, como também serve para referenciar o conceito de literacia, conforme se descreveu em 1.
A perspectiva de análise e definição do conceito pode conduzir à desambiguação do termo literacia. No caso de Lopes (1991: 21) usa-se com o sentido de alfabetização e, por isso, delimita-o nos seguintes termos: “The notion of literacy has clearly to do with the amount of reading and writing which is required by society to qualify an individual as literate”. Como se pode ver, esta definição contempla o domínio social, a entidade que determina o volume de conhecimento de linguagem escrita a ser adquirido pelos membros da sociedade. Podia-se lançar a hipótese segundo a qual Lopes (1991) ao aludir a literacy, não se refere à alfabetização, mas sim à literacia. Dois argumentos são suficientes para anular este postulado: 1) o autor afirma no seu artigo que em Moçambique há indivíduos post-literate (pós-alfabetizados), isto é, que perderam as capacidades alfabéticas; 2) refere que “I tend to see literacy as an umbrella notion which incorporates both what tradicionally has been labelled as adult education and normal mainline education” (p. 22). Para ambos os casos há a salientar que a literacia engloba um conhecimento processual e, salvo alguma fatalidade, dificilmente se erradica. Por outro lado, a literacia faz uso da linguagem escrita adquirida e, por esse motivo, não se relaciona directamente com a educação de adultos, muito menos com a educação no sentido restrito da palavra.
5. Síntese Conclusiva
A súmula da análise feita nesta pesquisa pode ser feita a partir da seguinte citação que, apesar de extensa, é útil pela sua clareza na distinção dos conceitos aqui tratados: “a palavra literacia tem vindo a ser utilizada para recobrir um novo conceito acerca das capacidade de leitura e de escrita: pretende distinguir-se de alfabetização por não ter em conta o grau formal de escolaridade a que esta, tradicionalmente, estava ligada. Enquanto alfabetização refere a condição de ser (ou não) iniciado na língua escrita, independentemente do grau de domínio que dela se tenha, o conceito de literacia adquire um significado mais vasto, referindo capacidades de utilização da língua escrita. Assim, alfabetização refere um conhecimento obtido, estável, enquanto literacia designa um conhecimento processual, em aberto” (Delgado-Martins, 2000: 13).
Portanto, o conceito de literacia distingue-se claramente do de alfabetização, no sentido em que o último se refere à aquisição e conhecimento de competências da linguagem escrita, enquanto o primeiro está relacionado à manipulação e uso dessas competências numa acção específica do quotidiano.
O conceito de literacia só se equipara à alfabetização quando esta é funcional, ou seja, quando justamente é orientada pela necessidade de uso das competências da linguagem escrita para um fim determinado do dia-a-dia. Note-se, no entanto, que o conceito de literacia incorpora competência da linguagem escrita adquirida, daí termos níveis de literacia, quando o de alfabetização envolve a aquisição de tais competências e, por isso, temos níveis de instrução.
Em contextos multi-lingues, há possibilidade de termos indivíduos bi-alfabetizados, no sentido em que aprenderam a linguagem escrita tanto na LM e na LS. Estes podem (ou não) ser bilingues alfabetizados, assumindo que podem ser fluentes (ou não) nas duas línguas (LM e LS). É também possível encontrar os indivíduos pós-alfabetizados, ou seja, que perderam as suas capacidades de ler e escrever.
A delimitação do termo literacy é essencial para desambiguar o significado duplo de alfabetização e de literacia do ponto de vista técnico aqui aludido.