Autores e antologia

Camilo Castelo Branco

Camilo Castelo Branco
Camilo Castelo Branco (1825-1890) Camilo Castelo Branco e Ana Plácido É o grande romancista do Romantismo português (Romance de um Homem Rico, 1861), experienciando também as novas técnicas da escola realista com intuitos jocosos (Eusébio Macário, 1879) e num texto de final de carreira que é um dos seus mais belos romances: A Brasileira de Prazins, 1882. Magistral nos lances arrebatados e místicos da paixão exacerbada e dos laços familiares conflituosos (O Retrato de Ricardina, 1868), assim como na sátira social (A Queda dum Anjo, 1866) e na autocrítica, nomeadamente literária, é figura dominante nas nossas Letras. Casa de S. Miguel de Seide onde Camilo viveu e se suicidou em 1890 Quando, à meia-noite, o Alma negra entrava em casa pela porta do quintal, encontrou a mulher ainda de joelhos diante da estampa do Bom Jesus do Monte. Ao lado dela estavam duas filhas a rezar também, a tiritar, embrulhadas numa manta esburacada, aquecendo as mãos com o bafo.O Melro mandou deitar as filhas, e foi à loja contar à mulher, lívida e trémula, como o Zeferino morreu sem ele pôr para isso prego nem estopa. Ela pôs as mãos com transporte e disse que fora milagre do Bom Jesus; que estivera três horas de joelhos diante da sua divina imagem. O marido objectava contra o milagre - que o compadre não lhe dava a casa, visto que não fora ele quem vindimara o Zeferino; e a mulher - que levasse o demo a casa; que eles tinham vivido até então na choupana alugada e que o Bom Jesus os havia de ajudar.Ao outro dia, o Joaquim Melro convenceu-se do milagre, quando o compadre, depois de lhe ouvir contar a morte do pedreiro, lhe disse:- Enfim, você ganha a casa, compadre, porque mátava Zéférino, se os outros não matam ele, hem? A Brasileira de Prazins (excerto) © Instituto Camões, 2001

Bernardim Ribeiro e a Menina e Moça

Bernardim Ribeiro e a Menina e Moça
Bernardim Ribeiro e a Menina e Moça Bernardim Ribeiro, Menina e Moça Menina e Moça, romance de Bernardim Ribeiro, editado por três vezes no séc. XVI: 1554 (Ferrara, com o título História de Menina e Moça), 1557-58 (Évora, com o título Saudades) e 1559 (Colónia, a partir da 1.ª edição), incluindo a 2.ª edição um prolongamento, que se costuma aceitar como sendo do autor, até ao cap. XXIV.O texto representa uma convergência de tópicos ficcionais, quer no plano da história literária (agregando ingredientes da novela de cavalaria, do romance pastoril e da novela sentimental), quer no plano do conteúdo (pela conversão a um lugar de encontro, feminino e lamentoso, da Menina - que inicia o livro com um monólogo de evocação de deslocação e de mudança de vida - com uma Senhora, com a qual discute histórias de amores infelizes, que se intercalam na ação central da ficção).Lugar e mudança convertem-se em pólos de uma comum nostalgia amorosa e do fatalismo do sofrimento, que fazem das histórias intercaladas, ex. Aónia e Bimuarder, Arima e Avalor, desdobramentos insistentes de uma mesma e infinita dor de constantes desencontros amorosos. Amor, natureza, mudança e distância são as constantes semânticas deste livro, o primeiro na literatura portuguesa a desprender-se relativamente das convenções da ficção coeva para assumir o estatuto de narrativa feminina da solidão e da saudade, e de texto de análise incisiva e minuciosa do sentimento amoroso, na sua faceta de consagração dedicada e dolorida. Menina e moça me levaram de casa de minha mãe para muito longe. Que causa fosse então a daquela minha levada, era ainda pequena, não a soube. Agora não lhe ponho outra, senão que parece que já então havia de ser o que depois foi. Vivi ali tanto tempo quanto foi necessário para não poder viver em outra parte. Muito contente fui em aquela terra, mas, coitada de mim, que em breve espaço se mudou tudo aquilo que em longo tempo se buscou e para longo tempo se buscava. Grande desaventura foi a que me fez ser triste ou, per aventura, a que me fez ser leda. Depois que eu vi tantas cousas trocadas por outras, e o prazer feito mágoa maior, a tanta tristeza cheguei que mais me pesava do bem que tive, que do mal que tinha. Menina e Moça, início © Instituto Camões, 2001

Aquilino Ribeiro

Aquilino Ribeiro
Aquilino Ribeiro (1885-1963) É um dos romancistas mais fecundos da primeira metade deste século. Inicia a sua obra em 1913 com os contos de Jardim das Tormentas e com o romance A Via Sinuosa, 1918, e mantém a qualidade literária na maioria dos seus textos, publicados com regularidade e êxito junto do público e da crítica.Andam Faunos pelos Bosques, 1926, A Casa Grande de Romarigães, 1957, O Malhadinhas e Quando os Lobos Uivam, 1958, representam tendências constantes da sua ficção: um regionalismo que é apego à terra campesina e às suas gentes, sem perder universalidade nos seus carateres e descrições; uma ironia terna e complacente perante os vícios humanos comuns; uma crítica violenta da opressão política e do fanatismo ideológico, uma atenção inebriada ao pulsar do torrão campestre, tanto como à vibração sensual do corpo no ser humano. A bolota taluda ficara ali muito quieta, muito bem refastelada em virtude do próprio peso, enterrada que nem pelouro de batalha depois de passarem carros e carretas. Que fazer senão deitar-se a dormir?! Dormiu uma hora ou uma vida inteira, quem sabe?! Um laparoto veio lá de cascos de rolha, rapou a terra, fez um toural, aliviou-se, e ela ficou por baixo, sufocada sem poder respirar, em plena escuridão. Estava no fim do fim? Um belisco, e do seu flanco saiu como uma flecha. Era de luz ou de vida? Era uma fonte ou antes um cântico de ave, de água corrente, de vagem a estalar com o sol (... )? Era tudo isto, encarnado no fogo incomburente que lhe lavrava no flanco, verbo que acabou por irradiar do próprio mistério do seu ser.Do pinhão, que um pé-de-vento arrancou da pinha-mãe, e da bolota, que a ave deixou cair no solo, repetido o acto mil vezes, gerou-se a floresta. A Casa Grande de Romarigães (excerto) © Instituto Camões, 2001

Augusto Abelaira

Augusto Abelaira
Augusto Abelaira (1926), ficcionista de renome durante os anos sessenta (Cidade das Flores, 1959, As Boas Intenções, 1963), correspondeu aos anseios de uma geração que propunha a renovação social e política num contexto cultural de consciencialização e responsabilidade, no qual a arte e a literatura ocupavam lugar determinante. Bolor, 1968, é um romance que manifesta a desagregação dos sentimentos e a oscilação das convicções, numa escrita narrativa profundamente inovadora que o seu autor continuaria a desenvolver subsequentemente, questionando a lógica da comunicação e da sucessão do tempo, e por isso mesmo afirmando a fidelidade a valores fundamentais como o amor e a criatividade (O Bosque Harmonioso, 1982, Outrora Agora, 1996). Agora, ele (ele, o Jerónimo) ali à varanda, trinta anos depois, a gozar o sol, os olhos no mar («la mer, toujours recommencée»). Mas lá em baixo, acinzentado, na avenida paralela à praia, um automóvel chega e, a curva rápida, sem hesitações, enfia-se entre dois carros -, manobra fulminante, milimétrica. O Jerónimo tê-lo-ia arrumado mais devagar, avaliando, atento, o estreito espaço disponível - daí a curiosidade com que espera o aparecimento do herói (será certo que a civilização chinesa, ao contrário da europeia, não celebrou os heróis guerreiros, considerava-os até seres inferiores? Esparta, modelo secreto da civilização ocidental. Herói sem penacho na cabeça, como Heitor, o do capacete fulgente. Telefonar à Marta (esqueci-me de pagar o telefone, o aviso ficou em cima do frigorífico). Outrora Agora © Instituto Camões, 2001

António Ramos Rosa

António Ramos Rosa
António Ramos Rosa (n. 1924) intelectualiza (não só nos seus inúmeros livros de poesia, mas também em ensaios sobre a criação literária e de interpretação poética) a articulação entre os elementos naturais e a cultura, mas mantém a vibração inteira do apelo pela expressão livre do homem e pela sua sagração no labor da palavra. Em Viagem através Duma Nebulosa (1960), ficou célebre este poema: Não posso adiar o amor para outro séculonão possoainda que o grito sufoque na gargantaainda que o ódio estale e crepite e ardasob montanhas cinzentas e montanhas cinzentas(...)não posso adiar para outro século a minha vidanem o meu amornem o meu grito de libertação não posso adiar o coração Posteriormente, a austeridade de expressão apurou-se na sua poesia, extremamente reduzida no plano da sintaxe, tanto quanto luxuriante nas insistências vocabulares e numa inexaurível irradiação semântica, quase sempre em torno da relação amorosa e da relação com a escrita. Em O Incerto Exacto (1982): O desejo       A surpresaOu a maravilhaNão pela igual imagemmas destroçando-aResíduos só ou a passagem dos sinaisque dizem a passagem do que seráse for        o contacto imprevisíveldo obscuroinacessível corpo em outro corpo vivo © Instituto Camões, 2001