Gil Vicente (1465-1536)
Custódia de Belém (atribuída a Gil Vicente)
Imagem inserta na Compilaçam de Todalas Obras de Gil Vicente..., Livro Primeyro, M. D. LXXV.
Foi o mais importante dramaturgo português. Ourives do reino, mestre de balança da Casa da Moeda, autor da famosa Custódia de Belém, representa, em 1502, o Auto da Visitação (Monólogo do Vaqueiro), perante a rainha parturiente, sendo este o início de uma carreira fecunda de comediógrafo, regular e brilhante. A sua obra representa o encontro da herança medieval, sobretudo nos géneros e na medida poética (utiliza sistematicamente a métrica popular, em autos e farsas), com o espírito renascentista de exercício crítico e de denúncia das irregularidades institucionais e dos vícios da sociedade.Entre as suas inúmeras obras contam-se: o Auto da Índia, 1509, farsa que critica o abandono a que o embarque eufórico e sistemático dos Portugueses para o Oriente, em cata de riquezas, vota a pátria e as situações familiares; os Autos das Barcas (Barca do Inferno, 1517; Barca do Purgatório, 1518; Barca da Glória, 1519), peças de moralidade, que constituem uma alegoria dos vícios humanos; Auto da Alma, 1518, auto sacramental, que encena a transitoriedade do homem na vida terrena e os seus conflitos entre o bem e o mal; Quem Tem Farelos?, 1515, Mofina Mendes, 1515, e Inês Pereira, 1523, que traçam quadros populares de intensidade moral, simbólica ou quotidiana, em urdiduras de cómico irresistível e de alcance satírico agudo e contundente.É muito rica a galeria de tipos em Gil Vicente, e variada a gama da sua múltipla expressão, desde a poetização do mais comum, até à religiosidade refinada e aos conteúdos abstratos e ideológicos que defende ou satiriza.
Fala do Lavrador:Sempre é morto quem do aradohá-de viver.Nós somos vida das gentese morte de nossas vidas;a tiranos, pacientes,que a unhas e a dentesnos tem as almas roídas.Para que é parouvelar?Que queira ser pecadoro lavrador;não tem tempo nem lugarnem somente d'alimparas gotas do seu suor.
Auto da Barca do Purgatório
© Instituto Camões, 2001
Fernando Pessoa (1888-1935)
É, com Camões, a mais importante figura das Letras Portuguesas e domina o século XX com a sua problemática de sentido diverso e questionante, desdobrado em heterónimos: Alberto Caeiro, o naturalista da perceção aparentemente ingénua dos objetos, Ricardo Reis, classicizante e estoico, Álvaro de Campos, espetacular e futurista, Bernardo Soares, autor da prosa intimista e fragmentária do Livro do Desassossego, e vários outros.Além deles, Fernando Pessoa ele-mesmo é, só por si, um grande poeta do simbolismo e do modernismo, pela temática da evanescência, indefinição e insatisfação das coisas e dos seres, e pela inovação praticada por entre diversas sendas de formulação do discurso poético (sensacionismo, paulismo, intersecionismo, etc.).Com Fernando Pessoa, a quem se deve também o enigmático volume de poemas a Mensagem, que transcende em muito a simples glorificação do passado mítico português (e sem falar da sua produção teatral, ou dos poemas ingleses), a literatura portuguesa encontra a equacionação lírica de questões fundamentais da existência humana, de timbre filosófico ou de avulsa emergência quotidiana, numa escrita fundadora dos pilares em que verdadeiramente se afirma a nossa modernidade.
"Diário de Lisbôa", suplemento literário, 6 de dezembro de 1935
Lisboa. Elevador da Glória, aos Restauradores
O mistério das coisas, onde está ele?Onde está ele que não aparecePelo menos a mostrar-nos que é mistério?Que sabe o rio disso e que sabe a árvore?E eu, que não sou mais do que eles, que sei disso?Sempre que olho para as coisas e penso no que os homens pensam delas,Rio como um regato que soa fresco numa pedra.Porque o único sentido oculto das coisasÉ elas não terem sentido oculto nenhum.
Alberto Caeiro
Não: não quero nada.Já disse que não quero nada.Não me venham com conclusões!A única conclusão é morrer.Não me tragam estéticas!Não me falem em moral!Tirem-me daqui a metafísica!Não me apregoem sistemas completos, não me enfileirem conquistasDas ciências (das ciências, meu Deus, das ciências!) -Das ciências, das artes, da civilização moderna!Que mal fiz eu aos deuses todos?Se têm a verdade, guardem-na! (... )Ó céu azul - o mesmo da minha infância -,Eterna verdade vazia e perfeita!Ó macio Tejo ancestral e mudo,Pequena verdade onde o céu se reflecte!Ó mágoa revisitada, Lisboa de outrora de hoje!Nada me dais, nada me tirais, nada sois que eu me sinta.Deixem-me em paz! Não tardo, que eu nunca tardo...E enquanto tarda o Abismo e o Silêncio quero estar sozinho!
Álvaro de Campos, «Lisbon Revisited» (1923)
© Instituto Camões, 2001