Autores e antologia

Herberto Helder

Herberto Helder
Herberto Helder (1930- ) É o poeta mítico da modernidade portuguesa contemporânea, não só pela intensidade particular da sua obra (quer considerada em conjunto, quer na simples leitura de um único dos seus versos) mas também pelo seu estilo de vida discreto e avesso a todas as manifestações da instituição literária. Desde O Amor em Visita, 1958, até mais recentemente, em Do Mundo, 1994, passando por Electronicolírica, 1964, e por Última Ciência, 1988, a sua poesia atravessa várias correntes literárias, manifestando uma escrita muito singular e trabalhada, sendo exemplo de um conseguimento sem falhas, sem debilidades nem concessões. As palavras não fazem o homem compreender, é preciso fazer-se homem para entender as palavras. CANÇÃO DO MAR Esta mulher é formosacomo uma flor da montanha,mas é fria, fria, e é friacomo a margem de neveonde fria floresce. ARROZAL DE MADRUGADA Às quatro da manhã, arrancoervas daninhas do arrozal.Mas que é isto: orvalho do campo, ou lágrimas de dor? A LEITURA Meus olhos resgatam o que está preso na página: o branco do branco e o preto do preto(Ben Ammar) Na ficção, Os Passos em Volta, 1963 (contos), revela o mesmo tipo de elaboração linguística cuidada e encara a problemática da deambulação humana, em demanda ou em dispersão do seu sentido e da sua inteireza. As letras dormiam na noite inclinada, e eramsilveiras bravas. Por elasescorregava o sono inclinado: mercúrio,salsa leve. A Máquina Lírica (Os poemas reproduzidos foram retirados de Poesia Toda, Herberto Helder - Assírio & Alvim, 1990) © Instituto Camões, 2001

Gil Vicente

Gil Vicente
Gil Vicente (1465-1536) Custódia de Belém (atribuída a Gil Vicente) Imagem inserta na Compilaçam de Todalas Obras de Gil Vicente..., Livro Primeyro, M. D. LXXV. Foi o mais importante dramaturgo português. Ourives do reino, mestre de balança da Casa da Moeda, autor da famosa Custódia de Belém, representa, em 1502, o Auto da Visitação (Monólogo do Vaqueiro), perante a rainha parturiente, sendo este o início de uma carreira fecunda de comediógrafo, regular e brilhante. A sua obra representa o encontro da herança medieval, sobretudo nos géneros e na medida poética (utiliza sistematicamente a métrica popular, em autos e farsas), com o espírito renascentista de exercício crítico e de denúncia das irregularidades institucionais e dos vícios da sociedade.Entre as suas inúmeras obras contam-se: o Auto da Índia, 1509, farsa que critica o abandono a que o embarque eufórico e sistemático dos Portugueses para o Oriente, em cata de riquezas, vota a pátria e as situações familiares; os Autos das Barcas (Barca do Inferno, 1517; Barca do Purgatório, 1518; Barca da Glória, 1519), peças de moralidade, que constituem uma alegoria dos vícios humanos; Auto da Alma, 1518, auto sacramental, que encena a transitoriedade do homem na vida terrena e os seus conflitos entre o bem e o mal; Quem Tem Farelos?, 1515, Mofina Mendes, 1515, e Inês Pereira, 1523, que traçam quadros populares de intensidade moral, simbólica ou quotidiana, em urdiduras de cómico irresistível e de alcance satírico agudo e contundente.É muito rica a galeria de tipos em Gil Vicente, e variada a gama da sua múltipla expressão, desde a poetização do mais comum, até à religiosidade refinada e aos conteúdos abstratos e ideológicos que defende ou satiriza. Fala do Lavrador:Sempre é morto quem do aradohá-de viver.Nós somos vida das gentese morte de nossas vidas;a tiranos, pacientes,que a unhas e a dentesnos tem as almas roídas.Para que é parouvelar?Que queira ser pecadoro lavrador;não tem tempo nem lugarnem somente d'alimparas gotas do seu suor. Auto da Barca do Purgatório © Instituto Camões, 2001

Fernando Pessoa

Fernando Pessoa
Fernando Pessoa (1888-1935) É, com Camões, a mais importante figura das Letras Portuguesas e domina o século XX com a sua problemática de sentido diverso e questionante, desdobrado em heterónimos: Alberto Caeiro, o naturalista da perceção aparentemente ingénua dos objetos, Ricardo Reis, classicizante e estoico, Álvaro de Campos, espetacular e futurista, Bernardo Soares, autor da prosa intimista e fragmentária do Livro do Desassossego, e vários outros.Além deles, Fernando Pessoa ele-mesmo é, só por si, um grande poeta do simbolismo e do modernismo, pela temática da evanescência, indefinição e insatisfação das coisas e dos seres, e pela inovação praticada por entre diversas sendas de formulação do discurso poético (sensacionismo, paulismo, intersecionismo, etc.).Com Fernando Pessoa, a quem se deve também o enigmático volume de poemas a Mensagem, que transcende em muito a simples glorificação do passado mítico português (e sem falar da sua produção teatral, ou dos poemas ingleses), a literatura portuguesa encontra a equacionação lírica de questões fundamentais da existência humana, de timbre filosófico ou de avulsa emergência quotidiana, numa escrita fundadora dos pilares em que verdadeiramente se afirma a nossa modernidade. "Diário de Lisbôa", suplemento literário, 6 de dezembro de 1935 Lisboa. Elevador da Glória, aos Restauradores O mistério das coisas, onde está ele?Onde está ele que não aparecePelo menos a mostrar-nos que é mistério?Que sabe o rio disso e que sabe a árvore?E eu, que não sou mais do que eles, que sei disso?Sempre que olho para as coisas e penso no que os homens pensam delas,Rio como um regato que soa fresco numa pedra.Porque o único sentido oculto das coisasÉ elas não terem sentido oculto nenhum. Alberto Caeiro Não: não quero nada.Já disse que não quero nada.Não me venham com conclusões!A única conclusão é morrer.Não me tragam estéticas!Não me falem em moral!Tirem-me daqui a metafísica!Não me apregoem sistemas completos, não me enfileirem conquistasDas ciências (das ciências, meu Deus, das ciências!) -Das ciências, das artes, da civilização moderna!Que mal fiz eu aos deuses todos?Se têm a verdade, guardem-na! (... )Ó céu azul - o mesmo da minha infância -,Eterna verdade vazia e perfeita!Ó macio Tejo ancestral e mudo,Pequena verdade onde o céu se reflecte!Ó mágoa revisitada, Lisboa de outrora de hoje!Nada me dais, nada me tirais, nada sois que eu me sinta.Deixem-me em paz! Não tardo, que eu nunca tardo...E enquanto tarda o Abismo e o Silêncio quero estar sozinho! Álvaro de Campos, «Lisbon Revisited» (1923) © Instituto Camões, 2001

Fernão Lopes

Fernão Lopes
Fernão Lopes (1380-1460) Iluminura da Crónica de D. João I de Fernão Lopes (pormenor). IAN/Torre do Tombo. Cronista de D. João I, guarda-mor das escrituras da Torre do Tombo, é a figura mais importante da literatura portuguesa medieval. A sua importância reside no cuidado em fundamentar aescrita historiográfica em provas documentais, assim como no talento de que dá provas como escritor, descrevendo com minúcia e vivacidade as movimentações de massas (sobretudo durante as sublevações de apoio ao Mestre de Aviz, em Lisboa) e algumas cenas dos eventos que regista, incluindo diálogos, o que consegue não só com remissões a testemunhos fidedignos mas também com uma capacidade de manejar a linguagem que coloca a imaginação ao serviço da verdade, de que acaba por se não excluir.A sua principal obra é a Crónica de D. João I. Assinatura autógrafa de Fernão Lopes. IAN/Torre do Tombo Porque escrevendo o homem do que não é certo, ou contará mais curto do que foi, ou falará mais largo do que deve; mas mentira em este volume, é muito afastada da nossa vontade. Ó! Com quanto cuidado e diligência vimos grandes volumes de livros, de desvairadas linguagens e terras; e isso mesmo públicas escrituras de muitos cartórios e outros lugares, nas quais depois de longas vigílias e grandes trabalhos, mais certidom haver não podemos da conteúda em esta obra. Crónica de D. João I, Prólogo © Instituto Camões, 2001

Eugénio de Andrade

Eugénio de Andrade
Em Eugénio de Andrade (n. 1923), a poesia dos elementos é também poderosa, mas quase sempre reportada ao amor - da natureza, dos seres e do corpo. Muito sensual e literária, plástica e musical, a sua poesia concebe-se como reelaboração da palavra até um limite de despojamento que parte do mundo (agudamente percebido) para reencontrar nele o ser eleito e, em última análise, a solidão como reduto essencial. «As palavras interditas» (1951), poema de culto para várias gerações: Os navios existem, e existe o teu rostoencostado ao rosto dos navios.Sem nenhum destino flutuam nas cidades,partem no vento, regressam nos rios.As palavras que te envio são interditasaté, meu amor, pelo halo das searasse alguma regressasse, nem já reconheciao teu nome nas suas curvas claras. Eugénio tem a faculdade de articular o circunstancial com o absoluto, de perceber num ambiente concreto a voz de comunicação que o levará à inscrição poética, à transfiguração modelar, numa expressão límpida e pura muito própria. Em Memória Doutro Rio (1978), «Com a manhã»: Vem dos lados do rio, as mãos fresquíssimas, algumas gotas de água ainda nos cabelos. Com a manhã chega o anónimo respirar do mundo. Um cheiro a pão fresco invade o pátio todo. Vem dos lados do rio: para levar à boca, ou ao poema. © Instituto Camões, 2001