Autores e antologia

Nuno Bragança

Nuno Bragança
Nuno Bragança (1929-1985) Publicou um livro decisivo para a nossa modernidade literária, A Noite e o Riso, 1969, que alia a experiência surrealista a certas tendências do «nouveau roman» francês, desenvolvendo uma experiência pessoal de educação e boémia. Notabilizou-se como romancista (Square Tolstoi, 1981) e como contista (Estação, póstumo), tematizando a inquietação humana através da deambulação urbana, política, militante e erótica, e insistindo na componente social da desarticulação íntima dos valores e dos sentimentos. Estou sentado num dancing e tenho a mão. Ainda em volta de uma bebida de pressão de ar.Às vezes, acontece num sítio destes e em hora assim que o pecado original se derreteu num shaker, acabando-se a mortalidade infantil e a Polícia. Sinto essa harmonia. Por cima dos ombros cansados, como um xaile da leveza dum suspiro de gato. Pelas luzes das mesas e fumo nos olhos trotam as mais certeiras notas de piano.A Noite e o Riso (excerto) © Instituto Camões, 2001

Miguel Torga

Miguel Torga
Miguel Torga (1907-1995) Médico em Coimbra, foi um polígrafo fecundíssimo e figura determinante na cultura portuguesa deste século, em termos não só literários mas também cívicos. Tangencial às tendências estéticas e ideológicas contemporâneas, desenvolveu um estilo muito pessoal na poesia (O Outro Livro de Job, 1936), na ficção (em notáveis antologias de contos, ex. Bichos) e noutros géneros, onde se destacam os 16 volumes do Diário, obra-prima das letras portuguesas.Muito sensível ao enraizamento do ser humano no seu meio ambiente, nomeadamente na montanha, encara a relação do homem com o mundo, em luta ou harmonia, num reconhecimento da dimensão cósmica que sublinha também a vertente sagrada da existência. Miguel Torga, Bichos, 18.ª edição, Coimbra, 19 «Solidão Criadora» Dorme e sonha a meu ladoTão alheia de mimQue me sinto um amante abandonado...Acordá-la?Gritar?O poeta é uma angústia que se calaA cantar. Diário - V © Instituto Camões, 2001

Mário Cláudio

Mário Cláudio
Mário Cláudio (1941), firmando-se de início como poeta e cultivando vários géneros literários, é sobretudo conhecido como ficcionista desde a publicação de Um Verão Assim, 1974, reafirmando-se com Damascena, 1983, e sendo reconhecido como um dos grandes vultos da ficção portuguesa contemporânea a partir da sua Trilogia da Mão (com volumes sobre Amadeo Souza-Cardoso, Guilhermina Suggia e Rosa Ramalho). O pendor para as formas literárias de reconstituição, aliando a capacidade de evocação de ambientes e figuras a uma muito pessoal subjetividade de deformação criativa, acentua-se em muitas das suas obras posteriores, como A Quinta das Virtudes, 1990, ou As Batalhas do Caia, 1995. Fora Cândida Branca fruto de certo romance, fugacíssimo e intenso, entre um cocheiro de mala-posta, casado e pai de outras duas raparigas, e uma vendedeira de doces, da aldeia de Irivo, no fojo de Penafiel. Haviam-se avistado seus progenitores, na romaria da Senhora Aparecida, por uma longa jornada ardente, dessas que fazem desfalecer os próprios milheirais. E, no meio das espigas, engendrara-se a pequena, crescendo à sombra, depois, da doceira, a qual acharia, mais tarde, um rapaz de quinta, disposto a recebê-la, por consorte. A Quinta das Virtudes © Instituto Camões, 2001

Mário de Sá-Carneiro

Mário de Sá-Carneiro
Mário de Sá-Carneiro (1890-1916) É um dos nossos maiores poetas do Modernismo, talvez o que melhor exprime a cisão do sujeito na enunciação de si próprio e na formulação da sua perceção do mundo, ora decetiva ao jeito simbolista-decadentista, ora inebriada pelas sensações e entusiasmos do futurismo. "Cristo Vermelho", de Amadeo de Souza-Cardoso [1887-1918] A sua poética afasta-se de uma preocupação meramente formal da experiência literária, centrando nela embora o seu discurso, mas nela fundamentando as interrogações e a afirmação de anseios que dão sentido a uma existência que no entanto as não encontra. O poeta põe termo aos seus dias, suicidando-se em Paris. Perdi-me dentro de mimPorque eu era labirinto,E hoje, quando me sinto,É com saudades de mim.Passei pela minha vidaUm astro doido a sonhar.Na ânsia de ultrapassar,Nem dei pela minha vida... (...)Desceu-me n'alma o crepúsculo;Eu fui alguém que passou.Serei, mas já não me sou;Não vivo, durmo o crepúsculo. «Dispersão» © Instituto Camões, 2001

Maria Velho da Costa

Maria Velho da Costa
Maria Velho da Costa (1938), revelação romanesca fulgurante com Maina Mendes, 1969, centrado na figura feminina que assume a ancestralidade, a rebeldia, o prazer, a criação e a dor como lugares de afirmação do ser, prolonga esta temática em Casas Pardas, 1977, que evidencia o seu modo poliédrico de compôr textos em registos diferenciados de discurso, porém de orgânica composicional sempre segura e coesa, e veiculando uma pungência de sensibilidade que confere ainda mais acutilância ao seu rigor formal (igualmente afirmado posteriormente em Missa in Albis, 1988, ou Dores, 1995). Ah, digo-lhe que há um descontentamento que contenta, o tagarela, o que pode dizer-se com justeza e ouvir-se com gravidade, há festins de descontentamento e que bodo temos tido a esta vocação de carpidores que logo nos toma quando não estamos de partida. Creio mesmo que a saudade é amargor de paragem, não de distância. E isso me bateu ontem, de novo, cada vez mais certamente, no cais de Alcântara com as gaivotas adormentadas como pequenos patos, quietas no baloiço das águas, que reles somos quando não temos para onde ir. Maina Mendes © Instituto Camões, 2001