Autores e antologia

Maria Judite de Carvalho

Maria Judite de Carvalho
Também pela qualidade ficcional do tempo interior se destaca Maria Judite de Carvalho [1921-1998], esplendorosa revelação nos contos de Tanta Gente, Mariana!,1959, ou na novela romanceada As Palavras Poupadas, 1961, onde emergem personagens de fundura psicológica matizada de finas implicações sociais, patentes em recortes de miúdos gestos ou de impercetíveis atitudes e julgamentos: Levanta-se da mesa. Lá fora, num relógio qualquer, batem duas horas. Daí a momentos, daí a uma eternidade, levantar-se-á da mesa outra vez. E amanhã. E depois. E daí a muitos anos. Tudo morre à noite, dizia Claude. Mas não, a vida é longa, desliza e escorre sem uma quebra. Uma sucessão de acontecimentos, uma corrente sem fim de palavras ditas e de palavras poupadas. Dessas principalmente. As Palavras Poupadas Decorre desta conceção narrativa uma atenção ao desfiar do tempo quotidiano e às personagens incaracterísticas da circunstância comum que levam a autora à prática da crónica (Seta Despedida, 1994) e à atenção ao fragmentário que pode concretizar-se no conto (Flores ao Telefone, 1968). © Instituto Camões, 2001

Maria Gabriela Llansol

Maria Gabriela Llansol
Maria Gabriela Llansol (1931-2008) é um caso ímpar na ficção contemporânea, de jorrante, inesperada e original criatividade. De estilo muito próprio, a sua forte personalidade afirmou-se desde 1957, com as narrativas de Os Pregos na Erva, consolidando-se com O Livro das Comunidades, 1978, e com todas as suas obras posteriores, de que poderemos salientar A Restante Vida, 1978, e Um Beijo Dado mais tarde, 1990, e Lisboaleipzig, 1994 e 1995. Aliando a subjetividade enunciativa a um forte pendor mítico de implicação lírica, que funda numa visão da vida e do mundo de tipo religioso herético, sensualista e naturalista, a sua ficção caracteriza-se por uma hibridez de registos e de convocação, temporal e espacial de entidades, que no entanto assume uma coesão que lhe é dada por uma marca discursiva persistente e inconfundível. O texto é a única forma de identificar o sexo e a humanidade de alguém porque, ó poeta estranho, o sexo de alguém, é a sua narrativa. A sua, ou a que o texto conta, no seu lugar. Assim o sexo será como for o lugar do texto.Quando se deseja alguém, como tu desejas Infausta, e ela deseja Johann, é o seu lugar cénico que se deseja,os gestos do texto que descreve no espaçoe chamar-lheprecioso companheiro;de mim, direi que fui uma vez enviado,trouxeste a frase que nunca antes leras,o meu corpo a disse, e não reparaste que ficaste com ela escrita. Lisboaleipzig 2 © Instituto Camões, 2001

Camões

Camões
Camões Camões. Retrato de Fernão Gomes. IAN/Torre do Tombo Lisboa nos inícios do séc. XVI. Duarte Galvão, Crónica d'el Rei Dom Afonso Henriques, c. 1520 Considerado o poeta da nacionalidade, através da epopeia moderna Os Lusíadas, Luís Vaz de Camões teve uma existência atribulada, atendendo ao pouco que dela se conhece. Estudou em Coimbra, esteve em Ceuta e lutou na Índia, tendo entretanto perdido um olho, e, após o seu regresso a Lisboa, frequenta o Paço, mas vive com dificuldades, de uma pensão régia exígua, não vendo reconhecido o seu mérito.Nascido em 1525, morre em 1580, após o que a sua reputação como grande poeta se firma e não cessa de aumentar, sobretudo depois da perda da independência, cujo sentimento a sua epopeia intensifica.Cultivou também o teatro, mas afirma-se sobretudo na poesia lírica (Rimas), com grande variedade de géneros: sonetos, canções, éclogas, redondilhas, etc..É o grande poeta do maneirismo português, pela filiação na tradição clássica à maneira renascentista, mas sensível ao conhecimento pela experiência que a época e as viagens lhe permitem.A sua obra é enriquecida por uma vivência sensível do sentimento e do saber, modulada na imitação dos antigos mas permeável às marcas contemporâneas de uma existência em mutação. Por isso ela se caracteriza por uma enorme complexidade, na qual sobressai a vivência aguda de tensões que comunicam ao seu lirismo uma agudeza simultaneamente experiencial e literária. Busque Amor novas artes, novo engenhopara matar-me, e novas esquivanças;que não pode tirar-me as esperanças,que mal me tirará o que não tenho.Olhai de que esperanças me mantenhoVede que perigosas seguranças!Que não temo contrastes, nem mudanças,andando em bravo mar, perdido o lenho.Mas, conquanto não pode haver desgostoonde esperança falta, lá me escondeAmor um mal que mata e não se vê Que dias há que na alma me tem postoum não sei quê, que nasce não sei onde,vem não sei como e dói não sei porquê. . O Gigante Adamastor. Imagem inserta em Os Lusíadas, Lisboa, Marujo Editora, 1985 © Instituto Camões, 2001

Mário de Carvalho e Luísa Costa Gomes

Mário de Carvalho e Luísa Costa Gomes
Mário de Carvalho (1944) e Luísa Costa Gomes (1954), embora de idades distanciadas, são duas personalidades literárias afirmadas durante os anos oitenta mas confiimadas mais ou menos pelos finais da década, o primeiro com A Paixão do Conde de Fróis, 1986, e a segunda com O Pequeno Mundo, de 1988. Ligado às reconstituições histórico-paródicas, Mário de Carvalho produziu uma obra de teor complexo com o seu recente Um Deus Passeando na Brisa da tarde, 1994, romance sobre os alvores e implicações do cristianismo e possibilidade da sua releitura atual, e Luísa Costa Gomes deu-nos, em Olhos Verdes, 1994, uma singular obra de simulação e crítica da publicidade e das solicitações mediáticas. Praticando ambos uma escrita de recorte sintático clássico, e assumindo uma temática colhida no comum ou mesmo no vulgar, salientam-se pelo modo como lhe incutem cambiantes inesperados e sentidos de intensa acutilância reflexiva e crítica. A chouto rápido, os dois cavaleiros prosseguiam agora pela charneca, já muito apartados da carreteiro, desandando para as bandas da raia. Contornaram um pinheiral em redondo, hesitaram à vista do plaino nu que a pequena elevação da praça dominava e lançaram-se num galope acelerado, a descoberto, obliquando contra a Espanha. Em pouco se sumiam, deixando como sinal do percurso uma mó de poeira que se ia tornando mais e mais ténue deste lado de cá. Mário de Carvalho, A Paixão do Conde de Fróis Os interesses dele eram as empresas, os utilitários, a carpintaria artística e o espaço. Futebol via de vez em quando. Tinha teorias sobre as coisas e ambicionava partilhá-las com outros. Explicava-se com clareza, embora não se pudesse considerar que fizesse sempre todo o sentido. O que o intrigava sobremaneira era o espaço, o espaço que permeava tudo, o ar vazio entre a secretária e a cadeira, entre o rosto e a mão, entre o chão e o tecto. Disse que tinha a certeza de que todos os espaços vazios tinham um significado profundo. Luísa Costa Gomes, Olhos Verdes © Instituto Camões, 2001

José Saramago

José Saramago
José Saramago (1922), embora só comece a publicar muito mais tarde, em poesia, crónica e conto, só com os romances Levantado do Chão, 1980, e Memorial do Convento, 1982, atinge uma popularidade que não deixa de crescer, no plano nacional e internacional. Ficcionaliza momentos particulares da história e da cultura de Portugal (O Ano da Morte de Ricardo Reis, 1944, História do Cerco de Lisboa, 1989) ou entrevê períodos de distopia ucrónica (Jangada de Pedra, 1986) e inlocalizável (Ensaio sobre a Cegueira, 1995, Todos os Nomes, 1997) que dão conta de uma reversão do homem ao seu confronto necessário, e nem sempre afortunado, com a comunidade, numa escrita particularíssima que põe em relevo uma frase longa e progressivamente elaborada por uma instância autoral que emerge e não se demite do seu papel de selecionar e de julgar, assim fundamentando a ideia da criação literária. Aqui têm, disse o escritor. A mulher do médico perguntou, Posso, sem esperar a resposta pegou nas folhas escritas, umas vinte seriam, passou os olhos pela caligrafia miúda, pelas linhas que subiam e desciam, pelas palavras inscritas na brancura do papel, gravadas na cegueira. Estou de passagem, dissera o escritor, e estes eram os sinais que ia deixando passar. A mulher do médico pôs-lhe a mão no ombro, e ele com as suas duas mãos foi lá buscá-la, levou-a devagar aos lábios, Não se perca, não se deixe perder, disse, e eram palavras inesperadas, enigmáticas, não parecia que viessem a propósito. Ensaio sobre a Cegueira © Instituto Camões, 2001