N.º 4, Abril de 2005
Editorial
A Língua Portuguesa em África
Representações da aprendizagem do PL2
A Língua Portuguesa na Guiné-Bissau
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"A língua portuguesa em África" (Guiné-Bissau).

Arlinda Mártires *


Resumo: O texto abaixo transcrito fez parte do painel A língua portuguesa em África, por ocasião do IV Curso Livre, levado a cabo pela ESE de Viana do Castelo.

É o relato da minha experiência de aprendizagem/ensino (porque é preciso aprender para ensinar) no âmbito das literatura e cultura portuguesas, ao longo de cinco anos (1993-98), na Guiné-Bissau.

O discurso centra-se à volta de conceitos como transversalidade, alteridade, conhecimento do Outro, por dentro (a sua realidade, cultura, tradição, como apreende a mensagem, entre outros), não com o olhar do Ocidente, como refere Said, em Orientalismo.


Palavras-chave: Kriol; Multilinguismo; Multiculturalismo; Ensino da Literatura.



Em Outubro de 1993 cheguei à Guiné-Bissau como leitora de língua e cultura portuguesas, pelo Instituto Camões. O meu destino era a Escola Tchico – Té, a única escola do país destinada à Formação de professores, onde fui colocada como professora de Estudos Literários dos três anos que durava o Curso : 1º. Ano – Introdução aos Estudos Literários, 2º. Ano – Literatura Portuguesa I e 3º.ano – Literatura Portuguesa II.

Devo dizer que conhecia muito pouco do país e do povo a quem ia ensinar a minha língua, a minha cultura, através do texto literário, e os dois primeiros anos foram de descoberta, de aprendizagem, de adaptação. O Português não pode ser ensinado na Guiné, onde é língua terceira ou quarta, raras vezes segunda, como se ensina em Portugal. E para que a mensagem chegue ao destinatário, há todo um circuito, de que não se pode fugir, para comunicar. É preciso conhecer o destinatário, saber o que ele é, conhecer e respeitar o que sabe, como apreende e interpreta o que se lhe diz, como cativá-lo e interessá-lo pela mensagem. O meu deslumbramento (sentido) pela descoberta da sua cultura, das suas vivências, da sua língua – o Kriol / Guineense - , demonstrado, tanto nas aulas, como no contacto com a população, na cidade e no mato, contagiou-os (na sua grande maioria) e interessou-os pelo Português – língua e cultura.

Percebi, logo na primeira aula, que o conceito de literatura era quase ficção para a grande maioria. Conheciam a oratura, o conto tradicional guineense, as fábulas que escutam à noite na tabanka, antes de dormir. Felizmente, a literatura começou a proliferar na Guiné. Conheci os contos da Domingas Samy e levei- os para a aula. Eram em português, mas retratavam a sua realidade. Daí, partimos para Herculano e A Dama Pé-de-Cabra, com uma temática próxima das suas crenças, Eça de Queirós, Miguel Torga, Sophia. Vimos semelhanças (muitas) e diferenças (menos) que partilhámos.

Descobri a poesia de Tony Tcheka, Odete Semedo, Félix Sigá, Baticã, Helder Proença, Amílcar, Vasco Cabral, entre outros, e analisámo-la. Umas vezes em português, outras em kriol, que traduzíamos posteriormente. E foi aqui que descobriram o significado de texto literário. Usei a Imagem do pano de pente. Assim como o homem que faz o pano tem como ferramentas o tear e as linhas, o poeta tem o papel e as palavras. Depois cada um usa a sua arte, a sua criatividade. Um, tece caravelas, estrelas, iran cegu, outro tece sonhos, sentimentos, estados de espírito, como quem faz um bordado com as palavras - pela Metáfora. Começámos pela temática do amor, a mais universal. Reparámos, então, numa abissal diferença: os guineenses associam ao amor a alegria, enquanto nós, a irremediável tristeza e sofrimento.

O povo da Guiné é de uma alegria que se reflecte até na sua fonética : a predominância das vogais, sobretudo do /i/, a quase ausência do /R/, assemelham-se, como já tenho dito, à linguagem infantil, no melhor sentido do termo, ao gargalhar cristalino das crianças. Tem uma capacidade de aceitação do sofrimento invejável – djitu ka ten, sufri son – e não foi tarefa fácil explicar o delírio camoniano, a tortura que é amar para os portugueses. Felizmente, Camões na sua juventude era ainda alegre – Não sei se me engana Helena, se Maria, se Joana -, que consideravam a angústia expressa nos sonetos uma maluqueira, uma doença, a ponto de um deles, nos versos Tanto de meu estado me acho incerto / Que em vivo ardor, tremendo estou de frio, achar que Camões estava com paludismo. Lemos também Bocage, Garrett, Pessoa, Espanca, Torga, O’Neill, Eugénio de Andrade, e aprendemos que cada um de nós é um indivíduo com a sua particularidade, que é preciso respeitar e aceitar, nunca menosprezar. E vimos Os Lusíadas, dramatizámos o Concílio dos Deuses, vertemos para o kriol estâncias da Ilha dos Amores e foi uma obra que muito apreciaram.

O que fiz (o que sempre faço no meu desempenho como professora) foi ir ao encontro dos alunos. O teatro, a mímica, o canto, a dança, o riso, a expressão corporal são o quotidiano do guineense, que se manifesta até na fala – a concretização da língua . Nas nossas aulas havia espaço para tudo isso, o que as tornava animadas e os levava à compreensão das matérias.

Adoraram a lírica medieval. O ambiente das Cantigas de Amigo era também o seu. O ir buscar água à fonte, lavar o cabelo no rio, bailar sob as árvores em flor, o aproveitar das situações para o namoro, eram a sua vivência. A bajuda – donzela – mente à mãe, confidencia com as amigas e a natureza, encontra-se com o amigo, sente a sua falta (mas diverte-se na mesma, ri, não chora) quando ele parte na canoa. Dramatizámos muitas, entre elas, uma bailia, não sob as avelaneiras frolidas, mas sob as acácias rubras, com música étnica, naturalmente, tambores e tinas e as palavras adaptadas ao português actual: bailemos nós, já todas três, ai amigas / sob estas árvores floridas. Era assim que vivíamos a literatura. Com as Cantigas satíricas, fizemos um paralelo com as Cantigas de Mandjuandade, cantares de mulheres com a intenção, entre outras, de escarnecer ou maldizer. E cantámos, em português e kriol.

Quando a guerra começou, em 7 de Junho de 1998, preparávamos a apresentação de O Auto da Barca do Inferno, uma intertextualidade que fizemos com o texto de Gil Vicente, em trabalho de grupo, com personagens-tipo da sua realidade actual, criadas (a par de atitudes e diálogos) por eles. O discurso era em português, embora nele entrassem muitas expressões em kriol, a servir o cómico de linguagem e de situação, porque uma língua é sempre a expressão de uma cultura, um espaço aberto para a troca de saberes.

Se não tivesse aprendido o kriol, o meu trabalho teria possivelmente “caído em saco roto”. A minha mensagem não teria sido apreendida com clareza: que a literatura é a expressão de vivências, desejos, sonhos do Homem de todas as cores, de todos os tempos.


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* Arlinda Conceição Mártires Nunes nasceu em Alfundão – Baixo Alentejo (Portugal), a 13 de Novembro de 1955.

É licenciada em Línguas e Literaturas Modernas (Português/Inglês) pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, onde, presentemente, é mestranda em Literatura e Culturas dos Países Africanos de Expressão Portuguesa.

Exerceu a função de Leitora de Língua e Cultura Portuguesas do Instituto Camões, na Escola N. Superior Tchico-Té, em Bissau – Guiné-Bissau (1993-98). Foi membro do GREC (Grupo de Expressão Cultural) – Bissau e pertenceu ao Conselho de Redacção e Revisão de Tcholona – Revista de Artes e Letras (Guiné-Bissau).

Foi galardoada com o Prémio de Poesia Raúl de Carvalho (II Edição – Câmara Municipal de Alvito), em 1999, com a obra Além-Rio.

Esteve em licença sabática (Ministério da Educação) durante o ano lectivo 2001/2002, tendo produzido três obras: Guynea (poesia), Contos da Terra Vermelha (ficção) e Fábulas da Guiné-Bissau e de Portugaluma leitura comparada (ensaio).

É professora de Português do Quadro de Nomeação Definitiva da Escola Secundária de Viana do Alentejo, desde 1998.

Tem poemas dispersos por livros e jornais e publicou Além-Rio – poesia (2001), Guynea – poesia (2004) e Sete Histórias de Gatos – ficção (2004).


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