Número 0: Sistemas de gestão de memórias de tradução
Uma focalização jurídica das memórias de tradução
Jorge Marcos, Advogado - ICAB
Introdução
Mediante o debate suscitado no mundo da tradução sobre a propriedade intelectual das memórias de tradução, gostaríamos de tratar este tema sob um ponto de vista jurídico. Em primeiro lugar, é preciso identificar o objecto: as memórias de tradução. Entende-se como memória de tradução um suporte de assistência à tradução, produzido e incorporado de forma independente ou não a um software e que é o produto da interacção entre o software, o texto original e o trabalho do tradutor. Neste artigo, quando falamos de tradutor referimo-nos ao tradutor autónomo, não ao tradutor em regime laboral, ou seja, o tradutor que faz parte do quadro de pessoal de uma empresa de tradução.
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Uma questão prévia: a licença de software
A memória de tradução é criada por meio de um software, necessário também para se poder utilizá-la. Por isso, a primeira questão jurídica que se deve especificar é a de que quem pretender dispor de direitos sobre uma memória deverá ter a autorização para ser utilizador da aplicação informática com a qual foi gerada a memória de tradução, segundo os termos da licença da aplicação. Assim, quem gerar uma memória de tradução sem ter a licença de uso, dificilmente poderá pretender obter qualquer tipo de direito.
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O texto original
O seguinte elemento necessário para produzir uma memória de tradução é o texto a ser traduzido, que tem um proprietário, normalmente o cliente, e que pode inclusive ter direitos de autor. Uma das questões mais controvesas sobre a propriedade das memórias de tradução é exactamente esta: os clientes, e mesmo alguns tradutores, seguindo certos critérios económicos e não jurídicos, atribuem ao proprietário do texto a titularidade da memória de tradução. Não obstante, segundo este argumento, ao titular do texto também se poderiam atribuir os direitos da tradução, coisa que, felizmente para os tradutores, evita a legislação positiva que lhes atribui a propriedade da tradução, independentemente daquela do texto original (Artigos 11.1 e 21 do Real Decreto 1/1996, de 12 de Abril, texto emendado da Lei de Propriedade Intelectual, doravante LPI, no âmbito da propriedade intelectual e a legislação sobre a propriedade privada do Código Civil em aplicação do artigo 429 do mesmo corpo legal pelos supostos não tutelados pela propriedade intelectual).
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A memória de tradução como produto do trabalho do tradutor
A memória é o produto do trabalho intelectual do tradutor: ao mesmo tempo que traduz, e o com o apoio indispensável do software, fixa os dados que farão parte da memória de tradução, a qual poderá ser utilizada em ulteriores traduções e até ser ampliada com novos dados. Este é o principal critério dos tradutores para se atribuir a propriedade da memória de tradução. Na minha opinião, esta é uma conclusão correcta mas, como jurista, devo aprofundar os argumentos jurídicos em que se apoia esta afirmação. É por isso que, de seguida, analisaremos com atenção a possibilidade de a memória de tradução pertencer a outros agentes implicados no processo comercial da tradução.
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A memória de tradução é uma criação intelectual do tradutor ou é um trabalho automático do software?
Actualmente, o software não gera traduções de forma autónoma; ele necessita, no mínimo, da supervisão do tradutor. Portanto, o proprietário (que não pode ser confundido com o licenciado, isto é, o utilizador-tradutor que adquiriu uma licença) não pode pretender ter a titularidade da memória, já que esgota o aproveitamento económico na venda e manutenção do software. Se quiser ir mais longe com licenças do tipo "shrinkwrap", que consistem no contrato de adesão de licença de programa de computador, estas deverão ser declaradas nulas devido ao seu carácter abusivo.
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A memória de tradução será uma obra colectiva compartilhada entre o proprietário do software, o proprietário do texto e o tradutor?
Na minha opinião, não. Em primeiro lugar, o proprietário do software fica excluído pelos argumentos apresentados anteriormente. Contudo, a exclusão do proprietário do texto como "co-proprietário" da memória de tradução é uma questão mais interessante do ponto de vista jurídico. Partimos, neste caso, de duas situações:
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a) Se se tratar de textos com propriedade intelectual (o que na prática será bastante difícil de acontecer), a Lei da Propriedade Intelectual exigirá a autorização do autor. Poderíamos considerar que a memória de tradução reproduz o texto original, em cujo caso o proprietário do texto original continuará a ser o proprietário. Se considerarmos que a memória de tradução modifica o texto, o autor da transformação será seu proprietário (artigo 21 da LPI). Acredito que, especialmente no que diz respeito ao segundo caso, a autorização para incorporar o texto na memória estaria implícita na autorização para traduzi-lo.
Ainda se pode ir mais além e afirmar que uma memória de tradução nem transforma nem reproduz o texto original, só o "disseca", quase que "o atomiza"; nesse caso, e sem entrar em situações extraordinárias, uma frase dificilmente será objecto de propriedade intelectual, portanto a memória poderia ser feita sem nenhum tipo de autorização e poderia ser distribuída livremente. Porém, se as características da memória de tradução fazem com que se mantenha claramente a identidade da obra objecto de propriedade intelectual, o autor da memória poderá utilizá-la livremente, mas para distribuí-la será preciso ter o consentimento do autor do texto.
O que seria insustentável era o titular dos direitos da propriedade intelectual sobre o texto pretender obter qualquer tipo de direito sobre a memória de tradução, já que ele não é o autor nem o titular dos direitos sobre a tradução, e provavelmente nem é o licenciado do software de produção da memória.
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b) Se se tratar de textos não protegidos pela propriedade intelectual e sem qualquer tipo de limites no que diz respeito à sua reprodução ou à sua transformação, o proprietário do texto não pode pretender ter algum tipo de direito sobre a memória.
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A exploração comercial da memória de tradução
Se a memória de tradução pudesse ser guardada num arquivo independente na aplicação informática com a qual foi gerada, poderia haver alguém disposto a comprá-la (o proprietário do texto, uma agência de tradução ou outros tradutores). Em princípio, e dependendo de se esse novo utilizador dispõe da licença do software, praticamente não existe nenhum obstáculo legal para a cedência do uso da memória, direito pertencente ao autor da memória - o tradutor - excepto nos casos em que a memória mantenha claramente a identidade de um texto objecto de propriedade intelectual, ficando expressamente proibida sua divulgação conjuntamente com a memória. Contudo, esta proibição não será obstáculo para fazer a memória nem para a utilizar sem a distribuir. Não obstante, existe um impedimento mais claro que limita a divulgação das memórias de tradução, com fins económicos ou não: o facto de a divulgação tornar vulneráveis os segredos industriais ou os segredos de Estado, o direito da concorrência, a protecção dos dados de carácter pessoal ou a obrigação de confidencialidade frente ao cliente. Nesses casos, a memória não poderá ser divulgada nem utilizada para outras traduções que não sejam as do mesmo cliente, excepto se a nova tradução não afectar nenhuma das matérias protegidas.
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Na prática, não será muito difícil encontrar clientes ou agências que queiram tanto a tradução quanto a memória de tradução, e normalmente pelo preço. Aqui o tradutor pode escolher o que mais lhe convier; em qualquer caso, é recomendável que este tema fique bem claro no momento da contratação do serviço de tradução, assim como a assinatura de um contrato que preveja a possível cedência de uso da memória e todas as questões que aparecem neste artigo relacionadas com os direitos do tradutor sobre a memória.
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Direitos das agências sobre a memória de tradução
Se ficou excluída a possibilidade de o proprietário do texto original poder ser o proprietário da memória de tradução, ainda mais excluída fica a possibilidade de que esta seja propriedade de quem simplesmente é um intermediário, juridicamente um subcontratado do serviço de tradução. Infelizmente, na prática, é muito frequente a reclamação de uma memória de tradução da parte das agências, para a utilizar em futuras traduções. Desta forma, as agências obterão as memórias e não estarão obrigadas a manter nenhum tipo de vínculo com o tradutor-autor da memória. Novamente, tudo dependerá do tradutor e da atitude da agência para chegar a um acordo sobre a cedência do uso da memória. A situação é diferente quando a agência intervém de alguma maneira nos trabalhos preparatórios da memória; nesse caso, seria preciso estudar as diferentes intervenções possíveis e as partes teriam que assinar o correspondente contrato delimitando claramente as respectivas tarefas e direitos sobre o resultado.
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Memórias de tradução em colaboração
Neste caso, partimos da hipótese de um tradutor receber a encomenda de uma tradução e de o cliente (ou a agência) lhe facilitar uma memória de tradução gerada a partir de traduções prévias para realizar o encargo. Evidentemente nesta memória se adicionará, em maior ou menor grau, a contribuição do novo tradutor e assim pode-se chegar a uma memória em que tenham intervindo diversos tradutores e que, portanto, teria diversos autores, com uma contribuição mais ou menos importante. Nesse caso poderíamos estar diante de uma situação semelhante à prevista na Lei da Propriedade Intelectual, a chamada obra em colaboração do artigo 7 da LPI que a define como "(...) uma obra que seja o resultado unitário da colaboração de diferentes autores (...)". O problema que este figurino apresenta é que seria necessário o consentimento de todos os autores da memória para sua sucessiva, e talvez ilimitada ampliação. A solução teria que ser um pacto contratual mediante o qual o tradutor autorizasse o uso da memória e a sua ampliação; desta maneira, estabelece-se para a memória de tradução, no interesse do tradutor, o mesmo regime previsto no mencionado artigo 7 para as obras em colaboração, regime que prevê entre outras questões a possibilidade de usar as ampliações da memória e de beneficiar proporcionalmente da sua cedência de uso.
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As memórias de tradução como objecto de propriedade intelectual
O artigo 1 da LPI define o objecto de propriedade intelectual como uma obra literária, artística ou científica. Da mesma forma, tanto a doutrina quanto a jurisprudência, fazendo uma interpretação detalhada da lei, exigem como requisito iniludível que a obra seja original. Neste sentido, uma memória de tradução não poderia ser objecto de propriedade intelectual nem desfrutar, portanto, deste regime especial de protecção; ela tem, então, a mesma protecção que qualquer outro objecto de propriedade privada.
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Felizmente, no dia 11 de Março de 1996 ditou-se a Directiva 96/9/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, sobre a protecção jurídica das bases de dados, de directa aplicação a Espanha e incorporada em 1998 à LPI, que, com o seu artigo 12 estabelece as bases que define como "(...) colecções de obras, de dados ou de outros elementos independentes dispostos de maneira sistemática e metódica e acessíveis individualmente por meios electrónicos ou de alguma outra forma" que "(...) para a selecção ou disposição de seus conteúdos constituem criações intelectuais, desconsiderando, se for preciso, os direitos que possam subsistir sobre os mencionados conteúdos", são objecto de propriedade intelectual e desfrutarão do regime previsto nos artigos 133 a 137 da mencionada lei.
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Portanto, se uma memória de tradução coincide com a definição de base de dados que a lei fornece, ela usufruirá de um regime especial de protecção, independentemente do seu conteúdo. Destes artigos pode deduzir-se três traços definitórios:
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a) A proteção da base de dados refere-se somente à sua estrutura no que diz respeito à forma de expressão da selecção ou à disposição dos seus conteúdos, mesmo que não os proteja. (Artigo 12.1 LPI).
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b) A lei abrange o fabricante da base de dados mas não o autor. Existem reticências para chamar de autor quem de facto é o autor, da mesma forma que se fala de direito sui generis, como literalmente diz o artigo 133 da LPI, já que parece que deliberadamente não se quer chamar direito da propriedade intelectual. Este artigo também define o fabricante em relação à base de dados como "(...) a pessoa natural ou jurídica que toma a iniciativa e assume o risco de efectuar os investimentos substanciais orientados para a obtenção, verificação ou apresentação do seu conteúdo"; no caso das memórias de tradução, este seria claramente o tradutor, que com o seu conhecimento, o seu trabalho e software obtém, verifica e apresenta o conteúdo da memória com a base de dados.
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c) Os direitos do fabricante poderão ser cedidos, transferidos ou doados através de uma licença contratual (Artigo 133 LPI).
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d) O artigo 134 estabelece os direitos e obrigações do legítimo utilizador, incluindo o regime de utilização da base de dados. A sua característica mais importante é que o utilizador não pode extrair partes substanciais da base de dados, exceptuando os casos previstos no artigo 135 da LPI.
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e) O prazo de protecção do direito será de quinze anos, sendo a data de início do prazo o dia 1 de Janeiro do ano seguinte à finalização da base de dados, ou do momento em que passou à disposição do público se o direito ainda for vigente (artigo 136 da LPI). Especialmente interessante no que diz respeito às memórias de tradução dinâmicas, ou seja, as que serão objecto de contribuições substanciais mediante traduções posteriores, é o facto de o seu regime de proteção ser independente do da memória original (artigo 136.3 LPI).
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Este regime tão inovador, pensado para proteger as manifestações das novas tecnologias que até agora podem não estar incluídas no conceito da obra literária, artística ou científica dotada de originalidade, não é tão amplo quanto o que se prevê para a protecção do resto das obras. Não obstante, pode mostrar-se suficiente para objectos e para as bases de dados, além de preencher as lacunas legais e situar a União Europeia como pioneira mundial em relação à regulação legal das novas tecnologias. Contudo, ainda há lacunas legais, já que o desenvolvimento tecnológico é muito mais rápido que o direito, embora se espere que o regime de propriedade intelectual alargue o seu objecto às novas tecnologias e aos problemas legais que se apresentam com celeridade, como aconteceu com as bases de dados, com soluções que pareciam juridicamente impossíveis há somente quatro anos.
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Finalmente, seria preciso determinar qual o regime legal das memórias de tradução que não sejam bases de dados. Partindo do facto de que são propriedade do autor conforme os argumentos detalhados no item 3, haverá um regime estabelecido no Código Civil sobre a propriedade, mas é preciso indicar que se trata de uma lei do século XIX e só servirá para fazer "equilibrismo legal" com interpretações levadas ao limite. Para evitar qualquer tipo de litígio, é preciso levar sempre em consideração a autonomia da vontade e a liberdade de pactos dos contratos; por tudo isso, como em qualquer outra situação em que se trabalha com memórias de tradução, é aconselhável o estabelecimento de um acordo escrito sobre a propriedade e a utilização da memória de tradução.
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Outubro 2001
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