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Contemporâneos
Como determinar critérios
para definir o que é do nosso tempo? Aceitar o que coexiste connosco?
Mas connosco, quem, de entre nós, uma vez que as idades são
diferentes, e as ideias, as sensibilidades e os valores também? Podemos
talvez considerar que essas diferenças são justamente marca de um
tempo ainda não filtrado pela sistematicidade de um ponto de vista histórico,
e atentar na sua coexistência como sinal de variedade e riqueza, ou
mesmo de imperfeição do nosso olhar, que em contrapartida nos
transmite a vibração da incompletude de tudo o que vive, e por isso
pulsa, dura e se transforma.
Contemporâneos a escrever, em Portugal. Alguns vultos tutelares, personalidades maiores, escritores de referência, mais ou menos afastados do nosso quotidiano, emergindo na imprensa, TV, ou morando mesmo ao nosso lado, frequentando a nossa praia, indo, como nós, ao supermercado ou ao cinema. Outros, menos tutelares, que escrevem nos periódicos, que recebem prémios, mais jovens, mais precários. Todos a fazer-nos pensar sobre o mundo e a vida, a fazer-nos emergir da nossa condição de leitores à partida passivos, mas determinados na atitude de escolha, que só pode exercer-se a partir do conhecimento. Tentemos, pois, conhecer. Em Arte Poética II, Sophia de Mello Breyner Andresen (n. 1919) escreve: A poesia é a minha explicação com o universo, a minha convivência com as coisas, a minha participação no real, o meu encontro com as vozes e as imagens. Por isso o poema não fala duma vida ideal mas duma vida concreta: ângulo da janela, ressonância das ruas, das cidades e dos quartos, sombra dos muros, aparição dos rostos, silêncio, distância e brilho das estrelas, respiração da noite, perfume da tília e do orégão. Para Sophia, a poesia é, pois, encontro do ser com o concreto do mundo, e repare-se como, explicitando o que para si é a poesia, a autora insensivelmente já está a fazer poesia, comunicando a sua percepção das coisas através da transfiguração da palavra poética. Publica livros desde 1944 (também prosa de ficção, e livros para crianças como A Menina do Mar e A Fada Oriana, 1958), e um dos seus grandes temas é o mar, com a luminosidade de conhecimento solar e a regularidade de reconstrução do movimento, ou respiração vital, que ele comunica, ou mesmo na epifania do mundo. Em Dia do Mar (1947), «Navegação»:
Muito sensível às implicações culturais da política e do sentimento da liberdade, exprime por vezes a pequenez dos ambientes que a opressão social sufoca. Em Livro Sexto (1962), «Exílio»:
Em Eugénio de Andrade (n. 1923), a poesia dos elementos é também poderosa, mas quase sempre reportada ao amor - da natureza, dos seres e do corpo. Muito sensual e literária, plástica e musical, a sua poesia concebe-se como reelaboração da palavra até um limite de despojamento que parte do mundo (agudamente percebido) para reencontrar nele o ser eleito e, em última análise, a solidão como reduto essencial. «As palavras interditas» (1951), poema de culto para várias gerações:
Eugénio tem a faculdade de articular o circunstancial com o absoluto, de perceber num ambiente concreto a voz de comunicação que o levará à inscrição poética, à transfiguração modelar, numa expressão límpida e pura muito própria. Em Memória Doutro Rio (1978), «Com a manhã»:
António Ramos Rosa (n. 1924) intelectualiza (não só nos seus inúmeros livros de poesia, mas também em ensaios sobre a criação literária e de interpretação poética) a articulação entre os elementos naturais e a cultura, mas mantém a vibração inteira do apelo pela expressão livre do homem e pela sua sagração no labor da palavra. Em Viagem através Duma Nebulosa (1960), ficou célebre este poema:
não posso adiar o coração Posteriormente, a austeridade de expressão apurou-se na sua poesia, extremamente reduzida no plano da sintaxe, tanto quanto luxuriante nas insistências vocabulares e numa inexaurível irradiação semântica, quase sempre em torno da relação amorosa e da relação com a escrita. Em O Incerto Exacto (1982): O desejo
A surpresa Resíduos só ou
a passagem dos sinais Na ficção, Agustina Bessa-Luís (1922) afirmou-se com A Sibila (1954), que cria um modo muito próprio de narração no romance, utilizando constantes derivações em relação ao discurso romanesco central, mas escapando à tendência abstractivante que daí resulta, através de um regionalismo radicalizado em atitudes psicológicas peculiares e de um estilo centrado na subjectividade dos juízos narrativos.
Também pela qualidade ficcional do tempo interior se destaca Maria Judite de Carvalho [1921-1998], esplendorosa revelação nos contos de Tanta Gente, Mariana!,1959, ou na novela romanceada As Palavras Poupadas, 1961, onde emergem personagens de fundura psicológica matizada de finas implicações sociais, patentes em recortes de miúdos gestos ou de imperceptíveis atitudes e julgamentos:
As Palavras Poupadas Decorre desta concepção narrativa uma atenção ao desfiar do tempo quotidiano e às personagens incaracterísticas da circunstância comum que levam a autora à prática da crónica (Seta Despedida, 1994) e à atenção ao fragmentário que pode concretizar-se no conto (Flores ao Telefone, 1968). Urbano Tavares Rodrigues (1923) escreve regularmente desde os anos cinquenta, durante os quais se revelou como contista talentoso (Uma Pedrada no Charco, 1958) e como romancista receptivo ao estado da sociedade contemporânea e à evolução da escrita literária (ex. Bastardos do Sol, 1959, e A Hora da Incerteza, 1995). O amor, a intervenção social e política, a cidade de Lisboa e a região do Alentejo são os seus temas dominantes, cuja natureza e circunstância persegue com insistência e insatisfação:
Balada da Praia dos Cães Mais recentemente, Alexandra Alpha,
1987, e De Profundis - Valsa lenta, 1997 dão conta de um insanável
gosto de ficcionar a realidade mais próxima e comum no que ela, através
da percepção do ficcionista, pode revelar de inverosímil, excepcional
e inacessível ao olhar humano. José Saramago (1922), embora só comece a publicar muito mais tarde, em poesia, crónica e conto, só com os romances Levantado do Chão, 1980, e Memorial do Convento, 1982, atinge uma popularidade que não deixa de crescer, no plano nacional e internacional. Ficcionaliza momentos particulares da história e da cultura de Portugal (O Ano da Morte de Ricardo Reis, 1944, História do Cerco de Lisboa, 1989) ou entrevê períodos de distopia ucrónica (Jangada de Pedra, 1986) e inlocalizável (Ensaio sobre a Cegueira, 1995, Todos os Nomes, 1997) que dão conta de uma reversão do homem ao seu confronto necessário, e nem sempre afortunado, com a comunidade, numa escrita particularíssima que põe em relevo uma frase longa e progressivamente elaborada por uma instância autoral que emerge e não se demite do seu papel de seleccionar e de julgar, assim fundamentando a ideia da criação literária.
Maria Velho da Costa (1938), revelação romanesca fulgurante com Maina Mendes, 1969, centrado na figura feminina que assume a ancestralidade, a rebeldia, o prazer, a criação e a dor como lugares de afirmação do ser, prolonga esta temática em Casas Pardas, 1977, que evidencia o seu modo poliédrico de compôr textos em registos diferenciados de discurso, porém de orgânica composicional sempre segura e coesa, e veiculando uma pungência de sensibilidade que confere ainda mais acutilância ao seu rigor formal (igualmente afirmado posteriormente em Missa in Albis, 1988, ou Dores, 1995).
António Lobo Antunes (1942) foi a grande revelação do final da década de oitenta, com dois romances de grande êxito: Memória de Elefante e Os Cus de Judas, que traçam, numa escrita desenvolta e de prodigiosos efeitos metafóricos, uma visão deceptiva da guerra colonial e da geração que de forma contrafeita lhe deu corpo. De produção romanesca regular a partir de então, tem alcançado grande projecção internacional e mantém uma aguda consciência crítica do ambiente contemporâneo e da memória nacional do passado recente, com Auto dos Danados, 1985, ou Manual dos Inquisidores, 1996, ou mesmo do passado português mais glorioso, em gesto simultâneo de homenagem e de libelo acusatório e dolorido (As Naus, 1988).
Mário Cláudio (1941), firmando-se de início como poeta e cultivando vários géneros literários, é sobretudo conhecido como ficcionista desde a publicação de Um Verão Assim, 1974, reafirmando-se com Damascena, 1983, e sendo reconhecido como um dos grandes vultos da ficção portuguesa contemporânea a partir da sua Trilogia da Mão (com volumes sobre Amadeo Souza-Cardoso, Guilhermina Suggia e Rosa Ramalho). O pendor para as formas literárias de reconstituição, aliando a capacidade de evocação de ambientes e figuras a uma muito pessoal subjectividade de deformação criativa, acentua-se em muitas das suas obras posteriores, como A Quinta das Virtudes, 1990, ou As Batalhas do Caia, 1995.
Maria Gabriela Llansol (1931-2008) é um caso ímpar na ficção contemporânea, de jorrante, inesperada e original criatividade. De estilo muito próprio, a sua forte personalidade afirmou-se desde 1957, com as narrativas de Os Pregos na Erva, consolidando-se com O Livro das Comunidades, 1978, e com todas as suas obras posteriores, de que poderemos salientar A Restante Vida, 1978, e Um Beijo Dado mais tarde, 1990, e Lisboaleipzig, 1994 e 1995. Aliando a subjectividade enunciativa a um forte pendor mítico de implicação lírica, que funda numa visão da vida e do mundo de tipo religioso herético, sensualista e naturalista, a sua ficção caracteriza-se por uma hibridez de registos e de convocação, temporal e espacial de entidades, que no entanto assume uma coesão que lhe é dada por uma marca discursiva persistente e inconfundível.
Mário de Carvalho (1944) e Luísa Costa Gomes (1954), embora de idades distanciadas, são duas personalidades literárias afirmadas durante os anos oitenta mas confiimadas mais ou menos pelos finais da década, o primeiro com A Paixão do Conde de Fróis, 1986, e a segunda com O Pequeno Mundo, de 1988. Ligado às reconstituições histórico-paródicas, Mário de Carvalho produziu uma obra de teor complexo com o seu recente Um Deus Passeando na Brisa da tarde, 1994, romance sobre os alvores e implicações do cristianismo e possibilidade da sua releitura actual, e Luísa Costa Gomes deu-nos, em Olhos Verdes, 1994, uma singular obra de simulação e crítica da publicidade e das solicitações mediáticas. Praticando ambos uma escrita de recorte sintáctico clássico, e assumindo uma temática colhida no comum ou mesmo no vulgar, salientam-se pelo modo como lhe incutem cambiantes inesperados e sentidos de intensa acutilância reflexiva e crítica.
Muitos outros romancistas e poetas
enriquecem a nossa literatura e tornam difícil a sua sinopse. Os
contemporâneos são isso mesmo: o excesso em relação ao olhar do crítico,
o transbordar da vida e da sua continuidade inesgotável em relação ao
crivo do historiador. São todos estes, aliás, aqueles de que não chegámos a falar e os que nem sequer nomeámos, que dão sentido ao que aqui se escreveu, para que fique incompleto, e fazer sentir o quanto a literatura é viva e desmedida, porque ela é antes de mais leitura e tempo, e não fixidez, e não cabe afinal em nenhuma página: |
Vasco Graça Moura, Concerto Campestre, 1993
Egito Gonçalves, E no entanto Move-se, 1995
Fiama Hasse Pais Brandão, Epístolas e Memorandos, 1996
Joaquim Manuel Magalhães, António Palolo, 1978 |
Luís Filipe Castro Mendes, Modos de Música, 1996 |
Nuno Júdice, O Movimento do Mundo, 1996 |
Com os gravetos encalhados o vento desenha na parede o gráfico do teu sopro Com as mãos perdidas desfazes a imagem à esperaque a parede se abra Será a última parede do labirinto? Manuel
Gusmão, Mapas. O Assombro a Sombra, 1996 |
Teolinda Gersão, Os Guarda-Chuvas Cintilantes, 1984 |