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Literatura
de viagens
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A literatura portuguesa de viagens radica na actividade dos descobrimentos marítimos e na necessidade pragmática de registar rotas, condições atmosféricas, acidentes da costa e todos os elementos que pudessem facilitar a repetição e prosseguimento dos percursos entretanto efectuados.
Assim, os roteiros e os diários de bordo, documentos técnicos para orientação náutica, são os antecedentes desta literatura, que, no entanto, começa já nesses textos a emergir em comentários que alargam a pura notação descritiva, em apontamentos de pitoresco, em descrições surpreendidas ou em segmentos narrativos que dão conta de certo empenho na relação entre o sujeito perceptivo e o mundo que lhe vai sendo revelado.
Livro das Armadas: Nau da Carreira da Índia |
Estão neste caso, no séc. XVI, o Esmeraldo de Situ Orbis, de Duarte
Pacheco Pereira, e o Roteiro do Mar Roxo, de D. João de Castro;
mas a primeira obra de interesse decisivo, e importante, é, neste capítulo,
o Roteiro da Primeira Viagem de Vasco da Gama, atribuído a Álvaro
Velho, que permanece como um dos textos fundamentais de toda a literatura de
viagens, seguido da Carta a D. Manuel sobre o Descobrimento do Brasil,
de Pero Vaz de Caminha.
Na sequência destas obras, ou, talvez melhor, na sequência da regularidade e
multiplicação das viagens (dado que a sua divulgação era restrita e, em
muitos casos, como parece ter acontecido com o texto de Caminha,
se tornava confidencial pela política de sigilo dos descobrimentos), aparecem
autênticas relações de itinerários e percursos, por mar ou por terra, mas
matricialmente desencadeados pelas viagens ultramarinas, que aliam por vezes o
interesse documental a procedimentos narrativos que adquirem, sobretudo para o
leitor de hoje, efeitos de ordem literária. São disso exemplo, numa produção
que na cultura portuguesa é vastíssima, a Verdadeira Informação do
Preste João das Índias (1540), do Pe. Francisco Álvares, o Tratado
das Cousas da China (1570), de Frei Gaspar da Cruz, o Itinerário
da Terra Santa (1593), de Frei Pantaleão de Aveiro, a Etiópia
Oriental (1609), de Frei João dos Santos, ou o Itinerário da
Índia por Terra (1611), de Frei Gaspar de São Bernardino.
Por outro lado, os escritores «canónicos» (escrevendo com uma intenção
determinadamente literária) centraram muitas das suas obras na problemática da
viagem dos descobrimentos, como é o caso de Gil Vicente
nomeadamente no Auto da Índia e, sobretudo, de Luís
de Camões que dela faz a trama fundamental em Os Lusíadas.
Também os cronistas não podem deixar de reelaborar essa matéria, por vezes em
páginas que são das mais importantes, mesmo sob o ponto de vista estético,
deste capítulo: Gomes Eanes de Zurara na Crónica da Guiné, João
de Barros na Ásia.
Caso particular desta literatura é a proliferação que, durante a segunda
metade do séc. XVI, e até mais tarde, conhece um género específico das
nossas letras, o do relato de naufrágios (constituído por uma narrativa
específica e exclusiva de naus que naufragam, com descrição pormenorizada das
reacções humanas a que o naufrágio dá lugar, e do esforço trágico, por
vezes baldado, pela sobrevivência); o mais antigo que se conhece, de 1554, é o
do Galeão Grande São João, conhecido por Naufrágio de Sepúlveda,
de autor anónimo; outros, porém, merecem beneficiar igualmente da atenção da
análise literária, pela raríssima capacidade de escrita do patético, pela
descrição paralela do movimento físico e psicológico, pela aliança de uma
crença inabalável na missão militar e religiosa do espírito de conquista com
um pendor pessimista e desenganado que neles figuram a contra-epopeia lusíada: Relação
do Naufrágio da Nau Santiago, de Manuel Godinho Cardoso, Relação do
Naufrágio da Nau São Bento, de Manuel de Mesquita Perestrelo, Relação
do Naufrágio da Nau Conceição, de Manuel Rangel. Publicados em folhetos
avulsos, são reunidos no séc. XVIII por Bernardo Gomes de Brito na História
Trágico-Marítima, em dois volumes (1735-36).
Em toda esta literatura, porém, avulta uma obra excepcional, a Peregrinação
de Fernão Mendes Pinto, publicada em 1614, mas escrita antes de 1580.
E será importante não esquecer a fecundidade com que esta literatura tocou a
posterior produção portuguesa, quer na consagração de «topoi» diversos
(como no caso do «romance marítimo», iniciado entre nós por Francisco
Maria Bordalo, com Eugénio, de 1846, e bastante cultivado na
segunda metade do século XIX), quer em desenvolvimentos temáticos que ocupam
os vários géneros, quer ainda em particularizações que têm a ver com
escolhas individuais de autores, mas também com períodos específicos da
cultura, ou de homenagem ou de deploração da época dos descobrimentos, em
viagens de exploradores oitocentistas ou de escritores de todas as épocas, em
reescritas de consonância ideológica (Afonso Lopes Vieira, Onde a
Terra se Acaba e o Mar Começa, 1940), de evocação nostálgica (Sophia
de Mello Breyner Andresen, Navegações, 1988) ou de intenção
paródica (António Lobo Antunes, As
Naus, 1988).
© Instituto Camões, 2001