| Número 11 | Abril 2007 |
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Entrevista com Isabel Feijó, coordenadora de projecto-piloto em Timor-Leste
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Porto de Díli. Foto por J. Patrick Fischer.
Porto de Díli. Foto por J. Patrick Fischer.

Com as recentes notícias na imprensa portuguesa sobre o julgamento de Rogério Lobato, ex-Ministro do Interior timorense, presidido por um magistrado lusófono, O Língua foi investigar o regime linguístico nos tribunais daquele país e entrevistou a intérprete de conferência e formadora, Isabel Feijó, sobre a sua experiência como coordenadora de um projecto-piloto em Timor-Leste que visava formar tradutores e intérpretes para o sector da justiça.


Isabel, quando começou a sua actividade profissional?

A minha actividade tem duas fases distintas, grosso modo. Comecei a trabalhar como intérprete de conferência em 1985, ou seja, imediatamente antes da adesão de Portugal às Comunidades Europeias, numa altura em que, de repente, houve uma necessidade enorme de intérpretes. Como não havia suficientes, foi necessário inventá-los. E eu fui inventada, tendo começado por trabalhar com intérpretes mais experientes, para logo a seguir ser lançada às feras sem rede. Tinha formação em tradução e já alguma experiência nessa área mas não tinha, até porque não havia, qualquer formação em interpretação. Penso que nos primeiros tempos não tinha muita noção do que estava a fazer. Depois, à medida que fui ganhando experiência comecei também a aperceber-me das dificuldades que tinha e de que era fundamental conseguir melhorar a prestação. Quando, em 94, abriu finalmente o 1º curso de pós-graduação em interpretação de conferência na Universidade do Minho, agarrei essa oportunidade para colmatar as lacunas na minha preparação. Por isso digo que há duas fases na minha vida profissional de intérprete, o antes e o depois da formação formal. Depois de concluir o curso, prestei provas e fui aprovada como freelance no Parlamento Europeu. Mais tarde, quando a Comissão Europeia começou a chamar intérpretes de Portugal, fui também integrada nas listas da Comissão Europeia. Penso que o facto de ter feito a pós-graduação me abriu as portas das instituições europeias.


Quando começou a sua actividade de formadora?

Comecei a participar na formação de intérpretes e em júris de exame no ano lectivo de 1999-2000 nos dois cursos de pós-graduação que existiam na altura. Foi só depois de ter começado a colaborar na formação que percebi até que ponto essa actividade me interessava. Tal como na interpretação, também na formação depressa compreendi que me faltava bagagem e resolvi ir aprender um pouco mais, inscrevendo-me no que penso ser o único curso de formação de formadores de intérpretes, organizado pela Escola de Tradutores e Intérpretes da Universidade de Genebra, uma das mais prestigiadas escolas de tradução e interpretação no mundo.


Em que período esteve em Timor?

Estive primeiro em Timor-Leste durante um mês, no final de 2003, integrada numa missão do PNUD (Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento) com o objectivo de avaliar as necessidades de formação de tradutores e de intérpretes, identificar os sectores prioritários para a intervenção e esboçar um projecto de formação. Voltei em finais de Janeiro para coordenar o chamado “projecto-piloto para o desenvolvimento das capacidades dos tradutores e dos intérpretes nacionais para o sector da justiça em Timor-Leste”. Com um contrato inicial de 6 meses, acabei por ficar quase dois anos, até Dezembro de 2005.


Descreva-nos em traços gerais a sua missão em Timor.

O objectivo primeiro era constituir um núcleo de tradutores e de intérpretes qualificados para o sector da justiça, sendo claro para todos os intervenientes que isso não é possível sem formação adequada.

Desde a primeira entrada das Nações Unidas em Timor-Leste, ainda durante a ocupação indonésia, para preparar o referendo e depois, nas sucessivas missões, foram contratadas muitas dezenas de “tradutores/intérpretes”, na verdade qualquer timorense que vagamente soubesse português ou inglês era contratado, sem que nunca tivesse havido cuidado em dar alguma formação a essas pessoas.

Penso que vale a pena fazer um parêntesis para explicar a situação linguística de Timor-Leste que é fruto da sua história de colónia portuguesa, passando pela ocupação indonésia, pela presença das organizações internacionais até chegar à independência. Há em Timor-Leste 16 línguas nacionais, uma das quais, o tétum, foi inicialmente desenvolvida como língua de comunicação com a população, pelos colonos e missionários, que foram tomando de empréstimo ao português as palavras, os conceitos ou as expressões que lhe faltava, a ponto de hoje, segundo o Instituto Nacional de Linguística, cerca de dois terços do seu léxico ser de origem portuguesa. Esta língua, tétum-Díli ou tétum-praça, tornou-se numa quase língua-franca em Timor-Leste, embora em algumas regiões não seja totalmente dominada. Quanto ao português, durante a administração colonial era a única língua reconhecida, mas apenas uma pequena parte da população urbana e escolarizada a dominava. Apesar da sua fraca implantação, a língua portuguesa está enraizada na identidade timorense e foi a língua da resistência tanto no interior como no exterior. A ocupação indonésia impôs o malaio-indonésio, tendo mesmo proibido formalmente o uso do português. A forte presença da comunidade internacional desde 1999, a todos os níveis da sociedade e da administração, implicou uma presença igualmente forte do inglês.

Neste contexto, a Constituição consagra o tétum e o português como as línguas oficiais da República Democrática de Timor-Leste e, nas disposições transitórias, reconhece o malaio-indonésio e o inglês como línguas de trabalho “enquanto tal for necessário”.

Esta opção pelo bilinguismo, incluindo uma língua nacional com pouca tradição escrita e uma língua que embora faça parte da identidade nacional não é dominada pela esmagadora maioria da população, tem custos elevados que vão da necessidade de padronizar e desenvolver o tétum, aos esforços para reintroduzir o português. Significa também que será sempre necessário um exército de tradutores e pelo menos um batalhão de intérpretes.

Fechado o parêntesis, a situação de que falava há pouco da contratação de tradutores/intérpretes sem distinção de funções, sem enquadramento, sem formação, não estava a contribuir para construir nada daquilo que reconhecidamente era necessário. As autoridades timorenses estavam conscientes de que era preciso tratar seriamente a questão das línguas e a formação de mediadores linguísticos. O PNUD aceitou o desafio e avançou com o projecto-piloto. Foi definida como área prioritária o sector da justiça incluindo a produção legislativa.

É preciso também saber que Timor-Leste estava, e está, dependente de assessores estrangeiros para a elaboração das leis, que são redigidas maioritariamente em português, marginalmente em inglês; os magistrados eram todos ou quase todos estrangeiros, os códigos em vigor eram os indonésios.

A missão que me era atribuída ficou clara logo numa das primeiras reuniões quando a Ministra da Administração Estatal disse mais ou menos isto: “Não posso ter leis que o meu povo não possa ler. As leis têm de ser traduzidas para tétum. Para isso o tétum tem de ser desenvolvido e padronizado. Nos tribunais, a população e os magistrados têm de se poder compreender. E não quero paternalismo, quero qualidade.”

A fasquia estava elevada, mas o desafio era extremamente aliciante. Um país a ser construído do zero, com dirigentes determinados a fazer as coisas bem feitas, e ser-me dada a oportunidade de contribuir.

No papel, a missão estava também clara: organizar cursos de formação de tradutores e de intérpretes com o objectivo de criar um núcleo de tradução e interpretação para as instituições da justiça; contribuir para o desenvolvimento do tétum como língua plenamente funcional, incluindo a elaboração de glossários; contribuir para a criação de um embrião de curso superior em tradução e interpretação na Universidade pública.


Quais foram as maiores dificuldades práticas que enfrentou para desenvolver o projecto?

Tive tantas dificuldades, que não sei se consigo identificar as maiores. A primeira dificuldade foi pessoal. Quando me candidatei ao lugar, pensava que ia coordenar um curso de formação de intérpretes e vi-me a coordenar um projecto muito maior onde a formação de intérpretes era apenas uma das componentes. Para lá chegar havia muita selva para desbravar. E das outras componentes eu nada sabia: língua tétum, formação de tradutores, formação específica de tradutores ou de intérpretes para um sector específico e extremamente sensível como é a tradução jurídica e a interpretação de tribunal. E pior ainda, não fazia a mínima ideia do que significava coordenar um projecto no PNUD. E significava que tinha de fazer tudo: encontrar instalações, redigir protocolos, procurar financiamentos, controlar obras, constituir equipa, tratar de todas as burocracias inerentes à contratação de colaboradores e consultores, etc, etc, etc...

Depois tive de aprender o que significou a ocupação indonésia e aquilo que destruiu. Não foi só a destruição quase total das infra-estruturas, das casas, das colheitas, foi também uma coisa muito mais funda, de destruição pessoal. Embora houvesse escolas por todo o lado, o ensino era péssimo. Durante os 24 anos de ocupação o acesso a posições de chefia, ou mesmo intermédias estava vedado aos timorenses, podiam ter trabalho, mas não tinham responsabilidades. Assim, para poder construir alguma coisa é preciso começar por criar disciplina, hábitos de trabalho, responsabilizar as pessoas, respeitá-las.

Foi um trabalho fascinante, porque tal como na construção do país, tudo tinha que ser feito desde o primeiro passo, não se podiam saltar etapas. E tudo demora muito mais tempo do que as expectativas mais pessimistas. Dou um exemplo, as instalações: o reitor da universidade disponibilizou salas mas era preciso fazer obras e para isso era preciso dinheiro. A cooperação americana pagou as obras. As salas foram arranjadas, ar condicionado montado, electricidade nova, instalação de internet, um quadro eléctrico próprio. A Nova Zelândia subsidiou a compra de computadores e outro equipamento. A Dinamarca ofereceu equipamento de interpretação simultânea, construímos uma cabine. Tínhamos tudo, salas de aulas, salas de estudo com computadores ligados à internet, uma pequena biblioteca com dicionários e material de consulta oferecidos por Portugal e pelo Reino Unido. Tudo isto demorou meses mas finalmente estava quase pronto. Sentíamo-nos orgulhosos e ansiosos por poder começar a trabalhar nas novas instalações. Quando só faltava ligar o quadro eléctrico, a companhia de electricidade não permitiu uma linha independente, como tínhamos previsto, e foi preciso fazer a ligação ao quadro geral da universidade. Imediatamente rebentaram não sei quantas máquinas. Foi-se ver o que tinha acontecido. O quadro eléctrico geral da universidade estava dimensionado para ter umas lâmpadas e umas ventoinhas e agora havia aparelhos de ar condicionado, computadores, máquinas de fotocópias... O risco de curto-circuito e de incêndio era enorme. Dir-se-ia que a instalação eléctrica de universidade ainda era do tempo dos portugueses e tinha sido a única coisa a resistir em Díli à destruição de 99. Foram semanas para resolver o assunto. Não só era preciso dinheiro, como era preciso que a companhia de electricidade tivesse tempo para fazer a obra. Nem uma coisa nem outra se consegue do pé para a mão.

As dificuldades foram sendo ultrapassadas, primeiro, devido ao apoio que sempre tivemos das autoridades e das instituições timorenses e de algumas pessoas no PNUD e depois devido ao empenhamento e dedicação dos membros da equipa, nomeadamente os formadores luso-timorenses para a tradução e a interpretação de tétum, verdadeiras pontes entre os “malaes” (nós os estrangeiros) e a cultura local. Para além disso, o apoio do Instituto Nacional de Linguística e, particularmente, do Professor Geoffrey Hull, foi absolutamente fundamental. O trabalho do INL, como centro de estudos universitário, seria excelente em qualquer parte do mundo. Em Timor-Leste, haver pessoas e um trabalho com aquela qualidade é um verdadeiro milagre.


Já havia uma tradição de tradução e interpretação?

Quase todos os timorenses falam pelo menos duas ou três línguas. Como disse, há em Timor-Leste 16 línguas nacionais, uma delas, o tétum, tornou-se língua veicular, mas é língua materna apenas das pessoas nascidas em Díli. A maior parte fala pelo menos mais uma língua nacional. Quase todos falam malaio-indonésio. No nosso grupo de 24 formandos, só um falava apenas tétum entre as línguas nacionais.

Hoje em dia, um jovem que viva em Díli fala tétum com os amigos, a família pode ser de Lospalos e em casa falar-se fataluco, estudou em malaio-indonésio e já fala alguma coisa de português. Seguramente está habituado a ajudar a família a comunicar com as instituições públicas. É um intérprete nato. Precisa de ferramentas para transformar as suas qualidades inatas em qualificação profissional.

Na tradução escrita tudo o que foi feito até 99 deve-se basicamente à igreja que traduziu para tétum toda a liturgia quando os indonésios proibiram o uso do português. Foram também os padres que nos anos 30 fizeram um primeiro esboço de fixação do tétum escrito, mas só depois de 1999, o INL desenvolveu um trabalho científico de padronização da ortografia e começou a publicar prontuários, gramáticas, dicionários e manuais de estudo.


E uma tradição formal?

Muito menos. A administração colonial só aceitava o português e não passava pela cabeça de ninguém traduzir o que quer que fosse para línguas nacionais ou aceitar que as pessoas falassem, e muito menos escrevessem, qualquer outra língua. Os indonésios fizeram exactamente a mesma coisa com a língua indonésia. As línguas locais eram consideradas línguas de segunda. De resto é sintomático quando se pergunta a um timorense que línguas fala, ninguém inclui o tétum ou as outras línguas nacionais. Diziam-me com admiração: “a senhora fala 3 línguas”, mas afinal todos falavam muitas mais do que eu.

Acabada a ocupação, reconheceu-se a necessidade de ter uma língua nacional como língua oficial mas também a necessidade ter uma outra língua oficial para permitir os contactos com o exterior, e o português é a escolha natural.

A nível formal, a necessidade de tradutores e de intérpretes só surge após a libertação, quando se reconhecem duas línguas oficiais e ainda se aceitam mais duas línguas de trabalho. E foi por isso que o governo timorense deu tanta importância a este projecto.


Qual era o nível de português dos candidatos a tradutores e intérpretes?

O nível dos candidatos foi testado e, em termos gerais, estava muito abaixo das nossas expectativas. As condições de admissão ao teste escrito eram a detenção de um diploma universitário ou o mínimo de 3 anos de experiência como tradutor ou intérprete. O objectivo era ter 20 formandos no curso de tradução e 16 no de interpretação. Testámos sessenta e tal candidatos e só conseguimos, com grande esforço e muita flexibilidade nos critérios, recrutar 24: 16 para o curso de tradução e 8 para o de interpretação. Mas destes, apenas 11 sabiam português, os restantes fizeram a formação com inglês. Apesar de tudo, em termos globais, o nível de conhecimento do português era bem mais elevado do que o nível de inglês. Os candidatos que sabiam português, todos com mais de 40 anos, tinham pelo menos feito a escola primária e talvez o liceu ainda no tempo da colónia, ou seja, há mais de 30 anos. Estava enferrujado depois de 24 anos sem o poder praticar, sem livros, sem quase o ouvir, mas agora com uma grande vontade de o recuperar. Os candidatos com inglês tinham aprendido no liceu ou na universidade dentro do sistema de ensino indonésio, ou então na tarimba com os cooperantes internacionais e estava apenas no limite do admissível. Alguns nem isso, e no final não foram aprovados.

Nestas condições, diria que o nível de compreensão de português é bastante razoável e o domínio do português activo mais deficitário. As línguas da região têm uma estrutura diferente da portuguesa. Conjugar verbos, por exemplo, é a dor de cabeça de todos os timorenses que não aprenderam português em criança. Por outro lado, mesmo que falem pouco, falam praticamente sem sotaque até porque há tantas palavras portuguesas no seu léxico quotidiano.


As funções dos formandos serão a tradução de documentos entre o tétum e o português e a interpretação em tribunal?

Entre o tétum e o português e entre o tétum e o inglês e ainda com indonésio passivo.

Os alunos aprovados, 7 intérpretes e 11 tradutores foram integrados no Serviço de Tradução e Interpretação para a Justiça (STIJ). Durante o primeiro ano, este serviço foi apoiado no âmbito do programa global de apoio à justiça do PNUD, em seguida deveria ser totalmente assumido pelo Estado timorense. O STIJ presta serviço às instituições da Justiça timorenses, ou seja, Procuradoria-Geral, tribunais, Defensória Pública e Ministério da Justiça. Houve um acordo entre as instituições sobre a repartição do trabalho e a definição de prioridades para tentar dar a melhor resposta possível e evitar conflitos de interesses porque o trabalho é imenso e o número de tradutores e de intérpretes muito insuficiente.

Na interpretação, por exemplo, havia, quando vim embora, 8 procuradores lusófonos. Todos precisavam de um intérprete para poderem atender a população, ouvir testemunhas, interrogar suspeitos. A mesma coisa se passava na defensória. Os tribunais eram 4, em Díli, Baucau, Suai e Oecusse, sem contar com o Tribunal de Recurso. Em relação à tradução, só na procuradoria havia mais de 3.000 processos em atraso e uma das razões do atraso era estarem redigidos em tétum e ninguém saber o que lá estava escrito. Mesmo que fossem para arquivar, era preciso poder lê-los. Uma parte foi feita com intérpretes a fazer tradução à vista, outra ia para traduzir no serviço.

A formação tinha-se concentrado na tradução e interpretação para tétum, a partir de português ou de inglês, mas a realidade encontrada foi outra. A principal necessidade era a tradução de tétum para português e alguma coisa ainda de indonésio. Isto veio reforçar a necessidade indispensável de manter um revisor no serviço. E permitiu garantir o contrato do formador luso-timorense que não deixava sair nada do serviço sem passar pelo crivo apertado da sua revisão.

Quanto à interpretação, era fundamental trabalhar nos dois sentidos. Para além disso, descobrimos o valor acrescentado de dominar outras línguas nacionais. Um dos intérpretes, por exemplo é de Oecusse, logo, falante nativo de baiqueno. Tornou-se no membro da equipa mais requisitado, passando a vida no helicóptero a caminho do enclave. O que veio provar a nossa convicção de que se as técnicas de interpretação estão dominadas se podem aplicar a qualquer par de línguas.


Viu algum impacto concreto da formação de tradutores e intérpretes no funcionamento do sistema de justiça?

Estive apenas três meses em Timor desde que o serviço começou a funcionar, mas a reacção dos clientes foi muito positiva. Penso que tinham confiança no trabalho entregue e nos prazos que eram normalmente cumpridos. Os intérpretes estavam a horas nos locais certos, disciplinados e com uma atitude profissional.

O trabalho para traduzir chegava ao serviço, era-lhe atribuído um nível de prioridade e ao cliente dado um prazo de entrega. As peças de um processo eram depois distribuídas pelos tradutores em função das capacidades de cada um para procurar maximizar os recursos escassos e minimizar os erros. E nada podia sair sem ser revisto e corrigido.

Na interpretação tentávamos que as instituições clientes informassem antes do fim da semana as necessidades mais urgentes da semana seguinte e os intérpretes tinham um quadro de distribuição semanal que era cumprido.

Tivemos imensa sorte com as pessoas que formámos, pessoas com uma dedicação muito para além do exigível. Nestes meses desde Maio, em que tudo desmoronou em Díli, alguns tradutores e intérpretes fugiram da cidade, um ou dois não voltaram, mas os que ficaram, mesmo os que estavam a viver em tendas nos campos de refugiados, em condições deploráveis, poucas vezes deixaram de se apresentar ao serviço.


A formação continua?

Sendo que era um projecto-piloto, o nome indica que deveria ter continuação. Para isso era necessário o PNUD apresentar um projecto, o governo aprovar e encontrar financiamento junto dos doadores. Parte disso já está feito: o PNUD elaborou um programa global de reforço das capacidades da administração pública que inclui um capítulo dedicado à formação de tradutores e intérpretes, desta vez previsto para três anos e pelo menos duas edições de cursos de 10 meses no mínimo; mesmo em plena crise, o governo aprovou o programa. Agora é preciso encontrar financiamento.

Na situação actual, com eleições presidenciais e legislativas à porta, com a crise e a insegurança instaladas, a formação de tradutores e de intérpretes não está, obviamente, nas prioridades de ninguém.

Os responsáveis governamentais que conheci estão conscientes do custo de ter um país bilingue, de que não há verdadeira democracia sem o acesso universal à justiça e à administração e que isso obriga a ter tradutores e intérpretes competentes. Mas não sei o que pensarão os governantes que vão sair das próximas eleições.

Espero sinceramente que haja vontade política, e financiamento, para relançar o projecto, integrando as lições aprendidas no projecto-piloto, e garantir a sua sustentabilidade através da criação a prazo de um curso superior em tradução e interpretação na Universidade Nacional Timor Lorosa’e.


A nível pessoal, quais foram as lições que tirou da sua experiência em Timor?

Ter vivido dois anos num país a nascer e poder contribuir para isso foi uma experiência absolutamente extraordinária. Tive um sentimento muito forte de que as autoridades queriam fazer as coisas bem feitas, aprendendo com os erros de outros países que acederam à independência. Essa vontade é visível na sua aposta na formação de tradutores e intérpretes. Foi também uma grande lição de humildade. Vivemos no conforto da Europa e achamo-nos muitas vezes donos da verdade. Porém, quando estamos noutros contextos, temos que aprender a responder àquilo que nos é pedido e isso obriga a rever muitas coisas, pôr em causa muitas certezas. Não podemos estar ali para mostrar a nossa sabedoria mas para ajudar as pessoas reais, com problemas reais e creio que muitos erros são cometidos precisamente porque esquecemos que temos de nos adaptar a realidades diferentes da nossa.

Tive que pensar em problemas que nunca me tinham surgido aqui na Europa, e por isso, foi extremamente enriquecedor para mim como formadora.

Tive também de fazer coisas que nunca tinha feito, estava num país desconhecido e, embora a cultura seja diferente, há mais pontos de contacto do que imaginamos. Tive uma sorte imensa de trabalhar com pessoas fora de série que me ensinaram muito. Só lamento não ter conseguido aprender mais de meia dúzia de palavras em tétum.


O que teria feito de outra forma?

Embora não ache que tenha cometido erros graves, há várias coisas que a repetir a experiência, faria de forma diferente. Faltava-me informação sobre a situação que iria encontrar no terreno e penso que houve um desfasamento entre o tipo de formação que tentámos fazer e a realidade encontrada e também entre as expectativas e as possibilidades de concretização. Teria sido muito útil trabalhar com os clientes do serviço que os formandos iam prestar, neste caso, os magistrados e os juristas que redigiam a legislação, para procurar adequar necessidades, expectativas e realidade. Penso que os tradutores e os intérpretes devem servir os clientes, mas estes também têm de compreender o que podem exigir, o que não podem, os “como” e os “porquê”.
Um dos dramas é a falta de tempo, o nosso, responsáveis pelo projecto, e também o dos juristas, todos trabalham das oito da manhã às oito da noite.


A língua portuguesa está a ganhar força em Timor?

É uma pergunta muito difícil, porque acho que está a ganhar força mas também
a pode perder a qualquer momento. Tudo depende da vontade política dos governantes.

Actualmente há um grande esforço para reintroduzir a língua que conta com o apoio do governo português, mas mesmo partindo do princípio que esse esforço é continuado, vai demorar ainda pelo menos uma geração até que a língua seja realmente dominada por uma parte significativa da população. Algumas pessoas com mais de quarenta anos ainda falam português e as crianças agora aprendem português na escola primária. Entre uns e outros há uma geração que não sabe português e se sente excluída. Os perigos estão à vista na crise actual.

O português e o tétum estão casados há mais de 400 anos. Para um lusófono é relativamente fácil aprender tétum desde que lhe dedique algum tempo, para os falantes de tétum é relativamente fácil aprender português, sobretudo se tiverem uma educação formal em tétum, coisa que até agora raramente acontecia. Os nossos formandos, tiveram essa formação, aprenderam ao longo de oito meses as regras da gramática e da sintaxe. Aqueles que não sabiam português à partida e decidiram aprender a seguir, atingiram resultados surpreendentes num espaço de tempo muito curto.

O português e o tétum, constituem uma parte importante da identidade nacional timorense, penso que a sobrevivência de Timor-Leste como país independente está ligada à manutenção deste casamento.


Por último, pensa voltar para fazer formação?

Gostaria imenso. Talvez não por um tão período longo, mas gostaria de voltar para me concentrar apenas na formação de intérpretes e, eventualmente, na formação de formadores timorenses.



Para mais informação sobre as línguas de Timor visite o excelente sítio do Instituto Nacional de Linguística:
http://www.asianlang.mq.edu.au/INL/index.html

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© Instituto Camões, 2007