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Número 1: A localização

Língua e localização
Xavier Arderiu i Monnà,
Profissional freelancer e especialista em localização de produtos informáticos


1. Introdução

O modelo económico do qual fazemos parte impõe progressivamente sistemas de produção dirigidos a clientes de diferentes zonas geográficas, com particularidades e necessidades muito diversas. Os processos de internacionalização e de localização linguística incluem-se neste tipo de sistemas de produção; eles pretendem conseguir, com o menor custo possível, que um mesmo produto chegue a utilizadores de diferentes culturas com o máximo de homogeneidade e, ao mesmo tempo, de uma maneira também familiar e próxima.


É importante considerar que as intervenções linguísticas, como uma parte integrada deste processo de produção, são necessárias. Frequentemente, convencemo-nos de que a localização, a tradução técnica, a elaboração de materiais terminológicos, etc., são por si só processos isolados e que se trata simplesmente de traduzir um manual ou os menus de um software, por exemplo, como se estivéssemos a traduzir um livro. Mas não podemos esquecer que estes materiais fazem parte de um produto, e que as empresas que geram este tipo de materiais o entendem assim. Para elas, a tradução dos manuais de uso para diferentes línguas não é mais importante do que a fabricação de uma das peças da máquina ou a programação informática dos arquivos. Se entendermos este conceito, será mais fácil compreendermos o papel da língua em todo o processo de internacionalização e de localização.



2. Língua e localização: aspectos gerais


2.1 O processo de criação de materiais localizáveis: língua e internacionalização


A internacionalização consiste no conjunto de tarefas realizadas durante a criação de um material que posteriormente será traduzido ou localizado para atingir o máximo de neutralidade possível, ou seja, um conjunto de procedimentos que deverão facilitar o trabalho do tradutor ou do localizador, seja qual for a sua cultura ou a sua procedência. Neste processo inicial misturam-se as questões puramente linguísticas e as técnicas:


- Do ponto de vista linguístico, o perfil dos redactores técnicos, isto é, dos profissionais especializados na elaboração dos materiais originais que, no geral, são em inglês ou em alemão e procedem da Europa ou dos Estados Unidos, encontra-se já bem consolidado. Estes profissionais, normalmente com o suporte de aplicativos de linguagem controlada, encarregam-se de gerar um produto linguístico localizável padronizado, seguindo normas de estilo muito concretas e estritas. A sua liberdade e criatividade na elaboração destes materiais vêem-se submetidas a uma série de normas de simplicidade na redacção e de aproveitamento de estruturas já utilizadas em materiais anteriores (memórias de autor).


- Do ponto de vista técnico, tarefas como a compatibilidade com as páginas de códigos ou os caracteres nacionais específicos de cada língua (Unicode) ou a compatibilidade com as diferentes distribuições alfabéticas e os formatos de datas são fundamentais para facilitar a posterior localização dos produtos. Outros aspectos técnicos que facilitam uma posterior intervenção linguística num processo de localização são a separação das partes traduzíveis no código fonte, ou a previsão de espaço adicional para a tradução de línguas com estruturas habitualmente longas, como o alemão.


2.2. O papel do localizador. Tradutor ou técnico?


Esta é uma das eternas perguntas que circulam entre os profissionais que se dedicam à localização, quase ao mesmo nível da conhecida "Qual o melhor programa para a gestão de memórias de tradução?" ou "Quem deveria ser o proprietário das memórias de tradução?". Vamos tratar unicamente da pergunta do título deste item e deixar as outras para futuras discussões ou para artigos de outros colegas.

A divisão de tarefas nos processos de localização acabará por se impor como forma de diminuir custos. As empresas com um volume de facturação importante não podem permitir que os administradores dos projectos façam tarefas de revisão, por exemplo, nem que os técnicos de sistemas traduzam manuais de uso ou façam tarefas de controlo de qualidade. Parece que as universidades finalmente entenderam a necessidade de fazer com que os alunos das faculdades de letras (filologia, tradução, comunicação audiovisual, etc.) tenham conhecimentos que superem o que é puramente o ensino da língua: formação em gestão de projectos, formação em ferramentas de tradução assistida por computador, formação em linguagens de programação. Só desta maneira será possível normalizar o perfil profissional linguístico específico no âmbito da localização e da tradução técnica, que no âmbito internacional da localização se define como técnico especialista linguístico - Language Specialist. As funções deste especialista passam por conhecimentos linguísticos sólidos, mas também por uma formação em tudo o que diz respeito à internacionalização e à maioria de processos que intervêm nas tarefas comuns de uma empresa moderna de serviços linguísticos, da formação em gestão integral de projectos, e até o conhecimento técnico dos fundamentos das diferentes tecnologias da tradução assistida por computador.


2.3. Localização e criatividade


Uma outra preocupação que frequentemente emerge nas discussões entre os tradutores que se dedicam à localização é o problema da suposta falta de criatividade no processo de tradução dos materiais. Tudo parece indicar que os centros responsáveis pela formação, como universidades ou departamentos internos de empresas, deveriam incorporar progressivamente a nova orientação ou a nova especialização dos profissionais nos seus planos de estudos, já que, embora haja aspectos do processo de tradução que sempre requererão uma certa criatividade ou um perfil específico de tradutor (criação de neologismos, pesquisa terminológica), é preciso entender que, como já se mencionou anteriormente, o processo específico de localização faz parte de um sistema de produção muito mais global, no qual se avalia o rendimento económico, a simplicidade e a padronização acima da criatividade. O profissional linguístico que se dedica à localização não deveria abandonar estes objectivos nem tentar trabalhar numa tradução técnica como faria num romance. Isto não deve ser considerado como uma perda de qualidade nem como uma perversão do trabalho do tradutor, mas como uma orientação específica, uma especialização: alguns tradutores especializar-se-ão na tradução de textos literários e outros na tradução de textos técnicos, com as correspondentes vantagens e desvantagens em cada caso.



3. Língua e localização: problemas específicos


A seguir, apresentam-se alguns aspectos linguísticos específicos que se afiguram como problemáticos para os profissionais, quando colaboram em projectos de localização.


3.1. Problemas relacionados com um processo incorrecto de internacionalização


Como já foi assinalado, actualmente, na indústria da localização dá-se destaque à importância de se conseguir uma boa qualidade na origem (materiais originais localizáveis) para minimizar o número de problemas e de erros no produto final. Contudo, grande parte dos problemas que o profissional da localização ainda deve enfrentar tem a ver com a má internacionalização dos produtos:


a) Infelizmente, é comum o localizador encontrar segmentos que na língua de origem são claros, mas que na língua de destino poderiam ser traduzidos de maneiras diversas (os adjectivos ingleses, por exemplo, não têm género específico mas em outras línguas têm género diferenciado). Pode-se questionar a tradução, por exemplo, de um segmento como o seguinte, extraído de um exemplo real do software de um telemóvel:

Sem o contexto, não daria para saber se deve ser traduzido como "vazio" ou "vazia". Também pode acontecer que um segmento deste tipo seja uma variável que apareça depois de um substantivo masculino ou de um substantivo feminino, e com isso a solução seria impossível. É um caso parecido com as variáveis de código, ou seja, os segmentos que incorporam variáveis que não conhecemos e que podem provocar traduções impossíveis:

No primeiro caso, não se sabe se o que deve ser aberto é "o arquivo", "a variável", "a fórmula", "o directório"... No segundo caso, é ainda mais difícil discernir exactamente o que estamos realmente a traduzir.


b) Outro caso de incorrecta internacionalização, que felizmente é cada vez menos comum, consistiria em o primeiro adjectivo ser usado em função de alguma selecção que o utlizador do software faça para se referir a um dos substantivos que aparecem em baixo (palavras entre aspas):


Desta maneira, se traduzirmos "New" como "Novo", teremos frases como "Novo pasta", "Novo rota de acesso", e se traduzirmos "Nova" teremos "Nova arquivo" e "Nova directório".


c) Um terceiro problema de internacionalização incorrecta pode ser encontrado quando falta espaço para traduzir. Esse é um dos problemas que os profissionais dedicados à localização consideram mais negativos, já que frequentemente são obrigados a criar estruturas sem sentido, difíceis de entender. É o caso de algumas aplicações que não permitem mais de dois espaços para traduzir palavras como "OK" (que poderia ser traduzido como "Aceitar", "Bem"). Na mesma linha, há algumas aplicações que permitem um máximo de três caracteres para traduzir palavras como "On" e "Off", e consequentemente o tradutor é obrigado a deixar a palavra sem a traduzir. O problema do espaço surge com muita frequência no caso da tradução de mensagens para telemóvel. Apresentamos a seguir alguns exemplos de traduções que podem ser encontradas ao ligar um Nokia, um Ericsson, um Motorola, etc.:

A limitada capacidade da pequena tela do telemóvel impõe este tipo de tradução. Parece que é preciso trabalhar mais um pouco na redacção do material original com o objectivo de torná-lo mais adaptável.


Estes problemas só podem ser solucionados intervindo no processo de criação do material original. É preciso identificar estas situações no processo de preparação do projecto e tentar pedir uma solução antes de iniciar o trabalho.


3.2 Problemas relacionados com o uso de programas de tradução assistida


O uso de programas de tradução assistida por computador, e mais especificamente o uso de soluções para o armazenamento das memórias de tradução, nem sempre serve de ajuda para os profissionais da localização. Estas soluções são ferramentas orientadas para a produtividade e muitas vezes dá-se o caso de ser o tradutor quem se deve adaptar aos requerimentos da ferramenta, e não o contrário. Apresento agora dois exemplos:


a) A gestão de projectos de localização requer necessariamente o tratamento e o armazenamento correctos dos segmentos que traduzimos e que incorporamos nas memórias de tradução. Do cumprimento deste requisito dependerá uma parte importante do futuro rendimento económico da memória de tradução. Na prática, isto implica, por exemplo, tentar respeitar escrupulosamente a segmentação dos originais. Não devemos tentar unir numa única frase aquilo que no original aparece segmentado em duas ou mais. Será sempre possível mudar as regras de segmentação, mas de forma geral o melhor será permanecermos fiéis ao original. Deveríamos considerar perigoso, pensando em posteriores reaproveitamentos, chegar a soluções como a seguinte:
[Exemplo de regras de segmentação (Arderiu, 2002) ver exemplo]


A frase traduzida não pode ser discutida no âmbito linguístico, mas sim no que diz respeito à gestão do projecto. A próxima vez que encontrarmos noutro documento a frase


The IPEI code may be needed for unblocking the Cordless phone if an incorret PIN code has been entered three times.


o programa de gestão de memórias de tradução dará como opção 100% correcta a frase


já que pode ser preciso para desbloquear o telefone sem fio depois de introduzir três vezes um código PIN incorreto


independentemente de o contexto ou a frase anterior terem mudado ou não. Uma tradução mais neutra, que ao mesmo tempo poderia ser aproveitada para futuros projectos, poderia ser:


É importante anotar o código IPE. Pode precisar do código IPE para desbloquear o telefone sem fio depois de introduzir três vezes um código PIN incorrecto.


Possivelmente esta tradução não satisfará tanto o tradutor quanto a primeira opção, mas no que se refere à gestão de projectos permitirá mais segurança e fiabilidade. O que se perderá com este tipo de traduções será a obrigação de uma maior literalidade na tradução e um maior número de estruturas linguísticas decalcadas da língua de origem.


b) A utilização de programas de tradução assistida para documentos com segmentações irregulares ou quando não dá para consultar o seu formato final, como no caso dos arquivos HTML ou dos arquivos de programas de pós-edição, têm uma problemática particular para os profissionais da localização. Um texto como o seguinte, criado com um programa de pós-edição:

Pode aparecer na tela do tradutor como:

Uma frase como "Call the ringing extension" aparecerá, na maior parte dos programas de tradução assistida utilizados, dividida em dois segmentos, "Call the ringing" e "extension". A problemática é dupla: os dois segmentos independentes dificilmente serão reaproveitados para outros projectos e, no que diz respeito à tradução para uma língua latina, a ordem dos elementos da frase é diferente, os segmentos resultantes podem provocar conflitos numa memória de tradução:

Podemos considerar estes segmentos como não aproveitáveis, e até podemos pensar na possibilidade de não armazenar este tipo de segmentos nas memórias e optar pela tradução directa com o processador de textos.


3.3 O uso da tradução automática: o passo do tradutor para o revisor


Para concluir este artigo, gostaria simplesmente de mencionar a problemática que pode surgir nos processos de localização muito tecnicizados que incorporem a tradução automática como ferramenta de produção, com a posterior revisão e pós-edição dos materiais. Mesmo nos casos de línguas próximas, como na tradução automática entre duas línguas latinas, não é possível incorporar a tradução automática no processo de localização sem uma formação específica dos tradutores profissionais que, neste caso, se tornarão revisores. Diferentes experiências de implantação da tradução automática têm demonstrado que estes processos só funcionam quando se cumprem algumas premissas básicas:


- Influência de futuros tradutores ou de localizadores no processo de redacção dos materiais originais, seja com uma intervenção directa na produção dos materiais ou mediante a assessoria aos redactores técnicos para melhorar a qualidade de origem.


- Trabalho de formação na nova orientação do profissional linguístico; não podemos fazer com que o tradutor ache que o seu trabalho não mudará, quando, de facto, as estruturas linguísticas com as quais passará a trabalhar serão completamente diferentes.


- Aproveitamento do trabalho do tradutor/revisor, seja nas bases de dados terminológicas ou nas memórias de tradução. É preciso conseguir que o tradutor/revisor perceba que o seu trabalho é aproveitado e utilizado em projectos posteriores como primeira opção. As memórias de tradução devem prevalecer face às traduções geradas por um programa de tradução automática.



4. Conclusões


a) É preciso entender os processos de localização como mais um passo no sistema de produção. A tradução técnica ou um projecto de localização de software não podem ser entendidos como um processo independente e isolado.


b) Os perfis profissionais linguísticos, como os especialistas linguísticos ou os redactores técnicos, têm um espaço específico no campo da localização. É preciso fomentar uma correcta situação dos tradutores e dos linguistas neste espaço, das universidades ou dos departamentos de formação das empresas.


c) Os profissionais da localização devem aprender a conviver com um tipo de criação linguística centrada na produção e com uma série de problemas linguísticos específicos, derivados de processos de internacionalização incorrectos, do uso de programas de tradução assistida ou da incorporação de soluções de tradução automática no fluxo de trabalho. Esta nova concepção profissional não deve ser entendida como uma perda de profissionalismo, mas como uma especialização.

 
Outubro 2002

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