Espelhamentos - Herança Literária de José Régio
Espelhamentos - Herança Literária de José Régio
Início 01 02 03 04 05 06 07 08 09 10 11

Hoje a Biografia é uma rosácea extremamente carregada e significativa, mas, apesar disso, transparente: os principais aspectos da obra de Régio nela se encontram representados e, através dela, se permite uma visão quase global do interior do templo.

David Mourão-Ferreira,
Vinte Poetas Contemporâneos.

Meu pai fizera em novo uma biblioteca muito heteróclita, e mais de traduções que de originais portugueses: Júlio Verne, os grandes folhetinistas do tempo em esplêndidas edições ilustradas, (eu fiquei para sempre com o gosto das ilustrações [...]) escritores muito diversos em colecções como, por exemplo «Horas de Leitura», Victor Hugo e Zola, etc. Também ali havia a História de Portugal ilustrada, de Pinheiro Chagas, e muitas obras de teatro.

José Régio entrevistado por Jorge de Sena.

José Régio, 1901-1969.

Nasceu com sete meses o menino,
E uma espécie de mossa astral na fronte.
— «Mas quero ouvir-me ecoar de monte em monte!
Desfraldar meu pendão luciferino.»

Nasceu choroso, imundo e pequenino
Que nem sei tom de lástima que o conte...
— «Mas alarga-te, ó linha do horizonte!
Quero caber!... cumprir o meu destino.»

«O menino sem tempo».

Jules Verne, 1828-1905. Jules Verne, Voyages Extraordinaires.

A minha mãe que estava ao lado, quieta,
Eu dizia: — «Mamã, quero ser poeta!»
E consumia-a num abraço estreito.

... De noite, ergueram-se uivos do horizonte.
E eu sentia correr, como uma fonte,
A chaga que se abrira no meu peito!

«Baptismo».

Victor Hugo, 1802-1885.
Victor Hugo, Les Misérables.

O Rocambole e Os Dois Garotos (este numa esplêndida edição cujas ilustrações me fascinavam) foram dos meus primeiros grandes entusiasmos romanescos. Quantas vezes os reli? obrigado, Ponson du Terrail! obrigado, Pierre Decourcelle! Por certo me não fostes então menos caros do que, mais tarde, o Stendhal ou o Proust.

José Régio, Confissão dum Homem Religioso.

Ponson du Terrail, Rocambole.
Pierre Decourcelle, Os Dois Garotos.

Suponho terem sido Flaubert e Tolstoi (este, claro, através de traduções, portanto sobretudo por adivinhação) que maior influência exerceram no meu estilo. Também comecei a ler Flaubert pelas traduções de João Parreira, e só depois o li no original. Entre os nacionais, Camilo. Quanto ao fundo, digamos, Dostoievski. O primeiro poeta português que li com alguma consciência foi João de Deus. Fiquei a amá-lo para sempre. Pelos meus quinze ou dezasseis anos, descobri Nobre, e este exerceu sobre mim uma verdadeira sedução. Parecia-me que às vezes era de mim que ele falava. Imitei-o em muitos e muitos versos que depois queimei. Todos os outros poetas (ele é que era para mim o Poeta) me pareciam, então, descoloridos e frouxos, a par dele. Quando encontrava, num escrito, o nome Nobre, estremecia interiormente. Só lendo Cesário me pude interessar por um poeta diferente, (Cesário havia de me parecer mais tarde um Mestre superior) e principiei a curar-me dessa espécie de exclusivismo doentio. No entanto, Nobre sempre manteve no meu sentir uma particular magia. Outros vieram mais tarde; e de todos tenho aproveitado, com todos tenho aprendido. Junqueiro, que várias vezes citam ligando-o ao meu nome nunca verdadeiramente foi das minhas preferências. Gomes Leal, sim. Ouso, porém, pensar que sobretudo me tenho vindo formando comigo mesmo, ao contacto das gentes e da vida. Sempre mais ou menos mantive as minhas primeiras admirações, embora, depois, criticando-as, e juntando aos primeiros outros nomes: Sobretudo Ibsen (fiquei todo o dia de cama quando li Os Espectros) Baudelaire, Stendhal, Proust. As minhas mais recentes descobertas são Kafka e Robert Musil.

José Régio entrevistado por Jorge de Sena.

As visitas pasmavam e enterneciam-se. E creio que eu também devia gostar de manifestar as minhas prendas, ou tinha qualquer queda para a recitação, pois a convite do senhor professor disse no meu exame de instrução primária a fábula de A Cabra, o Carneiro e o Cevado.

José Régio, Confissão dum Homem Religioso.

Uma vez
Uma cabra, um carneiro e um cevado
Iam numa carroça todos três,
Caminho do mercado...
Não iam passear, é manifesto;
Mas vamos nós ao resto.
Ia o cevado numa gritaria,
Que a cabra e o carneiro
Não podendo na sua boa fé
Acertar com a causa do berreiro,
Diziam lá consigo:
Que mania!
Cá este nosso amigo
E companheiro
Por força gosta mais de andar a pé!...

João de Deus, Campo de Flores.

João de Deus, 1830-1896.

Uma é a forma ideal do triste anjo vencido.
— A outra, a doce luz diáfana da manhã.
E, entre elas, chora e diz meu coração perdido:
— Em mim vencerá Deus, ou ganhará Satan?

Gomes Leal, «Na folha dum livro».

Gomes Leal, Claridades do Sul.
Gomes Leal, 1848-1921.
Início 01 02 03 04 05 06 07 08 09 10 11

© Instituto Camões, 2007